Ainda umas boas dezenas de
metros me separavam do casarão cor-de-rosa,
designação familiar do Teatro da Revolução, já o ruído vinha até mim, numa
vibração surda. Preia-mar de Ramones, vozes
afogadas no estrépito das ondas. Os versinhos
delicados que diziam ser o amor um oceano
cheio de conflitos e de mágoa a boiarem noutra música bem mais
encapelada. Fiquei triste, agarrado àquela
flor sonora, sem saber porquê. Juntava, no
meu espírito, o luto pela mulher perdida ao
rosto pálido da morta. As saudades que eu
tinha de casa, do calor do roupão felpudo em
que me embrulhava para ver televisão, o
perfume do café pela manhã a escapar da
cozinha para o corredor, as saudades, vá,
confesso!, as saudades que sinto da minha
mulher... O novelo da saudade a magoar-me no
peito feito uma doença cardíaca, descobrir
que o pensamento fere tanto como um murro, e
nisto chegava à porta, o braço suspenso no
ar, ia premir o botão metálico de uma
campainha.
A porta entreabre-se e
bate-me na cara uma chapada de rock duro,
violento. Um rapaz de camisa cor de
salmão, o rosto marcado por fundas
cicatrizes de borbulhas, mostra-se pouco inclinado a deixar-me entrar.
Apesar de andar à paisana, o faro e a experiência descobrem-lhe em mim
um provável agente de discórdia.
Impacientava-me com o
cansaço, o barulho tornava inúteis as
minhas promessas de vir em missão pacífica.
Dei umas pancadinhas amigáveis no braço nu
que me barrava a passagem, gritei, o mais
perto possível da sua orelha:
— Estou sozinho, pá! Só quero
ver se encontro por aqui um gajo que me pode
dar umas informações — e mostrei-lhe o
crachá, discretamente.
O moço fez um trejeito de
desagrado, mas enfim:
— Está bem, entre. Mas isto
está a correr bem, não me dê cabo do
espectáculo!
— Eu pago o bilhete e tudo,
pá, fica sossegado!
De relance apercebi-me da
espécie de movimento que havia na sala e num
gesto automático tirei a gravata para a
meter ao bolso. Sempre dava menos nas
vistas.
— Quanto ? — perguntei,
realmente sem vontade de introduzir a
desordem da ordem na ordeira desordem
daquele tremendo cagaçal. O chão pejado de
beatas, húmido de cerveja entornada,
traçado de restos de arame. Dando a volta a
um monte de papéis de jornal, alguns garotos
entretinham-se a lançar-lhe fogo.
— Porra... — chateou-se o
rapaz da camisa cor de salmão, deixando-me
plantado à entrada, enquanto afastava os putos
para o lado e apagava o fogo com os pés.
Voltou, missão cumprida:
— Duzentos paus sem direito a
bebidas — respondeu, sem desatinar no meio
da confusão, passando-me para as mãos uma
carta pornográfica, equivalente ao bilhete
de ingresso. — Veja lá, não me dê cabo da
festa! Isto está a correr normalmente!
Estava tudo
a correr normalmente, só eu me sentia
perdido, sem a prática do lugar. Os
versinhos de caramelo de John Denver a vogarem em bolhas
sobre a música avinagrada dos Ramones, que
incitava os putos a darem
sapatadas metálicas no chão.
Passou um
casal de braço dado à nossa frente, ela
muito pintada, de óculos escuros e meias
altas às riscas, sob uma suspeita de saia de
couro, ele de guarda-chuva encarnado,
cabeleira verde a abanar e botas da tropa.
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