Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

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PARTE II - FRAGILIDADES, LISBOA

2. Fragilidades, o bar da moda

Ruas desertas, tristonhas. Mas no Bairro Alto há crises de bulício, efervescência boémia. Gente que sai e entra em automóveis, saltos altos a tiquetaquearem no teclado da rua. Qualquer frase mais alta bate no empedrado para surgir da obscuridade como pincelada de água. É a noite lisboeta, do fado, dos bares frequentados por artistas, gente com necessidade extrema de atenção. Olhem para mim! - chispam os olhos. Não é narcisismo, eu sei, é insegurança, desejo de reconhecimento do valor da arte que criam.

Uma bela mulher, apesar das dimensões elefantinas, vestida de negro, a longa túnica na sequência obscura do cabelo, em corte belle époque, investiga-me da cabeça aos pés antes de me deixar entrar. Talvez o meu rosto martirizado a convencesse. «Entre», não disse, o braço, porém, apontando as entranhas do sarcófago musical, insinuava a existência nele dos elixires capazes de curar todos os males.

Tinha frio, aconcheguei-me na gola do casaco, a noite de um Inverno ácido. Grandes máscaras escuras, suspensas do tecto, avolumaram a ansiedade que vinha acumulando. Cabrita Reis, oiço. Pinturas sombrias esperavam, com algo de uma frieza oriunda de tempos passados. Abstractas, sombrias, épicas telas de luto, a vestirem paredes da cabeça aos pés. Obras de Pedro Cabrita Reis, oiço...

Alta, a música. Música, música, música! Dava-me a volta, voltava aquela dor de uma doçura extasiada, mas o que era aquilo? Uma guitarra, sim, sim, Ry Cooder naquele estranho filme cheio de deserto, tão lenta dor, tão sede sem água... Um dos filmes que mais me tocou as cordas da imaginação, senti-me tão voyeurista com aquela cena do peepshow... É, é a música do Paris, Texas, sim... Nem no Fragilidades mudam de disco, a noite está um dilúvio lacrimal...

Acima do dedilhar plangente, uma maré confusa de vozes, gritinhos pelo meio, tinidos de copos e garrafas, palmadas nas costas, risos mordazes...

Gaita!, atropelei o empregado, mas ele já está habituado, que não fazia mal, não tinha deixado cair as cervejas, e não, conseguiu equilibrar a patena acima das cabeças que badalavam ao ritmo da música lenta, suave e lenta e suave como um soneto de Camilo Pessanha...

Ry Cooder, «Paris, Texas»

Peepshow... Curiosa palavra, vi-a escrita em português, a dar nome a uma série de caixas com muita tralha de artista dentro, espalhadas numa das salas de entrada do Museu das Janelas Verdes... Por acaso tinha passado por lá mesmo na altura da inauguração, estavam várias pessoas, mas só reconheci um artista muito carismático, Ernesto de Sousa, era dele a exposição geral e participava naquele lançamento de caixas, de nome roubado ao peepshow de Wim Wenders, ou de Sam Shepard, o guionista, mas ver a palavra em português nem sei que choque me deu... Pipchou? Não, pior, pior, era Pipxou... E até ouvi discutir-se aquilo, que tinha sido ideia triste da co-autora, Maria Estela Guedes, acho que sim... É, o nome era esse... Porque é que não tinha deixado o nome em inglês? Muito mais internacional e cosmopolita... «Vocês só têm estaleca para discutir a embalagem, não chegam com as moléculas aos conteúdos da caixa!» Era um rapaz de franja preta a retrucar, muito polida, balançava de um lado para o outro e ele gostava de a balançar, como se fosse uma crina de cavalo. Conhecia-o, era o Fernando Camélia. Conhecia-o da esquadra da Polícia do Rato, uma vez tinha tido que o levar ao hospital, os skinheads apanharam-no a jeito e iam-no matando à porrada. Porque era homossexual... Se soubessem que esta noite já por várias vezes tive de limpar as lágrimas, cortavam-me os tomates... Porcos nazis, caraças! Mentalidade de sacristia, não arejam a cabeça, ainda vivem no tempo da escravatura, e querem à viva força ter escravos para lhes baterem, e o resto... Não entendo, pensei que os valores da democracia fossem universais e invejáveis, que todos desejassem ascender na escala da evolução respeitando a liberdade e a idiossincrasia dos outros... E não entendo esta hipócrita sociedade que vive num peepshow contínuo, a espreitar para debaixo de saias e para dentro de calças, a palpar o que tenho nas cuecas... Hediondo, hediondo! É que nenhuma teoria o justifica, nenhuma ética, nenhuma filosofia, nenhuma religião justifica que me mexam nos tomates e os avaliem e me censurem por fazer isto e não aquilo com eles... Cambada de tarados sexuais a quererem convencer-me de que são honestas mães e pais de família... Tarados sexuais, que não pensam noutra coisa...

A guitarra de Ry Cooder no Fragilidades não deixava de ser fenómeno assinalável... Deixava-me possuir pelo seu rasto, seria a música uma pista subliminar a encaminhar-me para o mistério? E que mistério? Isso, desvia as moléculas para outro caminho ou ainda te dá um ataque cardíaco... Não havia no caso mistério nenhum, vamos lá a pôr a cabeça no estirador das coisas práticas, eu estou é com uma depressão do catano por ter deixado fugir a minha mulher...

Sinto-me à margem do que lhe aconteceu, pintora e esposa, é tudo a mesma mulher, misturei-as de tal forma que já não as distingo... Para não me enganar, melhor é nem tentar dizer-lhe o nome... O nome de uma e o nome de outra, querida, desculpa, bem sei que não é normal, nada é normal contigo longe, e que importa a minha dor? Mais à margem do que eu da tua partida estás tu da minha mágoa...

Que estaria ela a ouvir ou a gravar quando tombou para a frente, arrastando na queda o rádio-despertador? Era uma bela mulher, sólida, de boas pernas, ombros largos. Tinha gostado dela. Se não fosse tão tarde, ainda voltava ao local do crime, ouvia a chamada: vem, os fios do enigma estão todos aqui. Mas os fios do enigma não me chamavam, eu é que desejava ser chamado. Tinha caído num estado de fragilidade emocional tão grande que, se a minha mulher me chamasse, como um rápido relâmpago responderia. Apesar de tudo. Corei ao recordar-me das tristes figuras que fizera, inventando outras, para a atiçar, a obrigar a dar-me atenção. Há outras na minha vida, entendes? Sou desejado. Ela não entendeu, não lhe interessava entender tolices indirectas. “Tu só queres é pôr-me mais doida do que eu já ando!".

Não é igual à pintora, embora eu não tenha conhecido a pintora. A minha mulher é uma brasa, vá, um bom pedaço de mulher, e nada lhe aponto de desmerecedor, mas que não tem imaginação, isso, não tem.

Portei-me mal, eu sei. Nada a demoveu do propósito de divórcio. Concordo que a situação se tornou insuportável, só a via na cama, quando o cansaço me impedia de lhe manifestar o afecto que ambos desejávamos. Estupor de profissão, a minhal Ficou com a casa, saí eu. É diferente a vida de quem parte, sentia-me só, na iminência de recomeçar a partir do zero. Só, desamparado, com uma fome de afecto avassaladora. De todos os lados me chamavam, mas eu estou lúcido, sei que sou eu mesmo que projecto nos outros a minha avidez de ser chamado.

Alta, a música. Contudo, a impressão era de silêncio. Ninguém, a não ser os actores submersos em papel de jornal, me dera atenção no casarão cor-de-rosa, cada um voltado para si mesmo como flor absorta sobre as águas estagnadas de um espelho. Ali, no Fragilidades, tornava-me o centro das atenções. Inútil encostar-me à parede, enfiado na gola levantada do casaco, sentar-me no banco mais afastado da multidão. Como por acaso, todos os olhares convergem sobre mim, rodando, discretos, a mim voltando de novo. Componho a gravata, incomodado, alvo de um interesse que se cola ao meu corpo como onda de desejo pegajoso. Que raio, avaliam-me com olhos de quem me quer comer, nunca me senti tão cobiçado...

E a música, meu deus!, que músicas passam nas noites lisboetas, os Doors, Riders on the storm, não pode ser, eu hoje não volto para casa, vou ficar por aí como um cão enroscado no seu sono, vou adoecer, eu esta noite vou morrer de beleza...

The Doors, «Riders on the storm»

Revista de Artes, Religiões e Ciências, nº 03 | Janeiro de 2010

MARIA ESTELA GUEDES (Britiande, Portugal, 1947)
Escritora, editora, agente cultural. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro (Lisboa, Moraes Editores); Ernesto de Sousa - Itinerário dos itinerários (Lisboa, ed. Museu Nacional de Arte Antiga); Tríptico a Solo (São Paulo, Editora Escrituras); Chão de Papel (Lisboa, Apenas Livros); Geisers (Bembibre, ed. Incomunidade). Obras levadas à cena: O Lagarto do Âmbar (ACARTE); A Boba (teatro Experimental de Cascais).
Currículo em:  http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
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