Do pintor é que nem sinal.
Vou dar em todo o caso urna volta pela sala, esquivando-me aos
atropelos e ganhando uns milímetros de
passagem entre criancinhas desamparadas e
matulões bravios, que curtem a deles no rebuliço. Como podia
levar avante uma investigação sem livro, sem
sinais? Pelo menos em ação de pintar, não via ninguém. Nem
a festa era local para alguém assentar o
rabo a trabalhar em algo que exigisse
firmeza na mão e apoio seguro para o caderno
de desenho. A música aos berros, os
encontrões daqui e dali. E que
esperava eu dele? Uma palavra reveladora,
uma pista que me conduzisse ao criminoso?
Claro, claro, sobretudo ao criminoso, por
muito que a cena do crime não exibisse
nenhuns sinais disso...
A festa não parece ser lugar para assassinos,
apenas centro de evasão onde garotos
exprimem a sua fúria em
simulacros de contestação. Estão cheios de
violência - ódio, quem sabe? Porquê? Vivem
razoavelmente, na maioria... Acabou a
guerra, temos democracia, bastante mais
largueza de vistas, haja em vista a
ministra, que até se candidata a presidenta!
São bons sinais de mudança... A letra
mudou, não? O vocalista entoa um salmódico «Re-a-li-da-de! Re-a-li-da-de!»
Esta é a realidade: com tão bons sinais de
mudança, de que se queixam os jovens?
Porque é que a minha mulher me deixou? Nunca
lhe dei motivos... Se ao menos tivesse
outra, mas não, tenho sido mais fiel que um
cão, caraças! Nunca lhe pus a merda de uns
cornos... Não nos falta o necessário...
Comprámos casa, pouco falta para
acabar de a pagar, temos bom carro, dois
ordenados... Tínhamos, tínhamos... Ter,
que palavra tão pequena para o mundo que
abarca... Será? Bens materiais... Deixei de
ter casa e o carro dela, mas é de a ter a
ela que sinto mais falta... Tinha mulher...
E tive? As pessoas têm-se, como se têm casas
e carros? Que
saudades da cama, do calorzinho dela no
Inverno, de uma boa fodinha, que
também disso não se pode queixar, nunca lhe
faltei com ela... Ai, que conversa de
merdinha, toda atada em miudezas do que
conforta o corpo, tão distante do que
deslumbra a alma...
As pessoas morrem sem
nenhum motivo especial, contestam sem razão,
esmurram-se sem ninguém as provocar -
assim parecia ter acontecido naquele lado do
balão chinês, à esquerda do palco. Andam
dois putos à porrada, nem percebo se são
rapazes se miúdas, agora vestem-se de igual,
fazem os mesmos ademanes de corpo, gostam de
não ser homem nem mulher, sim isto e aquilo.
Parece uma miúda e um
gandulo... Ok, ok, assim mesmo, ó Cerbero da
camisa cor de salmão! - já os separou e pôs
o mânfio na rua. Ainda bem, não me apetece
dar nas vistas a ir eu desatar o embrulho...
Finda a
performance no palco, o vocalista enuncia meia dúzia de
princípios que condena. «Con-de-no!
Con-de-no! Con-de-no!», repete.
Nada percebi do que condena, mas isso é uma
questão de ouvido e de emissão clara das
frases, porque o rapaz tem alguma coisa para
condenar, e motivos para a contestação. O
que é que ele contestou? Porra, não percebi
nada... Sinto-me como se a pedra filosofal
tivesse acabado de me fugir por entre os
dedos... Se eu tivesse ouvido o que o puto
disse, sabia agora porque me deixou a minha
mulher... E porque morreu a pintora
debruçada para o aparelho de alta
fidelidade, os ouvidos debaixo dos
auscultadores... |
MARIA ESTELA
GUEDES (Britiande, Portugal, 1947)
Escritora, editora, agente cultural.
Alguns livros publicados:
Herberto Helder, Poeta Obscuro
(Lisboa, Moraes Editores);
Ernesto de Sousa - Itinerário dos
itinerários (Lisboa, ed. Museu
Nacional de Arte Antiga);
Tríptico a Solo (São Paulo,
Editora Escrituras); Chão de
Papel (Lisboa, Apenas Livros);
Geisers (Bembibre, ed.
Incomunidade). Obras levadas à cena:
O Lagarto do Âmbar (ACARTE);
A Boba (teatro Experimental
de Cascais).
Currículo em:
http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
Proprietária do TriploV.
CONTATO:
estela@triplov.com |