O jovem cala-se. Pouco ou
nada se percebeu do que condena, mas os
aplausos fecharam-se numa taça que o elevou
à categoria do estrelato. Continuavam a chover,
sobre as crinas hirsutas
e as cristas de galo,
bolas de jornal
arrancado à cobertura do palco. Os garotos
ululam. E eu dou por mim a gritar também,
sem que me oiça. Volto a gritar, grito desvairadamente
por entre os dentes, não quero abrir muito a
boca para não dar nas vistas. Ninguém deu por mim, cada
um entregue ao seu próprio grito. Não era
entusiasmo, alegria, o sentimento que
arrancava o som das cordas vocais. Tinha
entrado na onda, sem dúvida: berrava para me aliviar da
tensão nervosa. Como eles, aproveitava o estampido da tempestade para
me esvaziar dos conflitos e da ansiedade.
Sinto-me um pouco mais aliviado.
À sensação de alívio
sucedeu-se a tristeza. Aliás, tudo me entenebrece, a sensibilidade exacerbada pela
expectativa. Fico sempre assim, às portas do
mistério, quando um novo caso principia.
No meu tempo havia menos
liberdade e mais chances de aproximação. Até
as modas de dançar são outras, distanciam,
como se a alforria dos costumes criasse
barragens de gelo, os putos tivessem receio
de se tocar. No meu tempo, na passagem para
os anos sessenta, uma moça de
treze ou catorze anos não ficava sozinha numa
festa até às quatro da madrugada, não tomava
a pílula, e de resto nem tal coisa existia
ainda, mas talvez não sofresse como estes o
pânico do abandono. Os grandes olhos que nem
por um instante pousam em mim estão
carregados de um afecto que não circula.
Sofrem de
carências emocionais, a liberdade sexual não
resulta se não tiverem em casa os pais. No meu tempo, a dança servia para
conversar e cumular o corpo de ternura. Estes nem se ouvem; ouvindo-se, nada teriam a
dizer uns aos outros, o amor desclassificado
por novas convenções que o reduzem à condição de
pirosidade. Para se encostarem ao calor do
outro, precisam dos subterfúgios do
encontrão. Acho-os patéticos, palhaços, na
sua indumentária arrancada a fotografias de
velhos álbuns de família, eles mesmos
antiquados, decadentes, triste geração de
falência e frivolidade. Sabem tudo sobre
drogas leves e pesadas, sexo, conhecimento
que décadas antes era património de ricos e
velhos sátiros. Do amor nada sabem, crianças
cegas, inexperientes, jogadas fora para o
precipício indiferente do destino.
Cogitava eu nestes assuntos
melancólicos, quando o rapaz da camisa cor de
salmão me abordou:
— Então, encontrou o tipo que
procurava?
Inclinei-me para ele e berrei
também:
— Não, mas nem o conheço,
talvez tu me possas ajudar — respondi,
simpatizando com o seu olhar vivo, a solidez
que lhe transparecia no corpo duro, limpo,
de musculatura trabalhada.
— Desde que não seja para lixar
ninguém... — cortou-se ele. — Isto é tudo malta
porreira, não se deixe impressionar pelo
aspeto...
— Esta noite morreu uma
pintora em circunstâncias que exigem
inquérito — expliquei. — Disseram-me que
encontraria aqui um amigo dela, um pintor.
— Como se chama o gajo?
— Não me souberam dizer.
— E a pintora, quem é?
— Xandra Duarte, conheces?
— A Xandra? A Xandra morreu?!
— alarmou-se o rapaz. Que notícia bera à
brava, custa a acreditar!
— Conhecias?
— Claro, quem não conhece?
Está com uma exposição de litografias na Galeria
Différence! Fui
à inauguração há coisa de um mês, deve estar a acabar.
— Boa informação, hei-de
lá dar um salto.
— Mas a Xandra morreu, diz o
senhor? Morreu como?
— Se eu soubesse, não
precisava se calhar de andar por aqui, à procura
de nem sei quem... — suspirei, desanimado. —
O encalacranço, por agora, é esse: não se
sabe. Não se faz a mais pálida ideia. Apareceu morta de
um momento para o outro, é tudo.
—
No se teria suicidado?
— Nada aponta para esse lado...
Tu, que a conheceste, achas que era mulher
para se suicidar?
— Sei lá!... Falei por
falar...
— Como te chamas?
— Fino... A Xandra era uma
pessoa introvertida, que nunca falava dos
seus problemas... Tinha coisas estranhas...
— Por exemplo?
— Por exemplo, às vezes
recusava convites para isto ou para aquilo
se calhavam em certo dia da semana e a certa
hora...
— Porquê?
— Houve um dia em que eu mesmo
a convidei para uma festa e ela me disse que
não podia ir porque àquela hora tinha de
ouvir um programa de rádio... Ninguém, em
seu estado normal, troca uma festa por uma
coisa dessas...
A curiosidade punha-me
faíscas na imaginação, de novo a imagem da
morta se me apresentou na memória com
nitidez absoluta: tombada diante da
aparelhagem de alta fidelidade, com os
auscultadores na cabeça.
— Lembras-te do dia e da hora
a que ela pelos vistos ouvia o tal programa?
— No faço ideia, não me disse
sequer que programa era...
— Bom, essa tal festa para
que a convidaste, quando foi?
— Ah sim, era um sábado, como
hoje. Sábado, nove da noite...
— Como hoje... — eu, absorto.
— Hoje é sábado... Esse pintor, que ia
a casa dela com frequência, disseram-me que
é um tipo alto e magro...
— Tipos altos e magros há
muitos... — gritou-me o Fino à orelha, apesar
de o turbilhão rock ter dado lugar a um
intervalo musical menos barulhento.
— Parece que o gajo tem umas
manias, só trabalha de noite, nestes
sítios... Põe-se a um canto com a pasta e o
marcador e vai apontando cenas...
— O Gilberto?! Já podia ter
dito... Pois, só pode ser o Gilberto. Já
aqui esteve, já, e ainda deve estar... A
menos que tenha ido até ao Fragilidades...
As luzes apagaram-se, sinal
de mudança. Não sei a onde aquelas criaturas
iam buscar tanta energia! As vidraças
tilintavam sob o impacto da gritaria. Quando
se acenderam de novo, actrizitas mascaradas
de coristas trepavam a pulso para o palco,
impedidas pela horda de punks de usarem os
degraus próprios para o efeito. Só então
reparei na fila de actores colados às
paredes, impassíveis, cosidos nas folhas de
jornal que as revestiam. Ali estava a origem
dos arames semeados no chão e bolas de
papel atiradas ao ar. A situação invertia-se,
eram as personagens de uma cena sem acção que
observavam a minha atitude, comentavam em
silêncio, espectavam. Olhei à volta: mais nenhum dos actores
forçados, como eu, a representarem um papel
nunca lido, me dava atenção. O orgulho
policial sentiu-se um pouco ultrajado.
Em posição de evidência, no
palco, um rapaz semi-embalado em manga de plástico negro
balouçava para um lado e para o outro,
abanando o
toucado vagamente parecido com um pepino. As
coristas despiam-no, em jogo de sedução
trapalhona. Era um belo jovem, algo
efeminado, de rosto angélico emoldurado por
um bigode ralo e farripas de cabelo claro.
Estava inseguro no seu boneco imperturbável.
Agitava-se num balanço discreto sobre as
altas pernas depiladas, sem sair do mesmo
lugar. Armadas de navalha, as raparigas
tocam, afagam, despem, fingem cravar a
lâmina naquele corpo de brancuras áridas. Um
frasco de groselha esvaziado no ombro
traça-lhe, na palidez, sulcos de um sangue
frágil. Agora o rapaz está plantado em cena
como árvore de carne, o pepino na cabeça e o
sexo oculto num slip escuro. Deve ter sido
um golpe de mágica: de repente o slip negro
desaparece, sobra-lhe nas mãos um falo
enorme, verde, em espuma de matéria plástica. Sacode-o com furor para escorraçar as
coristas, as vidraças tilintam de novo com o
espasmo da gritaria. A luz apaga-se, a cena
morre, a dança dos encontrões recomeça, com
as inevitáveis cabeças como pêndulos a
abanarem a crista de cabelos em pé.
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