Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

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INDEX

PARTE I - UMA FESTA PUNK
(Revista TriploV, nº 2, Novembro de 2009)

 

6. A minha mulher morreu?!...

O jovem cala-se. Pouco ou nada se percebeu do que condena, mas os aplausos fecharam-se numa taça que o elevou à categoria do estrelato. Continuavam a chover, sobre as crinas hirsutas e as cristas de galo, bolas de jornal arrancado à cobertura do palco. Os garotos ululam. E eu dou por mim a gritar também, sem que me oiça. Volto a gritar, grito desvairadamente por entre os dentes, não quero abrir muito a boca para não dar nas vistas. Ninguém deu por mim, cada um entregue ao seu próprio grito. Não era entusiasmo, alegria, o sentimento que arrancava o som das cordas vocais. Tinha entrado na onda, sem dúvida: berrava para me aliviar da tensão nervosa. Como eles, aproveitava o estampido da tempestade para me esvaziar dos conflitos e da ansiedade. Sinto-me um pouco mais aliviado.

À sensação de alívio sucedeu-se a tristeza. Aliás, tudo me entenebrece, a sensibilidade exacerbada pela expectativa. Fico sempre assim, às portas do mistério, quando um novo caso principia.

No meu tempo havia menos liberdade e mais chances de aproximação. Até as modas de dançar são outras, distanciam, como se a alforria dos costumes criasse barragens de gelo, os putos tivessem receio de se tocar. No meu tempo, na passagem para os anos sessenta, uma moça de treze ou catorze anos não ficava sozinha numa festa até às quatro da madrugada, não tomava a pílula, e de resto nem tal coisa existia ainda, mas talvez não sofresse como estes o pânico do abandono. Os grandes olhos que nem por um instante pousam em mim estão carregados de um afecto que não circula. Sofrem de carências emocionais, a liberdade sexual não resulta se não tiverem em casa os pais. No meu tempo, a dança servia para conversar e cumular o corpo de ternura. Estes nem se ouvem; ouvindo-se, nada teriam a dizer uns aos outros, o amor desclassificado por novas convenções que o reduzem à condição de pirosidade. Para se encostarem ao calor do outro, precisam dos subterfúgios do encontrão. Acho-os patéticos, palhaços, na sua indumentária arrancada a fotografias de velhos álbuns de família, eles mesmos antiquados, decadentes, triste geração de falência e frivolidade. Sabem tudo sobre drogas leves e pesadas, sexo, conhecimento que décadas antes era património de ricos e velhos sátiros. Do amor nada sabem, crianças cegas, inexperientes, jogadas fora para o precipício indiferente do destino.

Cogitava eu nestes assuntos melancólicos, quando o rapaz da camisa cor de salmão me abordou:

— Então, encontrou o tipo que procurava?

Inclinei-me para ele e berrei também:

— Não, mas nem o conheço, talvez tu me possas ajudar — respondi, simpatizando com o seu olhar vivo, a solidez que lhe transparecia no corpo duro, limpo, de musculatura trabalhada.

— Desde que não seja para lixar ninguém... — cortou-se ele. — Isto é tudo malta porreira, não se deixe impressionar pelo aspeto...

— Esta noite morreu uma pintora em circunstâncias que exigem inquérito — expliquei. — Disseram-me que encontraria aqui um amigo dela, um pintor.

— Como se chama o gajo?

— Não me souberam dizer.

— E a pintora, quem é?

— Xandra Duarte, conheces?

— A Xandra? A Xandra morreu?! — alarmou-se o rapaz. Que notícia bera à brava, custa a acreditar!

— Conhecias?

— Claro, quem não conhece? Está com uma exposição de litografias na Galeria Différence! Fui à inauguração há coisa de um mês, deve estar a acabar.

— Boa informação, hei-de lá dar um salto.

— Mas a Xandra morreu, diz o senhor? Morreu como?

— Se eu soubesse, não precisava se calhar de andar por aqui, à procura de nem sei quem... — suspirei, desanimado. — O encalacranço, por agora, é esse: não se sabe. Não se faz a mais pálida ideia. Apareceu morta de um momento para o outro, é tudo.

No se teria suicidado?

— Nada aponta para esse lado... Tu, que a conheceste, achas que era mulher para se suicidar?

— Sei lá!... Falei por falar...

— Como te chamas?

— Fino... A Xandra era uma pessoa introvertida, que nunca falava dos seus problemas... Tinha coisas estranhas...

— Por exemplo?

— Por exemplo, às vezes recusava convites para isto ou para aquilo se calhavam em certo dia da semana e a certa hora...

— Porquê?

— Houve um dia em que eu mesmo a convidei para uma festa e ela me disse que não podia ir porque àquela hora tinha de ouvir um programa de rádio... Ninguém, em seu estado normal, troca uma festa por uma coisa dessas...

A curiosidade punha-me faíscas na imaginação, de novo a imagem da morta se me apresentou na memória com nitidez absoluta: tombada diante da aparelhagem de alta fidelidade, com os auscultadores na cabeça.

— Lembras-te do dia e da hora a que ela pelos vistos ouvia o tal programa?

— No faço ideia, não me disse sequer que programa era...

— Bom, essa tal festa para que a convidaste, quando foi?

— Ah sim, era um sábado, como hoje. Sábado, nove da noite...

— Como hoje... — eu, absorto. — Hoje é sábado... Esse pintor, que ia a casa dela com frequência, disseram-me que é um tipo alto e magro...

— Tipos altos e magros há muitos... — gritou-me o Fino à orelha, apesar de o turbilhão rock ter dado lugar a um intervalo musical menos barulhento.

— Parece que o gajo tem umas manias, só trabalha de noite, nestes sítios... Põe-se a um canto com a pasta e o marcador e vai apontando cenas...

— O Gilberto?! Já podia ter dito... Pois, só pode ser o Gilberto. Já aqui esteve, já, e ainda deve estar... A menos que tenha ido até ao Fragilidades...

As luzes apagaram-se, sinal de mudança. Não sei a onde aquelas criaturas iam buscar tanta energia! As vidraças tilintavam sob o impacto da gritaria. Quando se acenderam de novo, actrizitas mascaradas de coristas trepavam a pulso para o palco, impedidas pela horda de punks de usarem os degraus próprios para o efeito. Só então reparei na fila de actores colados às paredes, impassíveis, cosidos nas folhas de jornal que as revestiam. Ali estava a origem dos arames semeados no chão e bolas de papel atiradas ao ar. A situação invertia-se, eram as personagens de uma cena sem acção que observavam a minha atitude, comentavam em silêncio, espectavam. Olhei à volta: mais nenhum dos actores forçados, como eu, a representarem um papel nunca lido, me dava atenção. O orgulho policial sentiu-se um pouco ultrajado.

Em posição de evidência, no palco, um rapaz semi-embalado em manga de plástico negro balouçava para um lado e para o outro, abanando o toucado vagamente parecido com um pepino. As coristas despiam-no, em jogo de sedução trapalhona. Era um belo jovem, algo efeminado, de rosto angélico emoldurado por um bigode ralo e farripas de cabelo claro. Estava inseguro no seu boneco imperturbável. Agitava-se num balanço discreto sobre as altas pernas depiladas, sem sair do mesmo lugar. Armadas de navalha, as raparigas tocam, afagam, despem, fingem cravar a lâmina naquele corpo de brancuras áridas. Um frasco de groselha esvaziado no ombro traça-lhe, na palidez, sulcos de um sangue frágil. Agora o rapaz está plantado em cena como árvore de carne, o pepino na cabeça e o sexo oculto num slip escuro. Deve ter sido um golpe de mágica: de repente o slip negro desaparece, sobra-lhe nas mãos um falo enorme, verde, em espuma de matéria plástica. Sacode-o com furor para escorraçar as coristas, as vidraças tilintam de novo com o espasmo da gritaria. A luz apaga-se, a cena morre, a dança dos encontrões recomeça, com as inevitáveis cabeças como pêndulos a abanarem a crista de cabelos em pé.

 

Revista de Artes, Religiões e Ciências
Nº 02 | Novembro de 2009

MARIA ESTELA GUEDES (Britiande, Portugal, 1947)
Escritora, editora, agente cultural. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro (Lisboa, Moraes Editores); Ernesto de Sousa - Itinerário dos itinerários (Lisboa, ed. Museu Nacional de Arte Antiga); Tríptico a Solo (São Paulo, Editora Escrituras); Chão de Papel (Lisboa, Apenas Livros); Geisers (Bembibre, ed. Incomunidade). Obras levadas à cena: O Lagarto do Âmbar (ACARTE); A Boba (teatro Experimental de Cascais).
Currículo em:  http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
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