— Você conhece
um pintor chamado Gilberto? - perguntei ao
barman, erguendo bem a voz. Ele ficou de
shaker parado no ar:
— Quem não
conhece o Gilberto? — entediou-se. — Um
pinta-monos, que não tem a noção do movimento,
só faz bonecos parados numa única
dimensão...
Engoli em
seco, nervoso. Aquilo devia ser resultado da
campanha Pintasilgo, que mobilizava tudo
quanto era agente cultural, desde escritores
a músicos, a pintores e o diabo a quatro. A
própria reinvenção da pintura devia ser obra
dela, todos a queixarem-se, antes, de que a
pintura tinha acabado, os pintores só faziam
happenings, instalações, multimédia e
performances. Ainda queriam mais pintores?
Nos últimos anos tinham brotado do chão
lêvedo de cultura como cogumelos. Achei melhor para o meu
acesso de angústia espairecer um pouco,
percorrendo os curtos corredores daquele sofrível labirinto.
Não era assim tão difícil encontrar o
Gilberto, mas ele não estava à vista. Não,
não descobri nenhum
pintor em acto, a retratar os frequentadores
do bar, por isso voltei ao
ponto de partida, acocorando-me ao pé do garoto pós-moderno que, por isso mesmo, por ser
pós-modermo, se achava em plena crise de
abandono, isolamento e solidão.
— Viste o
Gilberto, o pintor? — perguntei. Os amigos,
num grupo diferente, ouviam sem ouvir uma
loura exuberante, que traçava a perna sobre
meias pretas tecidas de flores. O puto
ergueu para mim a cabeça de andorinha, cheia
de caracóis, os
olhos grandes e doces:
— O Gilberto
estava aí há pedaço, vi-o com a pasta de
desenho, ele vem cá só para trabalhar.
— Ah —
suspirei. — Já dei por aí umas voltas e não está
cá
ninguém a desenhar...
— Se calhar
foi-se embora, hoje há uma festa punk no
Teatro da Revolução, deve ter ido para
lá... Estou sem massa nenhuma, não me paga
uma cerveja?
Chamei o
empregado, pedi-lhe a bebida. O garoto
abriu-se num leque de simpatia:
- O senhor
é amigo do Gilberto?
— Não
propriamente, queria era falar com ele.
— É um tipo
porreiro, muito calmo, de poucas
conversas...
— Gostas do
que ele faz?
— É giro...
Trabalha em série, só nestes sítios, está a
ver?
— Sítios onde
se bebe e dança, onde há movimento...
—
Movimento!... — encolheu os ombros como
quem discorda, e acrescentou: — Pois, ele
desenha em série... Uma data de desenhos
para cada cena... Só variantes mínimas de um
assunto reduzido ao essencial, no fundo ele
vem ainda da arte minimal...
— Disseram que
não tem a noção do movimento nem da
perspectiva...
— Ora! A
perspectiva tem como efeito uma ilusão de
planos em profundidade. Profundidade!Só
querem profundidade, são todos uma cambada de
parvos a armarem em génios, gente de ideias
profundas! Não sabem nada, falam de tudo como
se tivessem visto e lido e ouvido, mas basta
ver a vida deles, hem? Passam aqui a noite,
dormem até às quinhentas, vão jantar ao 31 da
Armada, vêm para aqui passar a noite metidos
nos copos! Que tempo lhes sobra para se
informarem de facto do que papagueiam? — o
puto excitava—se, que fazia ali se se
considerava diferente dos outros?
— Achas que são
frívolos?
— Quando um
burro larga um relincho num jornal, depois
todos os parvos sem ideias próprias desatam
a repetir a mesma coisa! Eu pertenço à
geração pós-moderna, nunca me senti tão
isolado na merda da vida! — lágrimas verdadeiras
afloram-lhe aos
olhos. — «Bonecos parados num espaço sem a noção de perspectiva», foi o que escreveu o
piroso do Queirós, que por acaso é um bêbado que anda por aí sempre atrás
de mim! Eu já não aguento mais, sinto-me
completamente só!
— O que é que tu
fazes?
— Pinto,
também. Que havia eu de fazer?
— Não concordas
então com o que se diz do Gilberto...
— O senhor já
reparou nesta gente? Estes que para aqui vêm
é
que são bonecos sem movimento, sem
perspectivas nem dimensões! O Gilberto anda
numa de desenho animado, não sei se
percebe... Gajo giro, muito minimalista...
— Onde é que ele
mora, sabes?
— Não faço
ideia nenhuma...
— E a pintora
Xandra, conheces?
— São amigos,
essa é que deve saber onde ele mora. Porque
não lhe pergunta?
A sensação de
angústia voltou a apertar-me o coração. Não
tanto por me causar sofrimento a morte
súbita da pintora. Na minha profissão, a
morte é uma presença a que a gente se
habitua, embora aquela não me deixasse
indiferente... Simpatizara com ela, com a
casa, não a conhecera mas o rosto aparecia-me
em filme na lembrança, sorrindo, passando,
vivendo... A imagem tornava-se-me familiar,
era curioso. De um modo geral, nos casos de
homicídio, o que menos interessa é a vítima. Esquecemo-nos dela,
passa a objecto investigável, mas só
objecto... Corpus, se tanto. Um corpo
documental, analisável. Morreu, acabou! Só
importa deslindar o crime para prender o criminoso.
Isto feito, a sociedade sente-se segura. Com
esta não era assim, sentia-me esquisito,
interessado por ela, confundia com ela a
minha mulher, obcecava-me um pintor
que certamente nada tinha a ver com o caso...
Inquieto, sinto-me
inquieto com o rosto da vítima e, quando a
recordo, oiço música... Oiço, são os UHF...
Mas não era esta a música que tinha
infiltrada na memória... — Xandra! —
chamo alto, distraído. |
— O menino
pintor ergueu para mim os grandes olhos
surpreendidos com aquele grito:
— É, pergunte
à Xandra, ela deve saber... — assentiu ele,
com sorriso de quem compreendia.
E porque não?,
pensei. Porque não perguntar à morta? Desiludido,
preparava-me para regressar ainda ao local
do crime, quando o tal Queirós,
crítico de arte, se abeirou de nós, disposto
a meter conversa.
— Por amor de
Deus, não me deixe aqui sozinho com ele! —
implorou o garoto, agarrando-me o braço. No
rosto pálido passava-lhe uma
aguada de cal, afligi-me: ainda era capaz de
desmaiar ali.
— Estás tão amarelito, Pedro — enterneceu-se o crítico,
assentando-se no chão encostado a ele. —
Sentes-te mal?
— Não, estou
porreiro — murmurou, afastando-se um pouco.
— Isto é da cerveja, já bebi meia dúzia delas
esta noite!
— Queres vir
até ao meu apartamento? Arranjo-te uns ovos,
um leitinho quente...
O puto —
Pedro, como afinal se chamava — olhava para
mim como náufrago à espera de tábua
salvadora. Não disse nada, aguardei, até ver
em que paravam as modas. Aquele Queirós, na
sua solicitude interesseira, agoniava-me.
— Ia-te fazer
bem, meu filho!... — insiste o homem, as
palavras numa ternura mole, as barbas
húmidas a roçarem os anéis do cabelo do puto.
— Não me dá
jeito nenhum, desculpe! Estou à espera do
Gilberto! — esquiva-se o Pedro, à míngua de
melhor expediente de desengate.
— Mas que
Gilberto!... — azeda o outro, cada vez
mais colado ao garoto. — Tenho em casa uma
coisa capaz de pôr um morto em pé, anda
daí...
Felizmente a
música subia ao tecto, nada do que o Pedro
respondeu ao Queirós foi percebido. Era um
LP antigo, já dos anos 70, mas os Pink Floyd
estão sempre na moda... |
O rapaz
esquivava-se mal aos pretextos do Queirós
para lhe passar as mãos por cima. Cambaleou
ao tentar levantar-se, sacudia-se do
contacto com irritação:
— Largue-me, não preciso de muletas!
— estoirou. Eu já não
aguento mais, pertenço à geração pós-moderna,
nunca me senti tão só na minha vida!
— Por isso
mesmo — acudiu logo o Queirós. — Anda, que
eu levo-te para casa!
Resolvi
interferir, afinal o rapaz tinha-me pedido
ajuda. Da maneira como os olhos se lhe
nublavam, não tardava ainda ali vomitava a
meia dúzia de cervejas que dizia ter bebido.
— Eu levo-o a
casa, dá-me licença? — interrompi, erguendo o
puto à força de pulso.
— Mas o que
é isto? — chateou-se o crítico. — Leva-o agora a casal Não vê que está a cair de bêbado? — e as
barbas do tipo azedavam.
— Moro aqui ao lado, é só um saltinho!
— Eu levo-o a
casa, já disse! — afastando o tipo, saí
porta fora com o puto, a bem dizer debaixo
do braço.
A elefantina
segurança desviou diplomaticamente o olhar
ao abrir a porta.
Na rua, uma
vergasta de vento na cara a alertar-nos.
— Isto é uma tortura,
não posso vir aqui que o gajo mete-se logo
comigo, e a mim dá-me raiva, ando sempre a
fugir dele...
Podia ter
bebido até uma dúzia de cervejas, mas o
Pedro não estava bêbado. |