Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

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PARTE I - UMA FESTA PUNK
(Revista TriploV, nº 2, Novembro de 2009)

 

7. E Sherlock Holmes?

Fui até à casa-de-banho, preocupado com o pintor. O chão de cimento, inundado. Um tipo entretinha-se com urna seringa, sentado na pia, a porta aberta. Mais longe, num pequeno grupo de gente com todo o ar de viver noutro mundo, uma rapariguinha de cabelos azuis, meias pretas de renda visíveis até ao cinto de ligas sob o casaco onde cabiam três dela, amolecia uma placa de haxe em papel de prata sob a trémula chama do isqueiro. Dei meia volta sobre os calcanhares, a minha área não é a dos narcóticos e nunca fui capaz de alinhar no dramatismo que habitualmente se imprime ao uso deles. Claro que há os casos extremos, mas não generalizemos. Então e Sherlock Holmes? A sua capacidade dedutiva depende da companhia da seringa. Talvez os tempos não sejam outros, as modas se repitam. Vi tanta coisa na sala da vítima e ainda mais vejo aqui, porém nada do que vejo adianta um milímetro à investigação. Estarei cego? Um grão daquilo, um átomo de loucura, dar-me-á lucidez para descobrir o sentido oculto da morte? Ninguém morre assim, de um instante para o outro, de auscultadores na cabeça e microfone na mão, defronte de uma aparelhagem inofensiva de alta fidelidade. E eu que te fui sempre fiel, querida! Raios, sinto-me um farrapo, atirado sem paixão para a valeta. Por infidelidade, sim, é mais corrente morrer-se. Crimes passionais são os que ocupam o primeiro lugar nas estatísticas pobres do nosso pobre país e quem sou para nos julgar a todos?

Nem rasto do pintor. Já nada espero dele, excepto que surja em cena como revelação de si mesmo. Tanto que o procurei na ânsia de informações sobre o que lhe é certamente alheio, que agora me mortifico à espera dele. Posta a minha morta mulher à distância, tratemos de encontrar o vivo. Decido-me, sacudo os ombros do torpor, vou determinar-me a abandonar a festa, ainda há tempo para dar um salto ao Bairro Alto.

— Adeus, Fino! — aceno com ar combativo de pantera ao rapaz da camisa cor de salmão. Na rua voltei a pôr a gravata, entrei no carro e liguei o rádio. Sem dar conta, cantarolei com eles a canção em voga:

Perhaps love is like the ocean,

full of conflict, full of pain!...

E agora?!!...

Revista de Artes, Religiões e Ciências
Nº 02 | Novembro de 2009

MARIA ESTELA GUEDES (Britiande, Portugal, 1947)
Escritora, editora, agente cultural. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro (Lisboa, Moraes Editores); Ernesto de Sousa - Itinerário dos itinerários (Lisboa, ed. Museu Nacional de Arte Antiga); Tríptico a Solo (São Paulo, Editora Escrituras); Chão de Papel (Lisboa, Apenas Livros); Geisers (Bembibre, ed. Incomunidade). Obras levadas à cena: O Lagarto do Âmbar (ACARTE); A Boba (teatro Experimental de Cascais).
Currículo em:  http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
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