— Só faltava mais esta!... — irritei-me, sem
motivo. E por uma distração do espírito que
a razão não compreende, detive-me no
corredor, esperando que a pintora me viesse
receber. A casa transpirava presença, nada
de mais natural do que vê-la sair do quarto,
sorrindo para mim, a ajeitar na cintura
aquele robe vermelho que lhe ofereci no
último aniversário... Diacho! Diacho! -
esfrego os olhos, a cabeça lateja e pesa
como um sino de bronze, a ressoar badaladas
de alarme. A minha mulher, sempre, sempre a
minha mulher a apagar da realidade a pintora
e a sobrepôr-se à disciplina da investigação
do crime... Se crime houve...
— Então não entra, chefe? — era o Morais, a
cortar-me o momento de ausência, instaurando
no limiar do delírio a fria porta da
realidade.
Sacudi a cabeça como a afastar a sonolência,
entrei na sala. Já tinham levado o corpo, só
os contornos a giz desenhados em parte na
carpete e sugeridos na estante não faziam
parte do cenário acolhedor da sala. Observei
tudo com atenção, depois não fui capaz de
ocultar o que pensava:
— Tenho cismado em crime, mas de facto isto
não tem cara de ter sido homicídiol...
— E no entanto, meu tenente — contrapôs o
Morais, aprumando-se na fala cinzenta —,
houve reivindicação por parte de uma tal
Brigada Arco-Íris...
— Pois sim... — Disse eu com desconfiança,
encolhendo os ombros, aborrecido com a
entrada em cena de elementos que escapavam
ao quadro das minhas referências. - Começo a
achar que não houve crime nenhum...
O Morais,
ajoelhado junto à aparelhagem hi-fi,
levantou a tampa do gira-discos e pôs a
tocar o LP que chamava do prato, com o seu
negrume estriado. Uma música estranhamente
encantatória penetrou-me no cérebro. Era Laurie Anderson, a americana do «O Superman». |
MARIA ESTELA
GUEDES (Britiande, Portugal, 1947)
Escritora, editora, agente cultural.
Alguns livros publicados:
Herberto Helder, Poeta Obscuro
(Lisboa, Moraes Editores);
Ernesto de Sousa - Itinerário dos
itinerários (Lisboa, ed. Museu
Nacional de Arte Antiga);
Tríptico a Solo (São Paulo,
Editora Escrituras); Chão de
Papel (Lisboa, Apenas Livros);
Geisers (Bembibre, ed.
Incomunidade). Obras levadas à cena:
O Lagarto do Âmbar (ACARTE);
A Boba (teatro Experimental
de Cascais).
Currículo em:
http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
Proprietária do TriploV.
CONTATO:
estela@triplov.com |