Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

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Revista TriploV
de Artes, Religiões e Ciências

Nº 3, Janeiro DE 2009

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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JACOB KLINTOWITZ

HISTÓRIAS BRASILEIRAS

DE ARTE E ARTISTAS

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II - Nada de banalidades. Um pintor chamado Cirton Genaro

O último pintor realista sobre a face da terra estava entregue aos seus prazeres diários e nada secretos, fazendo com que delicados tons violáceos emergissem do fundo da tela para o primeiro plano e tornassem mais carnais os ocres da pele de seu modelo imaginário, quando ocupou a minúscula janela entreaberta da porta da sala o rosto róseo de um homem desconhecido. A pele esticada parecia pequena para o volume que continha, os variados semitons púrpuras que se espalhavam a partir das comissuras da boca, o nariz esponjoso e achatado, o rosto tinha uma expressão mista de súplica e vaga satisfação:

- Tio, tem alguma coisa pra mim?

Cirton Genaro não ficou surpreso, depositou devagar a paleta e o pincel numa cadeira, esfregou a mão direita no avental colorido de antigos sedimentos de tintas, e moveu-se em direção à porta, segurando notas de pequeno valor: “É claro que tenho, Leonardo, é claro que tenho.”

Leonardo? É uma inacreditável coincidência que um mendigo chamado Leonardo, nome símbolo da arte e do saber renascentista, esmole justamente no atelier de um pintor do século XXI. Entretanto, o seu verdadeiro nome era Ninguém, e Leonardo um apelido mnemônico conferido na hora, pois o homem lembrou ao Genaro um desenho do mestre. E o mesmo nome, “Leonardo”, incandescente e mágico Leonardo da Vinci (1452-1519), a quem já atribuímos todas as virtudes, havia sido dado como título para uma de suas pinturas cujo personagem era um homem-tronco em carrinho de rodas de rolimã, um dos inúmeros pobres sem pernas da humanidade e assunto de um período de sua pintura. Este, na sua origem, antes de sua transformação, fora extraído de um estudo feito por da Vinci para “A Batalha de Anghiari”. Diálogos secretos de Cirton Genaro com a história da arte.

Não era este um teste de vocação inventado Leonardo? Os discípulos, diante de um velho muro, olhavam as manchas úmidas e diziam o que viam. Os que apenas viam um velho muro manchado não seriam artistas. Leonardo da Vinci se interessa pelos que contavam as imagens que as manchas tinham acordado na sua imaginação. Dos inúmeros desenhos esboçados por Leonardo, para um novo personagem das grandes cidades.

A pintura “Leonardo” é de uma delicadeza inesperada, pois o assunto naturalmente remeteria para o escabroso e o escatológico: um furioso homem sem pernas, num carrinho artesanal. Esse assunto para Cirton Genaro é principalmente um tema humano e de pintura. Trata-se de uma pintura a óleo sobre tela colocada em madeira no formato de 56 x 40 cm, de 1992. A tela é inteiramente coberta de verdes e amarelos sutilmente conjugados formando um fundo nuançado de vibração contínua que nos situa imediatamente no contexto pictórico. Isto significa que este fundo é de tal maneira elaborado que não resta qualquer dúvida de que se trata de um ato sensível e cultural e não de um recorte naturalístico do entorno. Ele não pode ser confundido com a parede de uma casa, com a fachada de um supermercado ou com um cartaz sobre um produto de consumo. O que nos remete diretamente para o tempo da criação, para o universo da arte, uma criação humana. Neste espaço-tempo particular, neste paradigma de excelência, o artista pinta um homem com o torso nu, vestindo uma calça azul cortada, os braços em posições opostas criando uma diagonal que atravessa a tela. O corpo, a cabeça, e o movimento emocional que retesa a musculatura, estão pintados com rigor e realismo. Trata-se da representação pictórica e ficcional da figura humana que nos dá a sensação de verismo. A ficção artística cria uma verdade que reconhecemos. Leonardo está sobre um carrinho de madeira e metal, artesanal, montado sobre pequenas rodas chamadas de rolimã. O carrinho é simples, mas parece tecnológico. Evoca alguns projetos de máquinas de Leonardo da Vinci, conceitos de futura tecnologia concebidos com materiais inadequados.

Os dois apoios de mão estão em movimento, um deles já no ar. O homem tem a boca num esgar de ódio e tudo nos apresenta a sua revolta. Abaixo, no lado esquerdo da figura, uma pequena tela emoldurada é uma pintura feita sobre um desenho de Hieronymus Bosch, o maior artista do fantástico que a humanidade conheceu (1453(?)-1516). Nunca mais, desde então, conseguimos pensar nos mistérios, nos labirintos do mal, na loucura e no desvario do homem, sem ter Hieronymus Bosch como visualidade e origem. A pintura dentro da pintura. Por estas referências, Cirton Genaro reafirma a sua filiação e o espaço da criação e da arte, distinguindo-o do espaço profano. A série na qual “Leonardo” está incluído tem o título de “Filhos de Caim”, extraído do livro de Bronislaw Geremek, “Os filhos de Caim. Vagabundos e miseráveis na literatura européia 1400-1700” (Edit. Cia. Das Letras).

A fase das “Mulheres”, momentaneamente interrompida por Ninguém-Leonardo, estava se encerrando com esta pintura de 180 x 80 cm, feita sobre tela acoplada por uma espécie de gesso atual, (óxido de titânio com resina acrílica), numa placa rígida de MDF. Foi um percurso de 10 anos. Primeiro, uma série de mulheres nuas em estranhas situações e posições, dobradas, amarradas, emergindo de buracos e cavernas, destacando-se do forro. Muito distante de algumas de suas mulheres do início dos anos noventa, suaves, bem compostas, sentadas num banco de jardim outonal. Depois das mulheres perversamente engendradas e submetidas a um monstro mal humorado, vieram estas damas de 2006, que nos lembram cenas de uma época dourada que jamais existiu. Para Cirton Genaro é uma oportunidade de por em movimento o seu extenso repertório do ofício de pintor.

Talvez cause estranheza que um artista dedique tanto esforço a pintar damas imaginárias numa época em que, tantas vezes, criadores dedicam-se ao mórbido com a exposição de órgãos de animais imersos em formal e cadáveres humanos obtidos através de minuciosos procedimentos jurídicos. Ou, ainda, a desmontagem metódica do corpo em partes, tornando-os detalhes de mecanismo ou, mais ainda, coisificações despidas de qualquer significação humanística. A memória da espécie que conserva o corpo paradigmático talvez se espante e fique na dúvida se está diante de uma denúncia da violência ou do simples esvaziamento da esperança.

O poeta gaúcho Mário Quintana não estranharia a opção de Cirton Genaro, pois escreveu há várias décadas na sua coluna dominical, “Caderno H”, no Correio do Povo, RS, a deliciosa consideração sobre a “Arte Pura”:

“Dizem eles, os pintores, que o assunto não passa de uma falta de assunto: tudo é apenas um jogo de cores e volumes. Mas eu, humanamente, continuo desconfiando que deve haver alguma diferença entre uma mulher nua e uma abóbora.” (Os Melhores Poemas de Mario Quintana. Seleção de Fausto Cunha. Global Editora. São Paulo. 1983.)

A série de homens-tronco é notável como pintura e galeria de tipos. E, como dado adicional, não sabemos se houve a intenção, estas imagens serviam como contraditório ao oficial tom triunfante do Grande Brasil, do país-continente líder, síndrome populista que de tempos em tempos se manifesta na propaganda política nacional. Contudo, em nenhum momento, o pintor Cirton Genaro opta pela banalidade da arte panfletária.

O pintor Cirton é um romântico incurável. Ele acredita verdadeiramente que a arte é um fator de transformação do ser humano e um acelerador das qualidades da espécie. E a sua dedicação absoluta à causa da cultura uma fonte energética capaz de gerar o seu desenvolvimento pessoal, definir a sua função no universo e justificar a sua existência.

É esta conformação existencial, este núcleo estruturador da sua vida, que lhe confere as suas características e o seu comportamento essencial. Cirton sonha com a fraternidade, observa os seus companheiros de jornada, valoriza todos os homens, dos nobres artistas como ele aos mais humildes habitantes das ruas e dos desvãos das cidades brasileiras. Os personagens da pintura de Cirton são fragmentos de um mural que o artista ainda fará: meninos de olhar perplexo; camponeses devotos; suburbanos solitários; mulheres douradas pelo outono; mendigos delirantes; pintores absortos; políticos poderosos; santos humanizados. E, permeando os habitantes da terra, a intervenção direta e pessoal das crenças, sinais de trânsito e paisagens construídas na cidade.

A fidelidade do artista ao contingente provavelmente explica o detalhamento minucioso do registro pictórico. Cirton é um observador exigente. E um pintor disciplinado que não se permite qualquer coisa menor do que a vigília absoluta. É um sonhador que tiraniza o executante. Um pintor a serviço da imaginação. Nada menos do que a extrema qualidade do ofício é satisfatório. Da mesma maneira, o esforço não se transforma em sacrifício. Cirton faz a sua parte.

É possível que Cirton Genaro tenha a mesma opinião que Oscar Wilde teve: “Nada é tão perigoso quanto ser moderno demais. Tendemos a ficar velhos sem nos darmos conta.”

O pintor trabalha sob a égide da história da arte. A sua pintura tem citações dos artistas que admira – Leonardo da Vinci, Hieronymus Bosch, Candido Portinari, Milton Dacosta, Alfredo Volpi - e as homenagens são freqüentes. Ele trabalha sem pressa, com veladuras e transparências e os seus assuntos, a maneira do moderno, são os acontecimentos sociais e o entorno. Cirton afasta-se das idealizações e dos modelos imaginários. O seu não é o universo da moda e do passageiro, mas o da reflexão e o da reconsideração permanente. Cirton ilumina o contingente registrando-o sob o ângulo do humano.

Cirton, do ponto de vista da ação, é um humanista que optou pela construção pictórica e não cedeu ao convencional, a ilustração do objeto e a produção de imagens. Nada de banalidades. Aqui a procura é simplesmente a do entendimento e a de multifacetar a realidade. E o olhar refaz, de maneira peculiar, a trajetória do pensamento contemporâneo: do geral para o particular, do plano amplo para o recorte, do contingente para o exemplar, do abstrato para a aproximação focal. O artista escolheu o seu oficio e foi possuído por seus temas. Trata-se de pintura e do mundo dos homens.  

Capítulo do livro Histórias Brasileiras de Arte e Artistas (Laserprint Editoral, São Paulo, 2006), de Jacob Klintowitz (Brasil, 1941). Jornalista, crítico de arte, escritor, editor de arte, designer editorial. É autor de 90 livros sobre teoria de arte, arte brasileira, ficção e livros de artista. Contato: jklinto@uol.com.br.

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