A noite era um
glaciar, mas a frialdade agia como
chicotada, espantando para longe o
mal-estar. Deixei o Pedro em casa, numa rua solitária
às Portas de Benfica, voltei para
trás. Tinha perdido o sono, ouvia a pintora
a chamar-me. E decidi, apesar de serem horas
de me levantar da cama, dar uma vista de
olhos ao local do
crime. Não dormia havia mais de trinta horas, desde
sexta.
Desde sexta-feira!,
lembrei-me. Já é domingo! Não tinha dado
conta de que era domingo quando o Fino me
dissera, a propósito das desculpas da
Xandra para não aceitar o seu convite:
— Foi num
sábado, como hoje. Hoje também é sábado.
Mas
hoje é domingo e eu andei nas ruas sem
descobrir nada do que queria,
sem ter posto os olhos no pintor. Não sei
que sumiço possa ter levado, mas verdade se
diga que realmente não o procurei.
Toquei
à campainha da casa da Xandra, o Morais abriu-me a porta,
estremunhado:
— Olá, chefe!
Telefonaram há pouco a reivindicar o crime!
— Oh!, pode lá
ser!... — recusei, dirigindo-me para o local
exacto em que a Xandra morrera, diante da
aparelhagem Hi-Fi. Abri de novo o gravador,
não, não tinha nenhuma cassette dentro, não
sou assim tão negligente, não me havia
esquecido, quando da primeira vez ali
estivera, de verificar isso. Premi o botão
do aparelho de rádio. Estava sintonizado na
Rádio Industrial. A voz agressiva e seca da
Adelaide Ferreira fez-se ouvir, numa canção
algo depressiva: «Baby suicida». |
MARIA ESTELA
GUEDES (Britiande, Portugal, 1947)
Escritora, editora, agente cultural.
Alguns livros publicados:
Herberto Helder, Poeta Obscuro
(Lisboa, Moraes Editores);
Ernesto de Sousa - Itinerário dos
itinerários (Lisboa, ed. Museu
Nacional de Arte Antiga);
Tríptico a Solo (São Paulo,
Editora Escrituras); Chão de
Papel (Lisboa, Apenas Livros);
Geisers (Bembibre, ed.
Incomunidade). Obras levadas à cena:
O Lagarto do Âmbar (ACARTE);
A Boba (teatro Experimental
de Cascais).
Currículo em:
http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
Proprietária do TriploV.
CONTATO:
estela@triplov.com |