Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

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PARTE II - FRAGILIDADES, LISBOA

1. O enigma da cassette que não se sabia se existia

Bem, vamos lá então ao Fragilidades, o bar da moda, no Bairro Alto... Há um certo esplendor na cidade, à noite, quando as ruas ficam desertas e as luzes olham fixamente para nós ou quebram as pestanas como estrelas cadentes no asfalto vidrado pela chuva. Os anúncios silenciosos na sua tagarelice intermitente, um halo de rubor sobre Monsanto a evocar restos de um poente vibrante, os faróis dos carros a varrerem as fachadas entenebrecidas dos prédios Valmor. Gosto de andar só, noite funda, sinto nas costas um peso de ameaça e simultaneamente de melancolia que me exacerbam a sensibilidade. Quase um Cesário Verde. Ah, acho-me livre, literato, sobe por mim acima uma euforia mansa que o pânico agita, o olhar torna-se fino, desconfiado, mal ouso bater as pálpebras, não vá nesse intervalo alguém sair de um beco para me cravar um punhal na sombra. Algures, talvez no coração, uma ansiedade indefinida tece uma teia de encanto. Sinto-o, um pássaro pequeno, abrigado sob as próprias asas, respira.

Rua de Campolide, estreita e avelhantada; Amoreiras, com as suas torres de um moderno castelo medieval, lembram Oriana e as novelas de cavalaria. Os reflexos deslizam pelas paredes de vidro, julgo-me habitante de um planeta fosfórico. Rolo devagar em direcção ao Rato, largas faixas de muro sorriem ao ver-me passar. Os quatro candidatos coabitam, lado a lado, os sorrisos colados à fragilidade dos cartazes. Qual deles vai ganhar as eleições? Gostava que fosse a Pintasilgo.

“Soares Presidente”, responde o painel luminoso da sede do PS, já o carro entra na Rua da Escola Politécnica, o reverbero a criar uma bandeira de luz verde e vermelha no retrovisor. Sigo com uma rosa na boca, Rose, c'est la vie... C'est la rose l'important, oiço, ao sintonizar o aparelho de rádio... Gilbert Bécaud, uma voz no escuro, trazida por quem? Nem Aníbal Cabrita nem Jaime Fernandes, não têm esse perfil... C'est la rose l'important, embora eu preferisse o arco-íris... Talvez o João David Nunes? O João David Nunes prefere a Diana Ross... Crois-moi, a rosa é que é importante, embora eu preferisse a Pintasilgo...

 

E o pintor?, pergunto à lua, cigana de prata na orelha da noite, pendurada acima do jardim do Príncipe Real. Ah!, faz ela, descuidada, virando o rosto para não responder. Desejava encontrá-lo como se fosse uma mulher, aquela que se precipita num charco de fatalidade e nos obriga a dizer: eis a mulher da minha vida, a minha, minha mulher... Pois é, querida, deixaste-me... Tenho saudades tuas, tantas... Não sei o que aconteceu entre nós para teres batido assim as asas... E eu amo-te como sempre, como no primeiro dia de casados, amo-te tanto que nem consigo dizer-te o nome...

Concordo, na minha cabeça movia-se tudo, excepto um raciocínio de polícia. E o que é um raciocínio de polícia? Um conjunto de estereótipos subtraídos dos filmes negros americanos, mais requintadamente do Maigret do Simenon, e o meu favorito, cheio de tiques e fantasias caricaturais, o super-fino Poirot..., ah, caraças! - por pouco escapei a um choque desse filho da puta que pensa que a rua é só dele, vai esfregar colchões no quintal da tua avó, ó Orangotango! Estou com isto a insultar os macacos, e logo esses, bem parecidos connosco, e cá com uma pelagem ruiva que só te digo!...

Vivia um dia singular, lírico. Noutras circunstâncias, estaria a dormir, ciente de que os subordinados se desincumbiriam rapidamente da tarefa de virar Lisboa do avesso até descobrirem o maldito pintor. Tomava o caso nas mãos como se fosse pertença minha, um crime privativo, que talvez nem crime tivesse sido. E a maldita cassette, onde estaria? Uma mulher morta diante da aparelhagem Hi-Fi, auscultadores de profissional da rádio na cabeça, micro na mão, está a gravar, não estará? A gravar o quê, raios, se não havia cassette nenhuma na merda do gravador? Alguém a retirou antes da nossa chegada, ou nunca houve cassette nenhuma a gravar? O assassino, só ele pode ter levado a cassette... Tinha de ser pessoa conhecida para entrar assim em casa, com chave sua... É, entrou, ela não deu conta, de costas para a porta e com os auscultadores na cabeça... E ele ouviu o que ela estava a gravar... Algo muito comprometedor, só podia ser... Mas como a terá morto para não haver sinais de crime? Nem marcas na garganta, nem equimoses, ainda menos fracturas... Também não a sufocou... De qualquer modo, se está morta, é porque a matou e, depois de a ter morto, levou a cassette...

Por falar nisso, deixa-me sintonizar... Ah, aqui sim, é o programa do Aníbal Cabrita. Mesmo o oposto dos Berros e Gritos, só escolhe música de adoçar o coração a um assassino em série... Onde terá ele ido descobrir estes Durutti Column? Derrete calhaus tanto açúcar, isto é só mel, mel e muita melancolia...

The Durutti Column, «Never Know»

Revista de Artes, Religiões e Ciências, nº 03 | Janeiro de 2010

MARIA ESTELA GUEDES (Britiande, Portugal, 1947)
Escritora, editora, agente cultural. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro (Lisboa, Moraes Editores); Ernesto de Sousa - Itinerário dos itinerários (Lisboa, ed. Museu Nacional de Arte Antiga); Tríptico a Solo (São Paulo, Editora Escrituras); Chão de Papel (Lisboa, Apenas Livros); Geisers (Bembibre, ed. Incomunidade). Obras levadas à cena: O Lagarto do Âmbar (ACARTE); A Boba (teatro Experimental de Cascais).
Currículo em:  http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
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