- A
Brigada Arco-Íris reivindicou o crime?! -
insurgia-me. Isso é o total disparate, as
brigadas Arco-Íris são esses grupos de
artistas que andam por aí a pintar paredes
para fazerem a campanha eleitoral da Engª
Maria de Lourdes Pintasilgo!
— Eu sei, eu sei, meu tenente... Que quer?
Telefonaram, foi um tipo que não se quis
identificar...
— Mas como quer você que se considere
assassínio uma morte sem sinais de
violência? — redargui com frieza, fazendo
tábua rasa de todo o meu comportamento nos
últimos dias, só porque sentia uma forte
vontade de o contrariar. — Chegou a
interrogar a vizinhança?
— Sim, segundo as testemunhas, ninguém
entrou em casa, pelo menos à hora presumível
do crime — o rapaz afaga a garganta, à
espera da palavra capaz de desvendar o
enigma: — Mas podia estar alguém escondido
aqui dentro, meu tenente!...
— Com a porta fechada por dentro, por onde
saía depois? Pela janela de um sexto andar?
— Ora, podia ter saído quando a porteira
abriu a porta e veio para dentro com o Dr.
Martins...
Levei a mão à orelha, parecia-me ter ouvido
o zumbido de um mosquito. Não, era confiar
demais no acaso. Sentado à mesa redonda,
entretido a rabiscar um papel com marcadores
transparentes e dourados, o Morais punha-me
ao corrente do que se passara enquanto eu
estivera ausente, à procura do pintor por
toda a parte. Os inquilinos do prédio haviam
sido peremptórios: a vítima chegara sozinha
pelas sete da tarde, antes tinha sido vista
na rua a comprar cassettes numa loja de
electrodomésticos. No intervalo da
telenovela, aí pelas nove menos um quarto, a
porteira aproveitara para pôr na rua os
sacos do lixo. Nessa altura, a pintora
falara com ela.
Por falar
em cassettes... O Morais analisava com
alguma curiosidade uma cassette que parecia virgem,
sem nada escrito de um lado nem do outro.
- Onde
descobriu você essa cassette? - inquiri,
agastado, pois não a tinha visto antes,
apesar da pesquisa minuciosa feita à sala da
Xandra.
- Estava
aqui mesmo, em cima da mesa, à vista... Foi
só levantar esta folha...
- Dê cá,
deve ser a cassette comprada na tarde do
crime - enfim, do crime ou do acidente, seja
lá o que for...
- Se
calhar, ainda está virgem... - desconfiou o
Morais.
- Não,
virgem completamente, não está, porque a
embalagem foi removida...
- Ok,
chefe! - o Morais acabava de inserir a
cassette no dispositivo próprio da
aparelhagem de Alta Fidelidade.
- Que
coisa!... Ele há coincidências levadas da
breca! - comentei, as mãos a tremerem.
- É o
diabo, é!... - concordou o Morais, de voz
rouca. Nós a falarmos de virgens e aí está
essa maluca da cantora inglesa com o seu «Like
a virgin»...
Revista de
Artes, Religiões e Ciências,
nº 03 | Janeiro de 2010
MARIA ESTELA
GUEDES (Britiande, Portugal, 1947) Escritora, editora, agente cultural.
Alguns livros publicados:
Herberto Helder, Poeta Obscuro
(Lisboa, Moraes Editores);
Ernesto de Sousa - Itinerário dos
itinerários (Lisboa, ed. Museu
Nacional de Arte Antiga);
Tríptico a Solo (São Paulo,
Editora Escrituras); Chão de
Papel (Lisboa, Apenas Livros);
Geisers (Bembibre, ed.
Incomunidade). Obras levadas à cena:
O Lagarto do Âmbar (ACARTE);
A Boba (teatro Experimental
de Cascais).
Currículo em:
http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
Proprietária do TriploV.
CONTATO:
estela@triplov.com