Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

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PARTE I - UMA FESTA PUNK
(Revista TriploV, nº 2, Novembro de 2009)

 

5. Do pintor é que nem sinal

Do pintor é que nem sinal. Vou dar em todo o caso urna volta pela sala, esquivando-me aos atropelos e ganhando uns milímetros de passagem entre criancinhas desamparadas e matulões bravios, que curtem a deles no rebuliço. Como podia levar avante uma investigação sem livro, sem sinais? Pelo menos em ação de pintar, não via ninguém. Nem a festa era local para alguém assentar o rabo a trabalhar em algo que exigisse firmeza na mão e apoio seguro para o caderno de desenho. A música aos berros, os encontrões daqui e dali. E que esperava eu dele? Uma palavra reveladora, uma pista que me conduzisse ao criminoso? Claro, claro, sobretudo ao criminoso, por muito que a cena do crime não exibisse nenhuns sinais disso...

A festa não parece ser lugar para assassinos, apenas centro de evasão onde garotos exprimem a sua fúria em simulacros de contestação. Estão cheios de violência - ódio, quem sabe? Porquê? Vivem razoavelmente, na maioria... Acabou a guerra, temos democracia, bastante mais largueza de vistas, haja em vista a ministra, que até se candidata a presidenta! São bons sinais de mudança... A letra mudou, não? O vocalista entoa um salmódico «Re-a-li-da-de! Re-a-li-da-de!» Esta é a realidade: com tão bons sinais de mudança, de que se queixam os jovens? Porque é que a minha mulher me deixou? Nunca lhe dei motivos... Se ao menos tivesse outra, mas não, tenho sido mais fiel que um cão, caraças! Nunca lhe pus a merda de uns cornos... Não nos falta o necessário... Comprámos casa, pouco  falta para acabar de a pagar, temos bom carro, dois ordenados... Tínhamos, tínhamos... Ter, que palavra tão pequena para o mundo que abarca... Será? Bens materiais... Deixei de ter casa e o carro dela, mas é de a ter a ela que sinto mais falta... Tinha mulher... E tive? As pessoas têm-se, como se têm casas e carros? Que saudades da cama, do calorzinho dela no Inverno, de uma boa fodinha, que também disso não se pode queixar, nunca lhe faltei com ela... Ai, que conversa de merdinha, toda atada em miudezas do que conforta o corpo, tão distante do que deslumbra a alma...

 As pessoas morrem sem nenhum motivo especial, contestam sem razão, esmurram-se sem ninguém as provocar - assim parecia ter acontecido naquele lado do balão chinês, à esquerda do palco. Andam dois putos à porrada, nem percebo se são rapazes se miúdas, agora vestem-se de igual, fazem os mesmos ademanes de corpo, gostam de não ser homem nem mulher, sim isto e aquilo. Parece uma miúda e um gandulo... Ok, ok, assim mesmo, ó Cerbero da camisa cor de salmão! - já os separou e pôs o mânfio na rua. Ainda bem, não me apetece dar nas vistas a ir eu desatar o embrulho...

 Finda a performance no palco, o vocalista enuncia meia dúzia de princípios que condena. «Con-de-no! Con-de-no! Con-de-no!», repete. Nada percebi do que condena, mas isso é uma questão de ouvido e de emissão clara das frases, porque o rapaz tem alguma coisa para condenar, e motivos para a contestação. O que é que ele contestou? Porra, não percebi nada... Sinto-me como se a pedra filosofal tivesse acabado de me fugir por entre os dedos... Se eu tivesse ouvido o que o puto disse, sabia agora porque me deixou a minha mulher... E porque morreu a pintora debruçada para o aparelho de alta fidelidade, os ouvidos debaixo dos auscultadores...

 

Revista de Artes, Religiões e Ciências
Nº 02 | Novembro de 2009

MARIA ESTELA GUEDES (Britiande, Portugal, 1947)
Escritora, editora, agente cultural. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro (Lisboa, Moraes Editores); Ernesto de Sousa - Itinerário dos itinerários (Lisboa, ed. Museu Nacional de Arte Antiga); Tríptico a Solo (São Paulo, Editora Escrituras); Chão de Papel (Lisboa, Apenas Livros); Geisers (Bembibre, ed. Incomunidade). Obras levadas à cena: O Lagarto do Âmbar (ACARTE); A Boba (teatro Experimental de Cascais).
Currículo em:  http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
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