Serenei o Cerbero da camisa
cor de salmão e rosto marcado pelas bexigas com um aceno de
cabeça solidário. A maré de estrépito subia
alto, acompanhada por ruídos lancinantes do
microfone, agudos capazes de estilhaçar os
tímpanos. A batida grossa de uma percussão
frenética fazia-me vibrar o diafragma. E os
putos a balançarem-se para um lado e para
outro, dando patadas no chão sem deixarem
cair a cerveja dos copos. Um
terramoto não me teria abalado mais o sistema
nervoso, por instantes pairei no espaço,
como um balão cheio de agressões sonoras. Que
diabo!, pensei. Isto é pior que andar na
guerra debaixo de fogo! Na minha perturbação, um risco de luz acendeu-se no espírito, desenlace que a
fantasia arrisca quando
periclita o raciocínio: o som pode matar? Então
vi num flash da memória a imagem da vítima,
tombada ao pé da aparelhagem de alta
fidelidade, de auscultadores na cabeça. Os
olhos como os dos animais, olhando a direito
para nós, sem nos verem na nossa
transparência.
Tolice!, censurei-me. Um polícia não pode
largar as rédeas ao cavalo da imaginação.
Ao fundo da sala, um tipo
prepara-se para actuar. Contorce-se num pequeno palco, de microfone quase
entalado
na garganta. Custou juntar as sílabas para perceber
a letra do que se reduzia a um
“De-su-ma-ni-za-ção! De-su-ma-ni-zação!
De-su-ma-ni-za-ção!” Outro, colado à guitarra,
tritura apaixonadamente as cordas e a
pastilha elástica, enquanto o baterista
oscila perigosarnente a cabeça de um lado
para o outro, cornudo pêndulo em transe. As
T-shirts às postas, sobre jeans apertados até
à
obscenidade, descoloridos no azul por
manchas de lixívia, guardam restos da designação do grupo:
Crise Total. Exactamente a minha
situação, reconstituo, juntando os caracteres
ao
puzzle da vida.
Garotos sebentos, de orelhas
profusamente ornadas de penduricalhos, a
cabeça rapada a máquina zero com alta crista
vermelha de galo, abanavam-se
arritmicamente, numa
descarga emocional sem visível objetivo.
Descarregavam as baterias, era tudo. Pudesse
eu arrear também a carga, a dor no peito, os
olhos sem me verem de uma vítima que teimava
em me aparecer como a minha mulher... Que
quer isto dizer? A minha mulher foi uma
vítima? Xandra não será o nome da pintora? Nem os
nomes lhes consigo dizer... Metes o pé na
poça mesmo em pensamento, Eduardo...
E-du-ar-do, E-du-ar-do... Eduardo sou eu, ou
não sou? |
MARIA ESTELA
GUEDES (Britiande, Portugal, 1947)
Escritora, editora, agente cultural.
Alguns livros publicados:
Herberto Helder, Poeta Obscuro
(Lisboa, Moraes Editores);
Ernesto de Sousa - Itinerário dos
itinerários (Lisboa, ed. Museu
Nacional de Arte Antiga);
Tríptico a Solo (São Paulo,
Editora Escrituras); Chão de
Papel (Lisboa, Apenas Livros);
Geisers (Bembibre, ed.
Incomunidade). Obras levadas à cena:
O Lagarto do Âmbar (ACARTE);
A Boba (teatro Experimental
de Cascais).
Currículo em:
http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
Proprietária do TriploV.
CONTATO:
estela@triplov.com |