Quase tive de
me agarrar a mim mesmo por debaixo dos
braços para me levantar. Que comportamento,
que mentalidade tão distantes de um polícia,
Eduardo! E já começava a ficar cansado de me
censurar, de me auto-flagelar, e de me
elevar a auto-estima, caraças, estava a
fartar-me de mim mesmo!
Voltei para
trás, comi um prego num restaurante do Largo
de Camões e mais reconfortado de espírito
encaminhei-me para o Fragilidades. A bela
apesar de elefantina mulher que fazia a
segurança à entrada deu-me passagem
desviando de mim o olhar. Para não ter
de levantar problemas aos sapatos
enlameados, à roupa molhada, sei lá! Ia
apanhar uma valente constipação de certeza,
chuva na cabeça, então, ataca-me logo a
garganta!
A fumarada
tinha aumentado entretanto, vogavam vultos
vagos pelas salas, de copo na mão. Os putos da
festa punk, esses, apesar do simulacro ainda
tinham tomates, pensei, a fim de desviar de
mim a atenção. Transpiravam violência.
Estes, apáticos, snobs, envoltos em sudários de
seda, desafiavam fantasmas. Até o bar lembra um
sepulcro, escuro, as máscaras negras
penduradas, as crípticas telas de Cabrita
Reis a vedarem passagens para as zonas
claras da racionalidade.
— Você não
imagina o tipo de relações que se transam por
aqui — comentou para mim um tipo de barbas,
erguendo o copo em jeito de saúde. — É
a
primeira vez que o vejo por cá, procura alguém? —
na curiosidade que demonstrava
li um não sei quê de viscoso, de impudor.
Desagradou-me aquela abordagem sem apresentação nem
preliminares, parecia-me sôfrega.
A que transas se referia? Eu só via na sala
grupos de pessoas solitárias, ansiosas por
se ancorarem ao primeiro que aparecesse. A
menos que a transa fosse essa, a de jogar
tudo em tudo, mesmo no escuro. E reparei nas
mãos fechadas sobre o copo daquele gajo que
tinha na cara uma máscara desaforada.
— Procuro um
tipo, um pintor... — respondi, tempos
passados, ante o seu olhar ansioso.
— Pintores é
o que por aqui há mais... — fez ele,
desapontado, mostrando a sala em toda a sua
amplidão.
— Dizem que se
chama Gilberto — acrescentei, sem vontade de
me envolver.
- Ah, o
Gilberto! Coitado!... - o lábio caído
denunciava menosprezo, olhou para outro
lado, desinteressando-se.
— Coitado?!...
— Não vale
nada, é um pinta-monos... Nunca expôs, pelo
menos em galeria de
jeito... Umas colectivas insignificantes em
bares, átrios de
hotel, sítios assim... Você vá ver, não tem a noção do movimento,
da perspectiva... Para não dizer que lhe
falta técnica, não sabe nada de anatomia... Bonecos
disformes, parados, a duas dimensões...
O gajo
irritava-me, era demasiado emproado,
demasiado superior. Desses que se julgam os maiores,
de opiniões formadas, inabaláveis. Não posso
com gente de opiniões, se uma pessoa encosta
só um bocadinho o snob à parede, verifica
que é pessoa sem qualidades nenhumas, menos
ainda que as do pinta-monos. Mas a mim
interessava-me a investigação, precisava de
descobrir a cassette, tudo o que me levasse
ao criminoso, por isso nem dei atenção à
dica de que o tal Gilberto estava naquele
momento a pintar no Fragilidades, ou a
preparar-se para começar.
— Talvez o seu
objectivo seja mesmo esse: mostrar as
pessoas como elas são, paradas, num espaço a
duas dimensões... — defendi, para alimentar
a conversa. — Numa dimensão
que fosse, o que interessa é a capacidade
de captação do real — acendi, sem saber
exactamente o que estava a dizer.
— Você andou a
ler o Umberto Eco, e deve ser partidário do
hiper-realismo... Olhe, viu aquela exposição
de esculturas hiper-realistas nos jardins da
Gulbenkian, aqui há tempos? Vou-lhe contar:
aquilo enganou-me mesmo, a páginas tantas
até pedi desculpa a uma senhora por lhe ter
dado um encontrãozito, e depois senti a
rigidez do corpo... Provocou-me náuseas,
sabe? Uma arte tão verista que nos engana só
pode causar-nos náuseas... Eu estou farto de
realismos, já conhecemos tantos realismos,
desde os clássicos, e na verdade tudo o que
fazemos é realista, com maior ou menor grau
de desvio e com maior ou menor aproximação
de realidades estranhas ao conhecimento
comum. A realidade dos surrealistas, por
exemplo, é a realidade onírica, freudiana...
Olá, querido! - cortou, abraçando um jovem
louro. - Olhe que o Gilberto está lá dentro,
vá lá ter com ele - disse ainda, com um
gesto de adeus.
A história do homem unidimensional
de Umberto Eco estava na moda, e eu não me
tinha enganado: aquele gajo devia ser pintor
também, podia já ter feito alguma exposição
individual e até em bom galerista, mas não
tinha nomeada nenhuma.
- Esse tipo
que vai ali abraçado ao rapaz louro, quem é?
- perguntei ao barman. Ele fez sinal de não
ter ouvido, insisti, elevando a voz.
- Manuel
Santos, pintor - respondeu ele, chocalhando
bebidas explosivas na misturadora.
- E que pinta
ele? - insisti, gritando.
- Olhe, só
conheço os quadros que expôs aqui mesmo, há
meses: eram imagens geométricas, quadrados,
triângulos, linhas...
E nada mais se
conseguiu entender, a batida de Michael
Jackson abafava o marulhar das conversas e o
vídeo projectado na parede convocava para a
sua electrizante performance todos os
olhares. Este tipo não é humano, é um íman!
- e fiquei também eu de olhos cravados no cantor-bailarino. |