O último pintor realista sobre a face da terra estava
entregue aos seus prazeres diários e
nada secretos, fazendo com que
delicados tons violáceos emergissem
do fundo da tela para o primeiro
plano e tornassem mais carnais os
ocres da pele de seu modelo
imaginário, quando ocupou a
minúscula janela entreaberta da
porta da sala o rosto róseo de um
homem desconhecido. A pele esticada
parecia pequena para o volume que
continha, os variados semitons
púrpuras que se espalhavam a partir
das comissuras da boca, o nariz
esponjoso e achatado, o rosto tinha
uma expressão mista de súplica e
vaga satisfação:
- Tio, tem alguma coisa pra mim?
Cirton Genaro não ficou surpreso,
depositou devagar a paleta e o
pincel numa cadeira, esfregou a mão
direita no avental colorido de
antigos sedimentos de tintas, e
moveu-se em direção à porta,
segurando notas de pequeno valor: “É
claro que tenho, Leonardo, é claro
que tenho.”
Leonardo? É uma inacreditável
coincidência que um mendigo chamado
Leonardo, nome símbolo da arte e do
saber renascentista, esmole
justamente no atelier de um pintor
do século XXI. Entretanto, o seu
verdadeiro nome era Ninguém, e
Leonardo um apelido mnemônico
conferido na hora, pois o homem
lembrou ao Genaro um desenho do
mestre. E o mesmo nome, “Leonardo”,
incandescente e mágico Leonardo da
Vinci (1452-1519), a quem já
atribuímos todas as virtudes, havia
sido dado como título para uma de
suas pinturas cujo personagem era um
homem-tronco em carrinho de rodas de
rolimã, um dos inúmeros pobres sem
pernas da humanidade e assunto de um
período de sua pintura. Este, na sua
origem, antes de sua transformação,
fora extraído de um estudo feito por
da Vinci para “A Batalha de
Anghiari”. Diálogos secretos de
Cirton Genaro com a história da
arte.
Não era este um teste de vocação
inventado Leonardo? Os discípulos,
diante de um velho muro, olhavam as
manchas úmidas e diziam o que viam.
Os que apenas viam um velho muro
manchado não seriam artistas.
Leonardo da Vinci se interessa pelos
que contavam as imagens que as
manchas tinham acordado na sua
imaginação. Dos inúmeros desenhos
esboçados por Leonardo, para um novo
personagem das grandes cidades.
A pintura “Leonardo” é de uma
delicadeza inesperada, pois o
assunto naturalmente remeteria para
o escabroso e o escatológico: um
furioso homem sem pernas, num
carrinho artesanal. Esse assunto
para Cirton Genaro é principalmente
um tema humano e de pintura.
Trata-se de uma pintura a óleo sobre
tela colocada em madeira no formato
de 56 x 40 cm, de 1992. A tela é
inteiramente coberta de verdes e
amarelos sutilmente conjugados
formando um fundo nuançado de
vibração contínua que nos situa
imediatamente no contexto pictórico.
Isto significa que este fundo é de
tal maneira elaborado que não resta
qualquer dúvida de que se trata de
um ato sensível e cultural e não de
um recorte naturalístico do entorno.
Ele não pode ser confundido com a
parede de uma casa, com a fachada de
um supermercado ou com um cartaz
sobre um produto de consumo. O que
nos remete diretamente para o tempo
da criação, para o universo da arte,
uma criação humana. Neste
espaço-tempo particular, neste
paradigma de excelência, o artista
pinta um homem com o torso nu,
vestindo uma calça azul cortada, os
braços em posições opostas criando
uma diagonal que atravessa a tela. O
corpo, a cabeça, e o movimento
emocional que retesa a musculatura,
estão pintados com rigor e realismo.
Trata-se da representação pictórica
e ficcional da figura humana que nos
dá a sensação de verismo. A ficção
artística cria uma verdade que
reconhecemos. Leonardo está sobre um
carrinho de madeira e metal,
artesanal, montado sobre pequenas
rodas chamadas de rolimã. O carrinho
é simples, mas parece tecnológico.
Evoca alguns projetos de máquinas de
Leonardo da Vinci, conceitos de
futura tecnologia concebidos com
materiais inadequados.
Os dois apoios de mão estão em
movimento, um deles já no ar. O
homem tem a boca num esgar de ódio e
tudo nos apresenta a sua revolta.
Abaixo, no lado esquerdo da figura,
uma pequena tela emoldurada é uma
pintura feita sobre um desenho de
Hieronymus Bosch, o maior artista do
fantástico que a humanidade conheceu
(1453(?)-1516). Nunca mais, desde
então, conseguimos pensar nos
mistérios, nos labirintos do mal, na
loucura e no desvario do homem, sem
ter Hieronymus Bosch como
visualidade e origem. A pintura
dentro da pintura. Por estas
referências, Cirton Genaro reafirma
a sua filiação e o espaço da criação
e da arte, distinguindo-o do espaço
profano. A série na qual “Leonardo”
está incluído tem o título de
“Filhos de Caim”, extraído do livro
de Bronislaw Geremek, “Os filhos de
Caim. Vagabundos e miseráveis na
literatura européia 1400-1700”
(Edit. Cia. Das Letras).
A fase das “Mulheres”,
momentaneamente interrompida por
Ninguém-Leonardo, estava se
encerrando com esta pintura de 180 x
80 cm, feita sobre tela acoplada por
uma espécie de gesso atual, (óxido
de titânio com resina acrílica),
numa placa rígida de MDF. Foi um
percurso de 10 anos. Primeiro, uma
série de mulheres nuas em estranhas
situações e posições, dobradas,
amarradas, emergindo de buracos e
cavernas, destacando-se do forro.
Muito distante de algumas de suas
mulheres do início dos anos noventa,
suaves, bem compostas, sentadas num
banco de jardim outonal. Depois das
mulheres perversamente engendradas e
submetidas a um monstro mal
humorado, vieram estas damas de
2006, que nos lembram cenas de uma
época dourada que jamais existiu.
Para Cirton Genaro é uma
oportunidade de por em movimento o
seu extenso repertório do ofício de
pintor.
Talvez cause estranheza que um
artista dedique tanto esforço a
pintar damas imaginárias numa época
em que, tantas vezes, criadores
dedicam-se ao mórbido com a
exposição de órgãos de animais
imersos em formal e cadáveres
humanos obtidos através de
minuciosos procedimentos jurídicos.
Ou, ainda, a desmontagem metódica do
corpo em partes, tornando-os
detalhes de mecanismo ou, mais
ainda, coisificações despidas de
qualquer significação humanística. A
memória da espécie que conserva o
corpo paradigmático talvez se
espante e fique na dúvida se está
diante de uma denúncia da violência
ou do simples esvaziamento da
esperança.
O poeta gaúcho Mário Quintana não
estranharia a opção de Cirton
Genaro, pois escreveu há várias
décadas na sua coluna dominical,
“Caderno H”, no Correio do Povo, RS,
a deliciosa consideração sobre a
“Arte Pura”:
“Dizem eles, os pintores, que o
assunto não passa de uma falta de
assunto: tudo é apenas um jogo de
cores e volumes. Mas eu,
humanamente, continuo desconfiando
que deve haver alguma diferença
entre uma mulher nua e uma abóbora.”
(Os Melhores Poemas de Mario
Quintana. Seleção de Fausto
Cunha. Global Editora. São Paulo.
1983.)
A série de homens-tronco é notável
como pintura e galeria de tipos. E,
como dado adicional, não sabemos se
houve a intenção, estas imagens
serviam como contraditório ao
oficial tom triunfante do Grande
Brasil, do país-continente líder,
síndrome populista que de tempos em
tempos se manifesta na propaganda
política nacional. Contudo, em
nenhum momento, o pintor Cirton
Genaro opta pela banalidade da arte
panfletária.
O pintor Cirton é um romântico
incurável. Ele acredita
verdadeiramente que a arte é um
fator de transformação do ser humano
e um acelerador das qualidades da
espécie. E a sua dedicação absoluta
à causa da cultura uma fonte
energética capaz de gerar o seu
desenvolvimento pessoal, definir a
sua função no universo e justificar
a sua existência.
É esta conformação existencial, este
núcleo estruturador da sua vida, que
lhe confere as suas características
e o seu comportamento essencial.
Cirton sonha com a fraternidade,
observa os seus companheiros de
jornada, valoriza todos os homens,
dos nobres artistas como ele aos
mais humildes habitantes das ruas e
dos desvãos das cidades brasileiras.
Os personagens da pintura de Cirton
são fragmentos de um mural que o
artista ainda fará: meninos de olhar
perplexo; camponeses devotos;
suburbanos solitários; mulheres
douradas pelo outono; mendigos
delirantes; pintores absortos;
políticos poderosos; santos
humanizados. E, permeando os
habitantes da terra, a intervenção
direta e pessoal das crenças, sinais
de trânsito e paisagens construídas
na cidade.
A fidelidade do artista ao
contingente provavelmente explica o
detalhamento minucioso do registro
pictórico. Cirton é um observador
exigente. E um pintor disciplinado
que não se permite qualquer coisa
menor do que a vigília absoluta. É
um sonhador que tiraniza o
executante. Um pintor a serviço da
imaginação. Nada menos do que a
extrema qualidade do ofício é
satisfatório. Da mesma maneira, o
esforço não se transforma em
sacrifício. Cirton faz a sua parte.
É possível que Cirton Genaro tenha a
mesma opinião que Oscar Wilde teve:
“Nada é tão perigoso quanto ser
moderno demais. Tendemos a ficar
velhos sem nos darmos conta.”
O pintor trabalha sob a égide da
história da arte. A sua pintura tem
citações dos artistas que admira –
Leonardo da Vinci, Hieronymus Bosch,
Candido Portinari, Milton Dacosta,
Alfredo Volpi - e as homenagens são
freqüentes. Ele trabalha sem pressa,
com veladuras e transparências e os
seus assuntos, a maneira do moderno,
são os acontecimentos sociais e o
entorno. Cirton afasta-se das
idealizações e dos modelos
imaginários. O seu não é o universo
da moda e do passageiro, mas o da
reflexão e o da reconsideração
permanente. Cirton ilumina o
contingente registrando-o sob o
ângulo do humano.
Cirton, do ponto de vista da ação, é
um humanista que optou pela
construção pictórica e não cedeu ao
convencional, a ilustração do objeto
e a produção de imagens. Nada de
banalidades. Aqui a procura é
simplesmente a do entendimento e a
de multifacetar a realidade. E o
olhar refaz, de maneira peculiar, a
trajetória do pensamento
contemporâneo: do geral para o
particular, do plano amplo para o
recorte, do contingente para o
exemplar, do abstrato para a
aproximação focal. O artista
escolheu o seu oficio e foi possuído
por seus temas. Trata-se de pintura
e do mundo dos homens.
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