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MARIA DO SAMEIRO BARROSO
A
ARTE CURATIVA
DOS CELTAS
II
A medicina entre os celtas
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A
medicina entre os celtas. O período de La
Tène (400 a.C.) |
Os traços
civilizacionais desta cultura foram
assimilados, mas não desapareceram
completamente. O confronto entre Romanos e
Celtas durou desde a tomada de Roma pelos
Celtas, em 387 a. C até à sua derrota, nas
Ilhas Britânicas, pelo Imperador Cláudio, em
44 d. C. Durante este período, os Celtas e
os Romanos parecem ter tido contacto com a
medicina grega[14].
Os primeiros
registos deste contacto pertencem, segundo a
cronologia celta, ao período de La Tène
(séc. III e II a. C.). A este período
corresponde, na medicina grega, o grande
desenvolvimento da medicina científica,
desenvolvida por Herófilo e Erasístrato, no
Museum de Alexandria. No séc. III, quando os
Romanos tiveram o primeiro contacto com a
medicina grega, encontramos estes contactos
no âmbito da trepanação.
A trepanação,
por cortes ou por raspagem, era comum por
toda a Europa e África oriental, até pouco
depois da Idade do Ferro[15].
Em 1846, o
arqueólogo austríaco descobriu cerca de mil
sepulturas dos primitivos celtas, numa vasta
necrópole de sepulturas, em Hallstatt, perto
de Salzburg [16]
(Figura 2).
Em 1985, Urban O e os seus colaboradores
levaram a cabo estudos antropológicos em
locais de enterramento, no território
actual da Áustria[17].
Estes estudos revelaram que os Celtas
também tinham sido hábeis cirurgiões que
praticaram a trepanação desde o
Neolítico. Os crânios estudados, num
total de vinte e oito, revelaram que as
trepanações foram realizadas em vida. Em
três casos, a trepanação foi realizada
post mortem.
Duas
necrópoles, contendo crânios trepanados
remontam ao Neolítico, seis à Idade do
Bronze e três à Antiguidade tardia. A
maior parte das trepanações, num total
de quinze, foi realizada durante o
período La Tène.
A técnica
mais utilizada foi a do corte. Outra
técnica, por furador, utilizada pelos
gregos e pelos romanos, também foi
identificada no território dos Celtas,
na Áustria.
Foram
encontrados, nas necrópoles de Dürrnberg,
perto de Hallein, na província de
Salzburg e nas necrópoles de
Guntramsdorf, nos arredores de Viena,
casos de trepanações, realizadas com um
furador. Numa dessas necrópoles foi
encontrado um túmulo contendo um
esqueleto de uma criança. Junto dela,
encontrava-se uma rodela craniana,
utilizada como amuleto[18]. Num crânio
de La Téne, Túmulo I, em Katzeldorf,
observa-se uma tripla trepanação do
parietal esquerdo (Figura 3). |
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Figura 2- Sepulturas de Hallstatt, perto de
Salzburg (desenho de Isidor Eng.), in
T. W. Rolleston, Guia Ilustrado de
Mitologia Celta, p. 17. |
Figura 3 – Crânio trepanado de La Tène,
Túmulo I, em Katzeldorf.
Naturhistorisches Museum Wien/Abteilung für
Archäologische Biologie und Anthropologie,
in Rupert Breitwieser, Celtic
Trepanations, p. 148. |
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O
parietal esquerdo é o osso que
aparece trepanado com mais
frequência. Possivelmente, para
tentar resolver um traumatismo
craniano, resultante de uma agressão
ou de traumatismo de guerra. Uma vez
que a maior parte das pessoas são
dextras, durante uma luta, o
agressor. com uma arma empunhada
pela mão direita, atingirá o
parietal esquerdo do opositor.
Nos
três crânios de Guntramsdorf,
observaram-se mais do que uma
trepanação, num mesmo indivíduo. O
crânio de um homem, entre 30-35
anos, proveniente do túmulo 6
mostrou trepanações uma trepanação
por raspagem e uma trepanação
tripla, em trevo, realizada com um
perfurador de metal redondo. Num
crânio do túmulo 29 foi encontrada
uma trepanação dupla com furador.
Num
crânio da necrópole de Katzeldorf
foi efectuada uma trepanação em
trevo, que não foi completada.
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Figura 4 –
Tripla trepanação mortal de
Katzelsdorf/Norte da Áustria, séc 3/2 a. C.,
in Ernst Künzl, Medizin in der
Antike, p. 11. |
Figura 6 -
Instrumentos de trepanação: serra de ferro e
gancho Ferro. Proveniente do túmulo de
München-Obermenzing, Baviera. Laténe, cerca
de 200 a. C. München Archäolog.
Staatssammlung, in Ernst Künzl,
Medizin in der Antike, p. 12. |
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Noutro
caso da mesma necrópole, um homem
fora submetido a cinco trepanações
durante a sua vida: uma trepanação
por perfuração cicatrizada no
parietal direito, uma trepanação por
raspagem, cicatrizada no parietal
esquerdo, e uma trepanação em trevo,
por perfuração, no parietal direito
que lhe provocou a morte. As
trepanações foram efectuadas com um
furador de metal. O exame
osteológico não revelou sinais de
cicatrização. O exame
paleopatológico realizado revelou
inflamação óssea (osteíte ou
osteomielite post traumáticas
(Figura 4)[19].
Nas necrópoles
de Guntramsdorf e Katzeldorf foram
encontrados sete celtas mortos, que tinham
sido submetidos a trepanação por perfurador
metálico. Em dois casos as intervenções
foram bem sucedidas, nos restantes casos,
não se sabe. Três dos doentes morreram, após
a operação. Quatro sobreviveram. O túmulo I,
de La Tène, Katzeldorf também contém os
restos de um guerreiro que morreu com cerca
de trinta anos. O túmulo 29, em Gumtramsdorf,
continha um esqueleto de um jovem de elevado
estatuto social.
Pensa-se que a
operação era realizada da seguinte maneira:
o crânio era posta a descoberto, por incisão
do couro cabeludo, de forma que se pudesse
ver a zona ou a lesão a tratar. Depois
decidia-se quantos furos haveria a fazer. e
o diâmetro seleccionado. O local exacto era
medido e o crânio aberto, por perfuração até
à tábua interna. A ou as rodelas cranianas
eram retiradas ou partidas. As meninges
nunca eram atingidas. Então, hematomas,
fragmentos ósseos, fracturados ou
inflamados, sendo removidos.
Finalmente, a
ferida era coberta com ervas medicinais e
pensa-se que provavelmente seriam aplicadas
ligaduras.
Novas
escavações, realizadas em 1981,em Putzendorf,
puseram a descoberto um esqueleto de um
homem, que, de acordo com os objectos
tumulares foi datado no período La Tène,
cerca de primeira metade do séc. IV a. C.
Este crânio revelou seis trepanações, feitas
com um furador. Este é o caso mais antigo de
trepanação com furador na Europa Central
(Figura 5).
É possível que
os Celtas tenham aprendido com os Gregos a
praticar a trepanação por perfuração. Esta
era praticada no período helenístico. Nos
textos hipocráticos, é descrita a utilização
do trépano. Típica dos Celtas, nos séculos
III e II, é a serra de ferro (Figura 6). |
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Figura 5 –
Trepanação com seis orifícios da necrópole
de Putzendorf, em Dürrnberg,
Österreichisches Forschungzentrum Dürrnberg,
in Rupert Breitwieser, Celtic
Trepanations in Áustria, p. 151. |
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Foram
encontrados três destes instrumentos. Além
do descrito, um outro foi encontrado em
Batina (Kisköszeg), na fronteira
servo-húngara e em Galaţii Brisţei, ao Norte
da Ruménia. Estes instrumentos são de
construção tipicamente celta.
Embora tenha
havido contactos com a medicina grega, a
medicina celta parece ter-se desenvolvido de
forma autónoma.
No túmulo de
Obermenzing, perto de Munique, um guerreiro
era, ao mesmo tempo, médico[20].
Do estudo dos
esqueletos foi possível determinar a
esperança de vida média para aquela
população que era de 35 anos, sendo 31 para
as mulheres e 38 para os homens. Apesar de
ser uma sociedade guerreira (Figura 7), a
mortalidade feminina era maior,
possivelmente, devida à alta morbilidade e
mortalidade de causa obstétrica[21].
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Foi descoberto
um túmulo, com 9 m de diâmetro, no centro da
necrópole de Putzendorf, em Dürrnberg, em
cuja câmara foram encontrados os esqueletos
de um homem e de uma mulher, separados por
oferendas, compostas por cinco potes de
cerâmica e ossos de vários animais,
resultantes, provavelmente, de uma refeição.
Entre as
pernas do homem, foram encontrados vários
objectos e uma fíbula de bronze, que nos dá
indicação sobre a sua profissão e posição
social. A vareta de ferro com uma pega de
osso, decorada com círculos, um disco oval
com um dente no meio de quartzite branco, e
uma ponta de chifre, furado por um buraco.
Havia também duas costelas afiadas (Figura
8).
A mulher tinha
colar de bronze, partido em sete partes, dez
fíbulas, algumas usadas para apertar as
vestes ou como ornamento. Uma das fíbulas
tinha a forma de um cão. Esta fíbula assume
particular importância, porque, nas crenças
religiosas dos Celtas, os cães eram
mensageiros dos deuses e condutores dos
homens para o mundo da morte. O peito da
mulher estava rodeado por um cinto. Em cada
braço tinha uma pulseira de bronze. Na parte
inferior das pernas, havia anéis de bronze. |
Figura 7 -
Reconstituição de um comandante celta de
cerca de 200 a. C,
in Ernst Künzl,
Medizin in der Antike, p. 10 |
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Aos pés, tinha
um vaso com diversos amuletos e um objecto
semelhante a uma foice de ferro, afiada dos
dois lados. Entre os amuletos, havia uma
roda de bronze, um dente perfurado de um
urso, duas peças de calcário com buracos
naturais e uma agulha de osso (Figura 9).
O equipamento
de ferro, bem como a roda de ferro e o disco
parecem fazer parte de um instrumentário
cirúrgico. A vareta de ferro com a pega em
osso e o disco oval parece ser parte de um
furador de trepanação. No túmulo, havia
também um fragmento de uma lâmina delgada de
esteatite que poderia ter sido usada como
instrumento cirúrgico.
Furadores de
ferro provenientes de Bingen, na Alemanha,
do final do séc. I, início do séc. II d. C.,
apresentam semelhanças com o furador do
túmulo de Putzendorf (Figura 10)[22].
A localização
do túmulo, no centro da necrópole, e as
oferendas votivas demonstram o elevado
estatuto social dos seus ocupantes. O
equipamento médico e os amuletos permitem
pressupor que pertenciam à elite. O
enterramento deve ter ocorrido cerca de 400
a. C. Não sabemos exactamente qual era a
profissão dos defuntos. De acordo com
Plínio, o Velho (Plínio, Nat. Hist., 16:
294-251), os Celtas não tinham médicos, a
medicina estava a cargo dos druidas.
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Figura 8 –
Oferendas votivas do túmulo da necrópole de
Putzendorf, em Dürrnberg, Österreichisches
Forschungzentrum Dürrnberg, in Rupert
Breitwieser, Celtic Trepanations in
Áustria, p. 151. |
No caso do
casal sepultado, não parece haver dúvidas de
que os cuidados médicos faziam parte das
funções. Uma particularidade notável deste
túmulo é o de terem sido encontrados nele os
restos mortais da primeira
cirurgiã-curandeira celta.
À volta da
mulher, havia mais três esqueletos de
indivíduos que tinham sido trepanados em
vida, possivelmente por ela. |
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Figura 9 - Túmulo de uma médica-curandeira,
na
necrópole de Putzendorf, em Dürrnberg, Österreichisches
Forschungzentrum Dürrnberg, in Rupert
Breitwieser, Celtic Trepanations in
Áustria, p. 151 |
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A medicina
estava sempre associada a práticas mágicas e
religiosas. Os chifres e as pedras de
calcário eram símbolos de renovação, bem
como as conchas e os caracóis, encontrados
noutros túmulos celtas. O dente de urso
significa o poder do animal[23].
As pedras com
buracos eram símbolos da passagem do
nascimento em rituais de iniciação. Crê-se
que os druidas ensinavam que a alma não
morria com o corpo, mas que passava para
outro corpo[24]. |
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Revista TriploV de Artes, Religiões
e Ciências, nº 3, Janeiro de 2010 |
NOTAS |
|
[14] Ernst Künzl, Medizin in der
Antike- Aus einer Welt ohne Narkose
und Aspirin Reihe Theiss
Archäologische & Geschichte, Konrad
Theiss Verlag, Sttugart, 2002, p.
10.
[15] Rupert Breitwieser, Celtic
Trepanations in Áustria, in
Trepanation, History, Discovery,
Theory, Editors Robert Arnold,
Stanley Finger, C.U. M. Smith, Swets
& Zeitlinger Publishers, Lisse, The
Nederlands, 2003, p. 147.
[16] T. W. Rolleston, Guia Ilustrado
de Mitologia Celta, p. 17.
[17] Urban O, Tescler-Nicola M
(1985): Die latènezeitlichen
Gräberfelder von Katzeldorf und
Gruntramsdorf in Niederösterreich.
Arch Aust 69: 55-104, in Rupert
Breitwieser, Celtic Trepanations in
Áustria, p. 153.
[18] Rupert Breitwieser, Celtic
Trepanations in Áustria, pp.
147-148.
[19] Ernst Künzl, Medizin in der
Antike, p. 11.
[20] Ernst Künzl, Medizin in der
Antike, ibidem.
[21] Ernst Künzl, Medizin in der
Antike, pp. 11- 13.
[22] Ernst Künzl, Medizinische
Instrumente aus Sepulkralfunden der
römischen Kaiserzeit, Rheinisches
Landesmuseum, Bonn, 1983, p. 84.
[23] Rupert Breitwieser, Celtic
Trepanations in Áustria, pp. 150-
152.
[24] T. W. Rolleston, Guia Ilustrado
de Mitologia Celta, p. 21. |
|
Maria do Sameiro Barroso.
Médica, escritora, germanista,
investigadora, doutoranda da
Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de
Lisboa.
Livros de poesia publicados: O Rubro
das Papoilas, 1987, 1998, Rósea
Litania, 1997, Mnemósine, 1997,
Jardins Imperfeitos, 1999, Meandros
Translúcidos, 2006, Amantes da
Neblina, 2007, As Vindimas da Noite,
2008, Prémio António Patrício, 2008,
da SOPEAM, considerado um dos quatro
melhores livros do ano pelo Diário
de Notícias. Vencedora do Premio
Internacional Poesia Palavra Ibérica
2009, com o original Uma Ânfora no
Horizonte.
Integra os actuais Corpos Directivos
do Pen Club Português.
Contacto:
msameirobarroso@gmail.com |
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