Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

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PARTE II - FRAGILIDADES, LISBOA

3. Quem havia eu de ver no bar?!...

Na maior parte, jovens. Conversam molemente, em gestos lânguidos, pejados de gel nas cabeleiras onduladas e nas sedutoras intenções. As costas curvadas, os ombros numa linha oblíqua, atitudes de quem pensa, discorre sobre ideias abissais, deslocando-se em câmara lenta, como quem está irremediavelmente cansado da vida. Ou como quem se considera fatal, íman de irresistível interesse. Talvez soubessem tudo, e eu, nada. Os olhos presos a um casal que saía, apressado. O coração caiu-me aos pés, fiquei gelado: senti a noite morrer por mim abaixo, o silêncio acocorar-se, apesar de se ouvir música, sim, uma bela canção a falar de estrelas... Desmoronava-me da cabeça aos pés, um soluço escapou da desarmada garganta. Silêncio de estrelas, ouvia as estrelas em fundo a rodearem-me como abelhas, a zumbirem à volta da cabeça... Não há estrelas no céu, todas fizeram enxame para me zumbirem à volta da cabeça, vou desmaiar... «Ei!, mariconço!» zumbe-me ao ouvido uma das abelhas, enquanto me segura pelo cotovelo... O que eu acabei de ouvir, não posso pensar nisso agora, ou o chicote do comentário acaba comigo de vez... Os polícias também sofrem, choram, desmaiam... Concentra-te na música, vá! Distrai-te ou ainda cais aí no chão feito um meteorito parvo...

«Não há estrelas no céu», canta o Rui Veloso. Nenhuma, nenhuma. Estou um farrapo, passou por mim um ciclone, varreu-me a honra, o orgulho, a decência de ser homem...

Rui Veloso, «Não há estrelas no céu»

Um tipo alto, alourado, passa-lhe o braço pelos ombros, como quem protege a sua propriedade, os seus bens, a sua mulher. Mas era a minha, a Marta. Marta, Marta! - grito eu por dentro, sem que uma sílaba suba acima do zumbido das estrelas que se fundem na fumarada de cigarro... Marta!... Está tudo acabado, tudo...

Nem para mim olhou, não me deve ter visto. Fechada a porta do bar sobre a catástrofe, continuava a fitá-la, mais paralisado que uma estátua. Incapaz de reagir, de raciocinar: estás separado, carambal Ela já não é tua mulher! Não conseguia habituar-me à ideia de que já não era minha, soava-me a falso dizer comigo: «a Marta», como se não fosse minha, minha mulher. Há meses que já não vivíamos juntos e continuava a falar dela como sendo a minha mulher... A minha mulher acaba de sair do Fragilidades debaixo de um abraço estranho, deixando-me petrificado de sofrimento, um farrapo atirado para as lixeiras do abandono e do abuso sexual desses machistas cagões.

Tudo morria à minha volta, também eu me sentia morto, vazio, com uma vontade irreprimível de me abandonar a uma crise de choro. Quero lá saber que me chamem maricas! E o que é isso de maricas? Alguém pode firmar-se no chão do absolutamente isto ou aquilo em matéria sexual?

Pressinto o olhar dos outros a cercarem-me em comentários ordinários, outros em cúmplices sussurros, conhecem-me... Os olhos emitem chispas de açúcar, em convites que me desagradam. Em sua intenção arranquei do tecto uma das máscaras para a colocar imaginariamente diante do rosto.

Não me apetece oferecer-vos o espectáculo da minha morte súbita.

Revista de Artes, Religiões e Ciências, nº 03 | Janeiro de 2010

MARIA ESTELA GUEDES (Britiande, Portugal, 1947)
Escritora, editora, agente cultural. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro (Lisboa, Moraes Editores); Ernesto de Sousa - Itinerário dos itinerários (Lisboa, ed. Museu Nacional de Arte Antiga); Tríptico a Solo (São Paulo, Editora Escrituras); Chão de Papel (Lisboa, Apenas Livros); Geisers (Bembibre, ed. Incomunidade). Obras levadas à cena: O Lagarto do Âmbar (ACARTE); A Boba (teatro Experimental de Cascais).
Currículo em:  http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
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