Fui até à casa-de-banho,
preocupado com o pintor. O chão de cimento,
inundado. Um tipo entretinha-se com urna
seringa, sentado na pia, a porta aberta.
Mais longe, num pequeno grupo de gente com
todo o ar de viver noutro mundo, uma
rapariguinha de cabelos azuis, meias pretas de
renda visíveis até ao cinto de ligas sob o
casaco onde cabiam três dela, amolecia uma
placa de haxe em papel de prata sob a
trémula chama do isqueiro. Dei meia volta
sobre os calcanhares, a minha área não é a
dos narcóticos e
nunca fui capaz de alinhar no dramatismo que
habitualmente se imprime ao uso deles. Claro
que há os casos extremos, mas não
generalizemos. Então e Sherlock Holmes? A
sua
capacidade dedutiva depende da
companhia da seringa. Talvez os tempos não
sejam outros, as modas se repitam. Vi
tanta coisa na sala da vítima e ainda mais
vejo aqui, porém nada do que vejo adianta um
milímetro à investigação.
Estarei cego? Um grão daquilo, um
átomo de loucura, dar-me-á lucidez para
descobrir o sentido oculto da morte? Ninguém
morre assim, de um instante para o outro, de
auscultadores na cabeça e microfone na mão,
defronte de uma aparelhagem inofensiva de
alta fidelidade. E eu que te fui sempre
fiel, querida! Raios, sinto-me um farrapo,
atirado sem paixão para a valeta. Por infidelidade,
sim, é mais
corrente morrer-se. Crimes passionais são os que ocupam
o primeiro lugar nas estatísticas pobres do
nosso pobre país
—
e quem sou para nos julgar a todos?
Nem rasto do pintor. Já nada
espero dele, excepto que surja em cena
como revelação de si mesmo. Tanto que o
procurei na ânsia de informações sobre o que
lhe é certamente alheio, que agora me mortifico
à
espera dele. Posta a minha morta mulher à distância,
tratemos de encontrar o vivo. Decido-me,
sacudo os ombros do torpor, vou
determinar-me a abandonar a festa, ainda há tempo
para
dar um salto ao Bairro Alto.
— Adeus, Fino!
— aceno com ar combativo de
pantera ao rapaz da camisa cor de salmão. Na
rua voltei a pôr a gravata, entrei no carro
e liguei o rádio. Sem dar conta, cantarolei
com eles a canção em voga:
Perhaps love is like the ocean,
full of conflict, full of
pain!... |
MARIA ESTELA
GUEDES (Britiande, Portugal, 1947)
Escritora, editora, agente cultural.
Alguns livros publicados:
Herberto Helder, Poeta Obscuro
(Lisboa, Moraes Editores);
Ernesto de Sousa - Itinerário dos
itinerários (Lisboa, ed. Museu
Nacional de Arte Antiga);
Tríptico a Solo (São Paulo,
Editora Escrituras); Chão de
Papel (Lisboa, Apenas Livros);
Geisers (Bembibre, ed.
Incomunidade). Obras levadas à cena:
O Lagarto do Âmbar (ACARTE);
A Boba (teatro Experimental
de Cascais).
Currículo em:
http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
Proprietária do TriploV.
CONTATO:
estela@triplov.com |