Na maior
parte, jovens. Conversam
molemente, em gestos lânguidos, pejados de
gel nas cabeleiras onduladas e nas sedutoras intenções. As costas curvadas, os ombros numa
linha oblíqua, atitudes de quem pensa,
discorre sobre ideias abissais,
deslocando-se em câmara lenta, como quem
está irremediavelmente cansado da vida. Ou
como quem se considera fatal, íman de
irresistível interesse. Talvez soubessem
tudo, e eu, nada. Os olhos presos a um casal
que saía, apressado. O coração caiu-me aos pés,
fiquei gelado: senti a noite morrer por mim
abaixo, o silêncio
acocorar-se, apesar de se ouvir música, sim,
uma bela canção a falar de estrelas... Desmoronava-me
da cabeça aos pés, um soluço escapou da
desarmada garganta.
Silêncio de estrelas, ouvia as estrelas em
fundo a rodearem-me como abelhas, a zumbirem
à volta da cabeça... Não há estrelas no céu,
todas fizeram enxame para me zumbirem à
volta da cabeça, vou desmaiar... «Ei!,
mariconço!» zumbe-me ao ouvido uma das
abelhas, enquanto me segura pelo cotovelo...
O que eu acabei de ouvir, não posso pensar
nisso agora, ou o chicote do comentário
acaba comigo de vez... Os polícias
também sofrem, choram, desmaiam...
Concentra-te na música, vá! Distrai-te ou
ainda cais aí no chão feito um meteorito
parvo...
«Não há
estrelas no céu», canta o Rui Veloso.
Nenhuma, nenhuma. Estou um farrapo, passou
por mim um ciclone, varreu-me a honra, o
orgulho, a decência de ser homem...
Rui Veloso,
«Não há estrelas no céu»
Um tipo alto,
alourado, passa-lhe o braço pelos ombros, como quem
protege a sua propriedade, os seus bens, a
sua mulher. Mas era a minha, a Marta. Marta,
Marta! - grito eu por dentro, sem que uma
sílaba suba acima do zumbido das estrelas
que se fundem na fumarada de cigarro...
Marta!... Está tudo acabado, tudo...
Nem
para mim olhou, não me deve ter visto.
Fechada a porta do bar sobre a catástrofe,
continuava a fitá-la, mais paralisado que
uma estátua.
Incapaz de reagir, de raciocinar: estás
separado, carambal Ela já não é tua mulher!
Não conseguia habituar-me à ideia de que já
não era minha, soava-me a falso dizer
comigo: «a Marta», como se não fosse minha,
minha mulher. Há meses que já não vivíamos
juntos e continuava a falar dela como
sendo a minha mulher... A minha mulher
acaba de sair do Fragilidades debaixo de
um abraço estranho, deixando-me petrificado de sofrimento, um farrapo atirado para as
lixeiras do abandono e do abuso sexual
desses machistas cagões.
Tudo morria à
minha volta, também eu me sentia morto,
vazio, com uma vontade irreprimível de me
abandonar a uma crise de choro. Quero lá
saber que me chamem maricas! E o que é isso
de maricas? Alguém pode firmar-se no chão do
absolutamente isto ou aquilo em matéria
sexual?
Pressinto o
olhar dos
outros a cercarem-me em comentários
ordinários, outros em cúmplices sussurros,
conhecem-me... Os olhos emitem chispas de
açúcar, em convites que
me desagradam. Em sua intenção arranquei do
tecto uma das máscaras para a colocar
imaginariamente diante do rosto.
Não me
apetece oferecer-vos o espectáculo da
minha morte súbita.
Revista de
Artes, Religiões e Ciências,
nº 03 | Janeiro de 2010
MARIA ESTELA
GUEDES (Britiande, Portugal, 1947) Escritora, editora, agente cultural.
Alguns livros publicados:
Herberto Helder, Poeta Obscuro
(Lisboa, Moraes Editores);
Ernesto de Sousa - Itinerário dos
itinerários (Lisboa, ed. Museu
Nacional de Arte Antiga);
Tríptico a Solo (São Paulo,
Editora Escrituras); Chão de
Papel (Lisboa, Apenas Livros);
Geisers (Bembibre, ed.
Incomunidade). Obras levadas à cena:
O Lagarto do Âmbar (ACARTE);
A Boba (teatro Experimental
de Cascais).
Currículo em:
http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
Proprietária do TriploV.
CONTATO:
estela@triplov.com