1.
O enigma da cassette que não se sabia se
existia
Bem, vamos lá
então ao Fragilidades, o bar da moda, no
Bairro Alto... Há um certo
esplendor na cidade, à noite, quando as ruas
ficam desertas e as luzes olham fixamente
para nós ou quebram as pestanas como
estrelas cadentes no asfalto vidrado pela
chuva. Os anúncios silenciosos na sua
tagarelice intermitente, um halo de rubor
sobre Monsanto a evocar restos de um poente
vibrante, os faróis dos carros a varrerem as
fachadas entenebrecidas dos prédios Valmor.
Gosto de andar só, noite funda, sinto nas
costas um peso de ameaça e simultaneamente
de melancolia que me exacerbam a
sensibilidade. Quase um Cesário Verde. Ah, acho-me livre,
literato, sobe por mim acima uma euforia
mansa que o pânico agita, o olhar torna-se
fino, desconfiado, mal ouso bater as
pálpebras, não vá nesse intervalo alguém
sair de um beco para me cravar um punhal na
sombra. Algures, talvez no coração, uma
ansiedade indefinida tece uma teia de
encanto. Sinto-o, um pássaro pequeno,
abrigado sob as próprias asas, respira.
Rua de
Campolide, estreita e avelhantada;
Amoreiras, com as suas torres de um moderno
castelo medieval, lembram Oriana e as
novelas de cavalaria. Os reflexos deslizam
pelas paredes de vidro, julgo-me habitante
de um planeta fosfórico. Rolo devagar em
direcção ao Rato, largas faixas de muro
sorriem ao ver-me passar. Os quatro
candidatos coabitam, lado a lado, os
sorrisos colados à fragilidade dos cartazes.
Qual deles vai ganhar as eleições? Gostava
que fosse a Pintasilgo.
“Soares
Presidente”, responde o painel luminoso da
sede do PS, já o carro entra na Rua da
Escola Politécnica, o reverbero a criar uma
bandeira de luz verde e vermelha no
retrovisor. Sigo com uma rosa na boca, Rose,
c'est la vie... C'est la rose l'important,
oiço, ao sintonizar o aparelho de rádio...
Gilbert Bécaud, uma voz no escuro, trazida
por quem? Nem Aníbal Cabrita nem Jaime
Fernandes, não têm esse perfil... C'est
la rose l'important, embora eu
preferisse o arco-íris... Talvez o João
David Nunes? O João David Nunes prefere a
Diana Ross... Crois-moi, a rosa é que é
importante, embora eu preferisse a
Pintasilgo...
E o pintor?,
pergunto à lua, cigana de prata na orelha da
noite, pendurada acima do jardim do Príncipe
Real. Ah!, faz ela, descuidada, virando o
rosto para não responder. Desejava
encontrá-lo como se fosse uma mulher, aquela
que se precipita num charco de fatalidade e
nos obriga a dizer: eis a mulher da minha
vida, a minha, minha mulher... Pois é,
querida, deixaste-me... Tenho saudades tuas,
tantas... Não sei o que aconteceu entre nós
para teres batido assim as asas... E eu
amo-te como sempre, como no primeiro dia de
casados, amo-te tanto que nem consigo
dizer-te o nome...
Concordo, na
minha cabeça movia-se tudo, excepto um
raciocínio de polícia. E o que é um
raciocínio de polícia? Um conjunto de
estereótipos subtraídos dos filmes negros
americanos, mais requintadamente do Maigret
do Simenon, e o meu favorito, cheio de
tiques e fantasias caricaturais, o
super-fino Poirot...,
ah, caraças! - por pouco escapei a um choque
desse filho da puta que pensa que a rua é só
dele, vai esfregar colchões no quintal da
tua avó, ó Orangotango! Estou com isto a
insultar os macacos, e logo esses, bem
parecidos connosco, e cá com uma pelagem
ruiva que só te digo!...
Vivia um dia
singular, lírico. Noutras circunstâncias,
estaria a dormir, ciente de que os
subordinados se desincumbiriam rapidamente
da tarefa de virar Lisboa do avesso até
descobrirem o maldito pintor. Tomava o caso
nas mãos como se fosse pertença minha, um
crime privativo, que talvez nem crime
tivesse sido. E a maldita cassette, onde
estaria? Uma mulher morta diante da
aparelhagem Hi-Fi, auscultadores de
profissional da rádio na cabeça, micro na
mão, está a gravar, não estará? A gravar o
quê, raios, se não havia cassette nenhuma na
merda do gravador? Alguém a retirou antes da
nossa chegada, ou nunca houve cassette
nenhuma a gravar? O assassino, só ele pode
ter levado a cassette... Tinha de ser pessoa
conhecida para entrar assim em casa, com
chave sua... É, entrou, ela não deu conta,
de costas para a porta e com os
auscultadores na cabeça... E ele ouviu o que
ela estava a gravar... Algo muito
comprometedor, só podia ser... Mas como a
terá morto para não haver sinais de crime?
Nem marcas na garganta, nem equimoses, ainda
menos fracturas... Também não a sufocou...
De qualquer modo, se está morta, é porque a
matou e, depois de a ter morto, levou a
cassette...
Por falar
nisso, deixa-me sintonizar... Ah, aqui sim,
é o programa do Aníbal Cabrita. Mesmo o oposto dos
Berros e Gritos, só escolhe música de adoçar
o coração a um assassino em série... Onde
terá ele ido descobrir estes Durutti Column?
Derrete calhaus tanto açúcar, isto é só mel, mel e
muita melancolia...
The Durutti
Column, «Never Know»
Revista de
Artes, Religiões e Ciências,
nº 03 | Janeiro de 2010
MARIA ESTELA
GUEDES (Britiande, Portugal, 1947) Escritora, editora, agente cultural.
Alguns livros publicados:
Herberto Helder, Poeta Obscuro
(Lisboa, Moraes Editores);
Ernesto de Sousa - Itinerário dos
itinerários (Lisboa, ed. Museu
Nacional de Arte Antiga);
Tríptico a Solo (São Paulo,
Editora Escrituras); Chão de
Papel (Lisboa, Apenas Livros);
Geisers (Bembibre, ed.
Incomunidade). Obras levadas à cena:
O Lagarto do Âmbar (ACARTE);
A Boba (teatro Experimental
de Cascais).
Currículo em:
http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
Proprietária do TriploV.
CONTATO:
estela@triplov.com