Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

PÁGINA INDEX | HOME Número 01|Homenagem à Agulha. Decalque do nº 70 e último. Setembro de 2009

 

Número 01

 

 

 

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Aline Daka: A arte possível, entre uma loucura e um renascimento

[entrevista]
Camilo Prado

 

Página ilustrada com obras da artista Aline Daka (Brasil)

É possível que estejamos ainda muito próximos do movimento juvenil denominado punk, para dele termos alguma compreensão mais ampla e, sobretudo, para percebermos o impacto que causou na cultura do Ocidente em termos de comportamento.

Arriscaria dizer, no entanto, que a identificação do punk com os contrários surgidos na cultura do Ocidente é um dos elementos que o definem. Desde os memoráveis atos dos cínicos (séc. IV a.C.), sempre dispostos a ofender, a agredir, a ridicularizar: de Antístenes, que indo visitar o venerável Platão, que estava doente, “depois de ter visto a bacia em que ele vomitara exclamou: ‘Vejo a bile aqui, porém não consigo ver o orgulho’”; de Diógenes cuspindo na cara de um anfitrião, “pois não encontrava, disse ele, um lugar pior”; de Crates que, “em certa ocasião foi advertido pelos inspetores de polícia porque vestia roupas levíssimas de musselina”; de Hiparquia, a jovem donzela rica que a tudo e a todos abandonou para viver nas ruas ao lado de Crates e de cujas obras ― devoradas pelo tempo ― restam fragmentos de que nenhum punk discordaria: “Minha pátria não tem apenas uma torre nem apenas um teto; onde quer que seja possível viver bem, seja onde for, em todo o universo, é lá a minha cidadela e minha casa”. Desses filósofos, eu dizia, passando pelos monges andarilhos da Idade Média (bons cantantes: “tanto para o papa, quanto para o rei,/ bebemos todos sem lei!”), até o Romantismo e o Decadentismo, bebedores, comedores e fumadores de absinto, haxixe e ópio, bem como inimigos declarados da “modernidade” e da “industrialização”, e ainda passando pelas “vanguardas”, Expressionismo, Dadaísmo e Surrealismo (“não é o medo da loucura que nos forçará a deixar dobrada a bandeira da imaginação”) e a geração Beat e sua “contra-cultura”, encontramos identificação comportamental com o punk. Por isso não é de se estranhar que tenha sido nesse meio, aqui, no Brasil, que obras filosóficas (de Schopenhauer, Nietzsche, Cioran, Foucault, Rosset), literárias (de Blake, Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont, Artaud, Lorca, Breton, Péret, Genet, Ginsberg, Kerouac, Burroughs) e reproduções (em xerox!) de pinturas (de Duchamps, Dalí, Magritte e demais pintores surrealistas), além, claro, de inumeráveis textos anarquistas (de Bakunin, Proudhon, Emma Goldman, Malatesta, Kropotkin), tenha circulado através de fanzines pela periferia e atingido a mente desses miseráveis e inconformados jovens (“vagabundos”, “marginais”, “drogados”, “pobres”, “podres”, “punks”). Nada de novo. Diógenes, o cínico, foi parar em Atenas fugido de sua cidade por ter falsificado moedas! Parece haver um elo entre arte e contravenção nos interstícios dos subterrâneos do Ocidente. Fato é que sempre houve jovens contrariando a sociedade, “se não por palavras, mas por atos”, para usar de uma expressão de Sócrates (talvez o primeiro suicidado pela sociedade). E no punk, parece-me que se pode encontrar uma junção de toda a contravenção ocidental, uma reunião colossal de NÃOS! Daí toda a filosofia “terrorista”, anticristã e anti-social, toda literatura de agressão, todas as palavras sujas, toda a contestação, raiva, angústia, nojo, desprezo pelo humano, ter encontrado guarida na mente desses fodidos da periferia do Brasil, na década de 1980 e 1990, e gerado formas de expressão artística diferentes daquelas que vêm pelos meios “normais” (escola-universidade-tradição). Do meio punk surgiram indivíduos que, não importa o que foram fazer “depois que cresceram”, fizeram de um modo peculiar, fizeram do seu modo. Música (muita música), teatro, dança, literatura, filmes e… pintura.

É desse meio que veio a autodidata Aline “Daka” Deorristt, artista plástica nascida em Viamão, cidade vizinha a Porto Alegre, em 1979, e autora de uma obra singular, imagética e imaginativa.

Aline é pintora, desenhista, faz ilustrações para livros e capas de disco, e atualmente estuda também gravuras em metal, método pelo qual já criou algumas obras. Por esses dias, segundo ela, anda lendo Julio Cortázar e fazendo exposições de suas obras. Sobre duas dessas exposições ela fala aqui: a exposição coletiva Hystéra (ocorrida de 09/06 a 01/07 de 2009, Galeria de Arte do DMAE) e da exposição individual O pátio das Idades (de 03 a 21/09 de 2009, na Galeria Clébio Sória), ambas em Porto Alegre.

É também aluna de Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS, cursando o 6º semestre, bolsista do programa de Bolsas Santander Luso-Brasileiras e Relinter/UFRGS, e está a caminho da Universidade de Lisboa (Faculdade de Belas Artes), onde permanecerá por seis meses. Mora em Porto Alegre e edita os blogs: O Impossível, em parceria com a jovem escritora Ana Santos e Esfera, com as artistas gaúchas Lílian Gomes, Fernanda Kieling e Ana Becker. Aqui, ela fala sobre sua autoformação, sobre sua relação atual com a academia, sobre sua obra, sobre Rimbaud e suas heranças estéticas, e demais perguntas (impertinentes, talvez!) que lhe fiz, depois de uma série de mensagens trocadas via correio eletrônico. [CP]

***


CP | Aline, você está fazendo o caminho inverso de muitos artistas atuais. A sua formação artística veio antes da formação acadêmica. Autodidatismo, faça-você-mesmo… Como foi isso?

AD | Bem, isso foi a partir de 1998, eu já era punk, morava com amigos bem longe dos pais e da terra natal. Uma das grandes influências para o início de tudo foi o grande poder imagético da literatura que eu lia, os mundos que eu criava a partir daí… Rimbaud! Sim, as imagens! Eu me apaixonava tanto pelas reproduções de pinturas como pelas histórias dos seus pintores, pelas gravuras dos livros e dicionários antigos com os traços bem fininhos e cheios de detalhes… Lewis Carrol, Gustav Doré, Nouveau Petit Larousse Illustré (1955)… Pelos HQs na linha de Crepax e Mutarelli… Inicialmente compus fanzines, que eu mesma desenhava, recortava, escrevia, editava, xerocava e espalhava pelos quatro cantos… como tantos outros punks, movidos pela vontade de relação crítica para com o mundo.

Comecei a desenhar para dar poética às publicações, porque eu precisava fazer minhas próprias imagens, de alguma forma precisava daquilo, e certamente para ver também o que e como eu me arranjava naqueles dias.

Depois fui parar nos quadrinhos, cheguei a publicar duas edições de um fanzine de HQ chamado “Atristar”, que quer dizer “entristecer”, ele teve grande distribuição entre os punks e afins… Nessas soluções criativas eu me inventava e me salvava. De uma maneira inconsciente somos seduzidos pelas espécies de rituais que vamos construindo para nós mesmos. São momentos de solidão e metamorfoses, de conversa com os mortos…

 A “Hora do Lobo”, como definiu Bergman, é necessária ao amadurecimento, porque os conhecimentos aí são aprofundados, e não raro de maneira extrema e febril. Enfrenta-se tudo isso depois em choque com o cotidiano, que é duro. Por isso acredito que minha formação foi construída à flor da pele. Desenvolvi habilidades manuais a partir de desejos puros, fazendo apenas, exercitando, produzindo imagens pessoais, misturando elas à bagagem cultural que estava adquirindo. Soltando a mão eu me alimentava de minhas memórias sensíveis de vida, que era o que eu tinha, e de percepções que procurava sempre renovar. Eu sempre quis captar algo do cotidiano para além do que ele pudesse me dar. Desenhava cada vez mais e desenhava com o possível. Por isso nunca compreendi os conceitos que separam a arte da vida. Porque ela tem muita fome de existir, a arte tem fome de envolvimento… E autodidatismo é puro envolvimento. É experiência. E autonomia. Simples assim. Mas complexo. Vai entender… Quando se faz isso com a própria vida você está levando algo muito a sério (mais sério ainda, porque é espontâneo), daí nascem os estudos. A arte aí é transformadora, e supera os limites do que chamam pejorativamente de “terapia”. É linguagem e conhecimento sendo manipulados, gerados e nutridos, a toda vontade. Acumulei naquele tempo uma boa quantidade de trabalhos que alguns chamam de “fase negra”, mas que para mim foram fundamentais à descoberta da minha arte. A arte possível, entre uma loucura e um renascimento. Sim, eu era bem jovem e já compreendia isso, de várias maneiras. E, como você pode ver, esse vício persistiu tanto, que como por ironia, há dois anos, na beira dos trinta, resolvi assumir uma postura de quem tem um lugar no mundo, de quem tem o que fazer, isto é, de que se pode alguma identidade para si. Entrei para a Universidade de Artes com a intenção de “trabalhar” ainda mais, vesti o artista. E se este grande fato acentuou minha produção? Sem dúvida nenhuma, e como dizem por aí: “para o bem e para o mal”. Mas não superou o autodidatismo, que é sempre a fonte dos milagres na terra.

CP | Além de outros elementos, sua arte possui uma forte característica suburbana onde transparece, sobretudo nos rostos e olhares, uma angústia, uma raiva, uma agressividade, mas também, nos gestos, uma ternura. Estaria aí uma herança do punk? Já que você, como muitos outros jovens de nossa geração, conviveu com essa “coisa” chamada movimento punk?

AD | Sim, o movimento punk foi uma de minhas vidas, a arte começou a tomar forma aí. São permanentes as experiências desse período, muito fortes, influenciando o caráter gráfico e pictórico dos desenhos (acúmulo de coisas, cores vivas, figuras em estados cruciais, crises, os temas ligados ao existir e à condição de mundo, etc.) não posso me desfazer disso. Nós punks saímos de casa muito cedo, meninos e meninas, não tínhamos nada mesmo e nem éramos aceitos em nenhum lugar senão ali, entre os nossos. O rancor era embebido numa vontade extrema de mudar as coisas, a vida, a política, a música, o amor, tudo! Para isso era preciso muito mais que gritar na rua, era preciso sacudir o mundo e a si mesmo. Desconstruir a fragmentação que herdamos: uma luta! Éramos nossos próprios exemplos e nossas cobaias, criávamos nossos rituais porque já não tínhamos Deus. Sim, sempre fomos ternos e cativantes apesar daquela nossa aparência propositalmente rude. Lembro de como éramos extremos, tanto na dor como nas paixões. Barroco, não? E tínhamos toda a responsabilidade de estar crescendo num mundo que nos espiava, não dava tréguas e estava mudando sem que percebêssemos (nesta época exatamente a internet estava chegando… ). Alojados em qualquer lugar, com um monte de livros pra ler, sem perspectivas, sem professor para explicar as teorias (que eram relacionadas diretamente aos sentimentos e sentidos e desejos e pensamentos que se formavam cruamente ali, despidas de maiores pudores, em contato direto com a nossa condição de vida). Eu não tive aulas de desenho, mas tive pessoas criativas à minha volta indo e vindo e situações sem paralelos que contribuíram muito para o desenvolvimento das minhas percepções gráficas e visuais. E isso tudo aconteceu neste país bem aqui e sei que ainda existem punks assim. O movimento punk mudou a vida de todos que passaram por ele, tenho certeza disso. Ninguém sobrevive a tanto rasgo e a tanta costura de maneira a ignorar o que o formou. Sei também que estou sendo um pouco doce para relatar tal experiência, que foi um trampolim para se descobrir a vida, mas que como diz Cortázar, é (foi) também: “… esse jogo à beira da sacada, esse fósforo ao lado da garrafa de gasolina, esse revólver carregado na mesa iluminada… “, muitos riscos e muitas iminências obscuras. Prefiro fazer isso que cair em antigos chavões ou transformar tanta coisa expressiva e profunda em frases de efeito e dar ao leitor algo que eu detesto que me dêem: um retrato chocante, mas de falso toque. Conservo elementos do espírito daquela época na minha arte e no meu caráter, é inevitável, é memória.

CP | Como você tem lidado com os “conceitos” das artes plásticas na academia? Ouvi dizer, de um curso de artes plásticas de uma universidade catarinense, que os estudantes não aprendem a arte pictórica, mas sim, a “desconstruir conceitos”. Você consegue relacionar a sua criação com esses “conceitos”, “teorias” e linguagem técnica da academia e de boa parte da crítica de arte atual?

AD | Procuro lidar com os conceitos em arte com toda a boa vontade e disponibilidade da minha geniosa reflexão, mas não me desgasto. Ganho muito mais trabalhando em casa, quieta. Os conceitos estão inseridos nas coisas de modo inseparável e há sempre muitas relações de idéias a serem feitas. Ok, não somos tontos, vamos aproveitá-las. Mas se escuta muita bobagem também, é um teatro! Não gosto do pedante, do presunçoso, do inquisidor, figurinhas muito comuns nos meios acadêmicos ou intelectuais. Eu suporto dentro do que é possível relacionar conceito e obra, isto é, se houver flexibilidade e boas vantagens para ambos nesse diálogo esquisito. Eu escrevo muito paralelo aos trabalhos e esboços, não como escritora, mas como poeta que “pinta e borda”. Escrevo coisas misturadas, um tanto doidas, solto o gesto da palavra que surge com a imagem, circulo por idéias, e até faço definições, mas tudo é muito ligado ao manifesto de criação e não ao conjunto formal das idéias discursivas acadêmicas racionalíssimas. E sempre me sinto ridícula quando começo a fazer citações demais ou a discursar como universitária (por mais que a gente tente sempre cai numa dessas) para explicar coisas que podem ser postas a nu com a simplicidade de uma conversa de bar, isto é, de maneira mais íntima e verdadeira (apaixonada, eu diria). (Arriscada! Metafórica!) Se amadurecermos as questões em nós estaremos usando o poder transformador disso, mesmo que arbitrariamente em alguns casos, mas e daí? É melhor que incorporar um palestrante vinte e quatro horas ao dia. E bem, já que não posso evitar os conceitos agora, lembro de uma música dos Mutantes que diz: “chorar não ajuda ninguém… que a vida mal começou”. Quanto mais descubro características que possa desenvolver, ou que já o tenha feito, mais se definem as casinhas às quais me encaixo, o que é normal, mas isso me causa um certo pavor, confesso. Neo-expressionismo, naturalismo-expressionista, neo-simbolista (tudo é neo), artista figurativo-narrativa, artesã, artista manual, artista que trabalha com o “tradicional”, ah, ela faz figura humana, ah, ela trabalha com a emoção, maneirista, romântica, ah, o caminho dela é evoluir para o neo-realismo, mas será que não deve partir para a abstração e partir o coração, desenhista ou pintora, cronista, barroca, surrealista, ilustradora, maldita, etc. Parece um pesadelo que não colabora em nada com os caminhos tortuosos da criação. Há conceitos para tudo, que nem as patologias para as manias humanas que são exageradas, ou as leis que são “feitas para todos” … sim, é um mundo de advogados, de manipulação! E o pior, não raro as duas coisas (obra e discurso) se desencontram de forma ridícula. Sinto-me aprisionada pela fórmula, amputada quando discutida, banalizada pelas etiquetas.

(Mas quem sou eu?)

A informação e a formação fazem isso contigo, trazem a consciência da família da qual pertence, te propõem lugares ― discursos ― para agarrar e seguir com a confiança de quem encontrou sua “pesquisa”, te isolam, te fazem picadinho, te torturam a mente, saturam! Tu me perguntas se consigo relacionar conceitos acadêmicos e da crítica atual ao que eu faço… sim, às vezes, mas essa relação não é amistosa. E eu gosto de fazer misturas. Simplificar para exagerar. Pode parecer que não estou dizendo nada com isso… não me importo. Sou doida pelos maneiristas, amo Caravaggio, logo, Caravaggio está em mim, subjetivamente, simbolicamente e formalmente, de alguma forma, que é a minha, e não a dele. Quando eu descobri a Transvanguarda Italiana, simplesmente adorei, as palavras de Oliva ecoavam, até a contradição era boa. O Expressionismo, com toda sua carga de “detrimento da forma em virtude da expressão” é genial, Kokoschka e Schiele são primos muito próximos e queridos! Nesses tempos li o livro “Mi Vida” (uma edição traduzida para o espanhol), que é a autobiografia de Kokoschka. Ele escreve completamente livre da crítica formal, e foi uma das coisas mais incríveis que li sobre arte e artistas, havia intimidade ali. Paula Modersohn-Becker é uma irmã de alma! Reconheço nas obras dela uma atmosfera que me aproxima, que expande o “espírito” além da matéria, isso pode parecer loucura, mas é simbólico, extra-oficial, poético! A anarquia dos Dadás, eu cresci com isso! Desenhos de Artaud! Pura arte, pura vida e puta merda, que maravilha! Arte brasileira? Marcelo Grassmann, Rubem Grilo… Tem um artista gaúcho que foi meu professor de gravura em metal no Atelier Livre em Porto Alegre… O Cava! Grande artista o Sr. Wilson Cavalcanti! Alguém aí já viu as coisas belíssimas que ele faz? A arte não é menos incrível porque seu autor está vivo do seu lado (muitas vezes, o caso é que ele está marginalizado pelo sistemão!). Gosto das características brilhantemente narrativas nas pinturas de Paula Rego, que força! Do caráter simbólico e atormentador das obras de Balthus, Camille Claudel, Alice Neel, Charley Toorop, Kate Kollwitz, Kiki Smith, Anselm Kiefer, Goya, Lucien Freud… Fotógrafos que exaltam o “humano” me encantam: Lewis Hine, Diane Arbus e Mary Ellen Mark são maravilhosos. Por falar nisso, a força da presença do autor quando acontece ali na obra, é algo apaixonante pra mim, a ambiguidade da arte com relação à realidade me encanta. Alguém esteve ali um dia, alguém fez aquilo, alguém viu além de mim agora, são relações com o infinito! (Não acredito na crítica que separa tanto o autor quanto o observador da obra.) A partir dessa forma de “gostar” ― palavra proibida no mundo dos conceitos intelectualizados ― que significa “o que dá ganas na alma da gente” você chega até os discursos formais, sociológicos, antropológicos, existenciais, políticos, poéticos, patéticos, etc. A minha maneira de refletir os conceitos é torná-los internos, aproveitáveis, inerentes à percepção e à paixão que tenho pela arte. De acordo com eles, eu posso ser uma “artista figurativa”, que trabalha evidenciando a “sensibilidade emocional”, “além da forma”, graficamente “expressionista”, e “fora de moda”. Uma trilha já formada então, prestes a ser aprofundada teoricamente no meu grande Projeto de Graduação. Mas o que é que eu quero mesmo? Acredito que seja preciso nos aproximar ainda mais das coisas antes de usarmos nossas “sábias” palavras para os cortes. Ficamos então sempre com a obra e aquilo que ela nos faz sentir, não importa muito o que diz o cartaz.

CP | Muitas das suas criações possuem um peso, uma espécie de morbidez que causa certo incômodo ao observador.

Para pessoas não habituadas à arte, talvez até assuste um pouco. Imagino que já te disseram algo acerca disso. Eu confesso que sinto, diante de algumas de suas imagens, algum desconforto, algo análogo ao que senti com certas passagens da literatura de Samuel Beckett.

Como você lida com isso, com esse tom mórbido que está expresso em muitas de suas criações? É uma forma de expulsar seus demônios, ou simplesmente o gosto por uma estética sombria que, creio que você concorda, tem um “ar” expressionista?

AD | Sim, já me disseram tantas coisas… São muitos tipos de reações diante dos desenhos, agradáveis e desagradáveis a elas, e devolvidas a mim. Gosto mais quando as pessoas ficam quietas e pensativas. Esse ar misterioso estimula a mim e gosto de pensar que a elas também. Parece-me que o incômodo do qual tu falas é gerado porque os desenhos não são fáceis de serem apreendidos numa rápida primeira olhada, tanto pelos detalhes quanto pela carga das formas… e eu diria ainda, pelos demônios que elas provocam. O que eu quero ou consigo com isso? Não sei. Penso em palavras como “real proximidade”, “sensibilidade nua e crua”, “morte e vida”, “imaginário e memória”, “tire o espinho da pata do leão e ele será seu amigo para sempre”, sei lá. A compreensão é sempre tentativa, não sei até que ponto nós conseguimos tocar o outro, e o outro tocar a obra ou ao autor. Não dá para medir a dimensão disso em nós… Pensar no observador é outro momento, foi algo que veio depois, é recente, inevitável. Anterior a isso, eu simplesmente não mostrava os desenhos, eles ficavam no canto deles, só eu os visitava. No caso das ilustrações eu me proponho a pensar em uma comunicação artística, mais clara, em parceria com o texto, porque são muitos elementos aí envolvidos, é condução, iluminação, conversa. Nos meus desenhos e pinturas é diferente, é onde eu habito com desembaraço. Um lugar onde posso explorar todo o tipo de relações. Não estou inserida aí moralmente, não estou em julgamento, nem fico imaginando o que possa ser realmente compreendido fora da ventania dos meus pensamentos e sentimentos. Esse é o primeiro momento. Para mim, muitas vezes, as imagens aparecem como segredos, eu sinto que sei sobre elas, mas não me digo totalmente… e nem sempre acabo descobrindo depois algo além disso, da cara de enigma. Nos momentos de “criação” sou eu que estou em xeque, eu sinto muito prazer nisso misturado à angústia de todo o sempre. Prefiro resumir que é exposição, desejo, exercício de sensibilidade. Não se trata de isolamento do mundo porque estou falando dele, eu estou nele, o cotidiano me dá muitas referências, é o próprio esboço! É força empregada, carregada, coberta de vestígios, de percepções, de inclinações e de influências. Isso é paixão pela linguagem, acho que não outra coisa, a gente faz o que pode também. Graficamente eu converso muito com minhas limitações sem me preocupar em polir o ato. Parece-me que a deformação nos desenhos não conseguiria ser um charme estilístico, hahaha. E eu acabo descobrindo mundos com isso. Uma vida atrás, penso eu, era mais exorcismo, sim, porque eu só queria o rasgo. Como disse cinematograficamente Johan Borg: “Nada há de revelação pessoal em minhas criações – a não ser a compulsão”. Talvez o caráter “mórbido” venha daí. Mas eu não acredito que seja isto agora. Antes um processo artístico tocando fundo no absurdo das coisas e se deixando levar pelas relações (Pare de fazer acrobacias, a casa é sua). No início controlamos menos, com o tempo afinamos mais nossas manias, inventamos mais certezas, ainda que elas sejam descaradamente um pretexto pra desconstruir tudo de novo. O desconforto que tu fala vem dessa estético-poética encontrada no modo de pensar e sentir o ser, acho que vem daí minha obsessão pela figura humana. Fui educada pelas circunstâncias lendo muita poesia, Rimbaud, sempre falo nele, Pizarnik, Trakl, Cruz e Souza, Sousândrade… meus desenhos se alimentam muito de escritas ditas “malditas”, “existenciais”, “intimistas”, “visuais”. Pelo poder humano que elas têm, e enquanto pura arte! Sim, eu adorei Beckett, Cortázar, Lautréamont… eles carregam o espírito literário vinculado às sensações mais… incríveis! Caramba, como dizer isso! Atualmente, tenho lido a poesia de Adélia Prado, livros de Clarice Lispector e Guimarães Rosa, em conseqüência de ter conhecido uma jovem e grande escritora que se tornou minha amiga e parceira na arte. A senhorita Ana Santos me instiga muito a desenhar com seus contos, descobrimos grande afinidade, fazemos muitas trocas. Foi por meio dela que descobri a delicadeza que estava escondida nos desenhos, ali, prestes a me devorar, a me mostrar um novo mundo que dá atenção aos detalhes e às sutilezas das expressões. A Ana é genial. Esse “tipo” de literatura e poesia guarda muitos segredos. E por certo têm alguma parcela de culpa nessa minha teoria “simples” de “pensar e sentir o ser” (muito além dos teóricos de arte que tenho que ler). Logo, os desenhos estão carregados dessa emoção e por mais que eu me esforce em calcular ou realizar grandes esboços, escrever conceitos antecipadamente para equilibrar isto ou aquilo, eles me surpreendem, ficam tortos, é coisa submetida. Realizado de raciocínio, claro, mas de veia, sobretudo. Tentativa de não sei o que, do que e como explicar. Transcendência? Manifesto? Poesia? Por isso, o “ar” expressionista. (E não estou falando de ilustrações de textos lidos, mas de gravidade na arte, no vínculo poético com o cotidiano e o ser). Quanto ao público há uma grande vaidade em minha vontade, mais orgulhosa da luta que pretensiosa, que pensa: “é impossível que não os atinja, que não os chame a uma conversa íntima, pois que meu interesse é o humano, eles não vão ficar indiferentes… “. Uma obra então que pode assustar…

CP | Imagino, pelo resultado final de suas obras, que você não está muito próxima desses artistas que gostam de descobrir novas técnicas, novos materiais, etc., e que você se ocupa mais da criação em si, do que dos materiais pelos quais cria. Estou certo nisso? E já que a maioria das pessoas (incluso eu) vê suas obras pelo meio virtual, fale um pouco sobre os materiais que você normalmente usa.

AD | Matéria. Nunca tive muita escolha em relação aos materiais, estou vivendo a melhor época disso. Neste país é caro fazer arte, você tem que se virar, mas acaba percebendo que as coisas que faz não duram muito, elas estragam muito cedo, bem na sua frente, parece que só para te mostrar a própria efemeridade. Tem gente que não liga pra isso. Eu desenhava no verso de folhas mimeografadas que a mãe de um amigo trazia da escola onde trabalhava, para fazer os fanzines, mas não por opção. Um belo dia, alguém me apresentou a caneta nanquim, e que dia! Usava maquilagem, tintas guache do armazém da esquina, sementinhas de urucum bem vermelhinhas… Esses trabalhos hoje têm manchas amareladas de tanta gordura e ácido, e estão em processo de fenecimento… a solução foi escanear tudo. E por que isso? Porque me interessa a imagem com seu poder simbólico ali trabalhado que eu não quero deixar morrer. Depois veio o pastel oleoso nas minhas mãos e percebi que eram semelhantes à maquilagem gordurosa que eu usava para fazer as manchas… além disso davam um resultado muito superior à imagem, claro, daí que agora tenho muitos trabalhos em pastel, todos bem coloridos. Uso tintas, tela, papel, lápis aquarelados para as ilustrações, coisas normais demais. Emprego nos trabalhos, porém, muita matéria, exageradamente até ele dizer chegaaaaaa! Misturo às vezes todos os materiais como em muitos desenhos que têm de tudo ao mesmo tempo, é uma bagunça. Algumas misturas desastrosas me tombam, normal, fico puta, depois passa. Preciso de um suporte bom para trabalhar a imagem e isso basta, quando ela está prestes a vir não posso perder tempo. É verdade que o material influencia e torna as coisas diferentes entre um trabalho e outro, mas se é necessário fazer, e se tenho apenas isto aqui então adeus delírios. Por outro lado, estou estudando gravura em metal desde o ano passado, e me apaixonei perdidamente pela técnica e pelas suas possibilidades, e é uma arte cara, tenho que correr atrás de como pagá-la. Recentemente, para um projeto de Exposição Coletiva sobre a Histeria e o Feminino, eu me deparei com o clássico problema de como expor desenhos em papel. Eu precisava de uma quantidade considerável de molduras, e elas teriam que ter uma grande medida para o que eu estava imaginando, e então como fazer? Resolvi desenhar com nanquim em tecido, dois pedacinhos de madeira pra sustentar… briguei com o material como doida até encontrar uma fórmula (que também não achei na Universidade)… Demorou, fiz estragos quase irremediáveis nas paredes 3x3m que é a metade do meu quarto, o maravilhoso atelier que tenho pra trabalhar, mas consegui. Sozinha, munida de um pincel e um tubo grande de nanquim: dez trabalhos, todos em tamanho natural. Ah, e importante dado para atestar meu esforço: realizados em quatro meses, sem dinheiro e nos intervalos de aula, dos dois empregos que eu tinha e da hora marcada para o sono que nunca vinha. Isso sem contar as relações pessoais que ficam submetidas ao vendaval. Foi um inferno e a vida quase parou o mundo para eu descer. Não descansei enquanto não pus todos para fora de mim. E enfim, é como nascer para um novo nada! Esvaziar-se, simmmmmm, isso mesmo. Os desenhos estão agora enrolados ali, embaixo da mesa. Fragilidade? Penso nisso. Mas minhas experiências artísticas se concentram na “criação em si”, não é mesmo? Falo do que as traças e o mofo não podem jamais tirar de mim.

CP | Com exceção das que estão “embaixo da mesa”, que destino estão tomando suas obras? Sei que algumas ficam com amigos, outras estão indo para capas e ilustrações de livros, exposições, etc. Parece-me sempre que o desejo de um artista é sobreviver de sua arte. Que planos a jovem Daka tem para suas criações?

AD | O destino delas até aqui são esses mesmos que tu acabas de citar: amigos, capas de livros, exposições… Não sei do futuro. Gosto das exposições, elas dão um trabalho do cão, mas assim tudo pode ser de todo mundo… Ninguém tira isso de ninguém… é um acontecimento para a obra também, ela passa a ter vida própria, uma anarquia de sentimentos. E ninguém paga por nada (a não ser o artista). As pessoas que normalmente querem ficar com os trabalhos também não têm dinheiro… Meus amigos acabam ganhando trabalhos como presente e fizemos trocas muitas vezes… Sei que não faço nada que pudesse decorar uma sala de estar. Não tenho sobrenome, não para seduzir o mercado de Arte até meu “atelier” (minha pátria são os meus sapatos). Se haverá um mercado para minha arte? Não sei, somos alguma coisa nesse mundo econômico quando ele precisa da gente de alguma forma, isto é, eles decidem. Nada a ver com recompensa ou compensação ou retorno pelo trabalho empreendido. Ninguém sabe dizer o que define o preço real de uma obra de arte… em moedas? Impossível. Tenho o desejo de viver da minha arte, claro, é até engraçado isso (e a dependência é triste). Porque dessa forma se pode dedicar-se a ela integralmente, como um círculo, faz-recebe-faz-recebe. Por outro lado, não quero restringir o seu acesso, ou torná-la um produto. Como fazer, de novo? Com a chamada “vida dupla” o artista acaba ficando louco e isso é muito sério. Você não pode habitar os dois mundos tranquilamente, o mundo de empregado em qualquer função por oito horas ao dia e o mundo de produzir arte. Ninguém agüenta. E tem o fator tempo e o fator espaço que são muito importantes em artes. A arte “material” também habita um espaço… Penso em mais adiante poder enganar o tempo e arranjar um jeito de conservar esses trabalhos antigos. Penso em fazer, fazer e fazer e tenho muitas idéias, temas, formas, esperando a oportunidade, eu guardo muitos segredos também… quero cor e pintura e quero continuar estudando gravura em metal em paralelo… Dar forma às imagens internas… Estudar profundamente a figura humana… Sair por aí e viajar e ver gente… Misturar as coisas…  Expor tudo depois para ver o que acontece, comigo, com a obra e com os outros… etc. Sim, Camilito, desejo ardentemente amenizar o choque da “dupla vida”, e dessa maneira poder deixar minha arte amadurecer sem desesperos inúteis. Todo artista quer isso.

CP | Fale um pouco sobre esta exposição que ocorre agora em agosto.

AD | Foi uma oportunidade relâmpago, dessas que aparecem uma semana antes da abertura. Surgiu a partir da Exposição Coletiva Hystéra que citei ainda há pouco, que aconteceu no mês de junho deste ano em Porto Alegre. Vou expor agora parte dessa série de desenhos, composta por nove trabalhos, sendo eles três grupos de três, intitulados “O Pátio das Idades”. Eu mais quatro amigas/artistas montamos um projeto de exposição inicialmente baseado na Histeria. Depois, mexendo nesse formigueiro, nós descobrimos o termo Hystéra, que quer dizer “útero” em grego. Tema amplo, que nos remetia ao todo da palavra “origem” e nos identificava diretamente. Propomos então trabalhar o “Feminino” na arte. Cada uma de nós passou a realizar um trabalho específico para a exposição relacionado ao tema. Por onde eu fui… aproveitei-me profundamente da figuração. Os sintomas da Histeria de Charcot (séc. XIX), sempre ligados à condição cultural de opressão da mulher são carregados de uma linguagem corporal extremamente mimética aos sentidos, simbólica e subjetiva. Os gestos do corpo, os enigmas propostos pelas crises (muitas delas provocadas por torturas), a condição de ser uma “doença de alma”, isto é, psíquica… Um prato cheio de trigo para um tigre triste! Foi nesse embate corpo/cultura/espírito/sensibilidade que eu compus as formas das figuras, todas femininas, o que me colocava numa posição próxima demais. São três grupos de idades: meninas, mulheres e velhas. Cada uma delas possui em si uma gama de elementos sensíveis postos em choque. Eu me deixei levar por memórias pessoais e também coletivas, por relações culturais de nosso tempo. Misturei tudo depois à mitologia grega, inventei contrastes, discuti subjetividade em arte, e por aí dançou. Essas figuras foram feitas de memória, a partir de esboços pequenos, e desenhadas diretamente no pano em escala maior. Fiz em P/B, era necessário, a Histeria me dava sensações em preto e branco. Propus “O Pátio…” porque é o lugar onde todas ficam juntas quando estão fora de suas “celas”, um momento de pluralidade, digamos assim. Elas saíram de olhos fechados, me fazendo refletir suas presenças. Graficamente eu “limpei” a quantidade de elementos da composição deixando somente elas, flutuantes, existentes alegoricamente numa atmosfera “interna”. Só consigo dizer assim. Esses desenhos de “Fases da vida” me disseram muitas coisas… e me deixaram de veias abertas.

CP | A questão das cores. Se não me engano, você começou preto e branco e depois foi colorindo-se aos poucos. Mas isso não mudou os desenhos na sua, digamos, “expressividade”; o que você fazia em preto e branco continua fazendo com cores. Como é, ou foi, inserir o colorido sem mexer com a “natureza” (sombria, mórbida… ) de suas criações.

AD | Não sei. As cores, normalmente quentes, que uso te parecem mórbidas? Eu vejo uma vibração querendo saltar, após longo período de timidez. Fiz um desenho grande todo colorido (que um professor me disse que era “barroco demais”) cheio de figuras alegóricas em meio a uma chuva de serpentinas… tudo dançava na minha frente, quando terminei veio isso: “Vida e Morte Serpentina”. É alegria! Alegria de morte, sim. Mas não mórbido, é diferente. É um respiro profundo de vida com todas as mortes possíveis para que ela se reinvente, claro. A arte é como a gente… Um golpe de tristeza infinita, inerente e inevitável… Desencanto. Teoricamente continuo com o impulso de querer sacudir tudo de dentro, das emoções à ponta do pé… Lirismo, ainda que negro compadre, mas não morbidez, é o que eu acho. Artaud escreveu (é um clássico!): “Quem no seio de certas angústias, no fundo de alguns sonhos, não conheceu a morte como uma sensação destroçante e maravilhosa com a qual nada pode confundir-se no reino do espírito?”, exatamente assim. A arte é feita aos círculos, de vidas e de mortes, metafóricas e reais, e a vida é igualzinha. Comecei a usar a cor em momento significativo, quando um amor morreu, literalmente, num estúpido acidente de trabalho e eu fiquei viúva aos 22 anos. O que eu conhecia morria e era necessário começar então outra coisa. Acredite ou não, isso tem a ver. Parei exatamente ai de xerocar e de fazer os zines. Agora desenhava colorido imagens solitárias, sem grandes narrativas, congeladas em seus próprios significados. Percebo com isso que tudo possui uma misteriosa relação.

CP | Por favor, não considere o termo “mórbido” como negativo! Vamos usar um outro que me parece sinônimo: “grotesco”. Se não me falha a memória, foi Baudelaire quem primeiro refletiu sobre o grotesco na arte. No Brasil, nosso maior poeta, Augusto dos Anjos, se insere na arte grotesca. Na pintura, lembro de Hieronymus Bosch, de Félicien Rops, e, para citar um contemporâneo, H.R. Giger. Todos esses possuem obras mórbidas, ou, se preferes, com elementos grotescos. É claro que isso não os limita, assim como não limita você. Quando eu disse, por exemplo, que alguns de seus desenhos me passavam um “desconforto” semelhante ao que senti lendo Samuel Beckett, estava pensando nas figuras mutiladas, pelo menos duas, que você fez (uma delas é gravura em metal). Isso me trouxe ao espírito imediatamente aqueles personagens dentro de latas de lixo em “Fim de partida” de Beckett. É claro que eu percebo alegria em algumas de suas criações. Aquelas meninas em roda, com um fundo super azul, transmite alegria, sem dúvida, mesmo que a menorzinha pareça triste. Então, não me parece que as cores quentes que usas sejam mórbidas, mas me espanta que inseres uma leve morbidez, um leve tom grotesco, apesar das cores quentes. Tem certas imagens que parecem que pedem o preto e branco. Acabas de dizer: “a Histeria me dava sensações em preto e branco”. E, no entanto, penso que talvez serias capaz de colorir a “Histeria”, sem perder em nada a sua expressão original.

AD | Camilo, a palavra “grotesco” é um tanto grotesca, não acha? Mas tá certo, sem complicar, eu entendi o que você disse e o que deseja… você quer mexer com o monstro que está quieto e não apenas com o médico que tem estado presente tentando costurar a própria insensatez e pintar algo tranqüilo pra não acordar as crianças… ok, vamos despertar, “aprenda a dançar”… primeiro precisamos fugir do foco nos termos e falar positivamente desses elementos que para mim são no mínimo instigantes, embriagantes, sedutores e um tanto inevitáveis.

Falemos das características dos desenhos que é o que sugere esse aspecto mórbido e grotesco. Do espírito intrigante e assustador de se levar as coisas ao seu confronto crítico, de desconstrução, o que é uma característica existencial pura, a partir das ferramentas das quais se têm. Habitar entre sonhos e pesadelos humanos sem com isso se deixar levar pelas moralizações. Viver entre as vidas e as mortes dos ciclos, aqueles de que falei evocando Artaud, das linguagens possíveis dos nossos impossíveis… Da mania de colocar adjetivo para toda e qualquer palavra dramatizando os sentidos para encontrá-los novamente (sei que faço isso como doida, são os meus antepassados habitando as minhas veias). Do céu e do inferno de nossas dualidades constantes perseverantes incoerentes absurdas e trípticas… Das sabedorias e das paixões sempre renovadas às duras penas. Encontramos aí o ser lírico, rasgando-se, perguntando-se, o exato momento de crise e de reconstrução, de corte, de devaneio, de composição, de morte, de banalidade também, de eterna infância e eterna velhice, de solidão, de silêncio, de angústia, de nada, de encontros e desencontros… A dor não é somente negra ela é rosa também. L'etoile a pleuré rose… De extrema e constante dor na alma, de febre no corpo, de limites, de vertigens, de imaginação, de tempestades, de subjetividade e de consciência (habitantes da mesma casa) ferozes ocres avermelhadas armadas contra a inocência amarelo-limão da própria mesquinhez, e acomodação, e mediocridade, e alienação, e ingenuidade (Davis e Golias). De inebriação, extravagância, orgulho, vaidade e desembaraço azuis… Cai a máscara, põe o espelho na frente da face, desequilibra o corpo, adormece e deixa cair, puft, lá vou eu de novo. Cansa, quem não cansa e depois sacode a miséria roxa? Claro, a moça persiste, é siamesa, é preciso enganá-la diz assim olha lá o avião. Morre-se de amor também. Mas porque amor é intimidade, misturas de cores, isso, quem tem medo do amor? Precisamos compartilhar… Alcançamos mais, sei que podemos, ei não vamos desistir, vamos começar destruindo o compasso rumo ao caixão das emoções. Mesmo que depois sejamos nós mesmos a compor os nossos novos réquiens. Acho que ainda vale. A alegria de que falo não é a alegria sorridente da tampa de margarina, é uma alegria interna vibrante de estar inteiro e vivo pelo tempo de um suspiro… Pra depois reencontrar-se com a angústia de existir, dar as mãos e sair pra passear numa rua deserta qualquer, sem pai nem mãe olhando para o céu apontando o dedo e fazendo pedido. Acho que a menina mais alegre da composição é sem dúvida nenhuma a menina triste! Perceber a vida é encontrar-se com a tristeza maior, divina, fundamental, e sorrir. Coragem! A tristeza é palácio de imaginação, é palco, é binóculo, é casa, é quintal, é sabedoria, fortaleza imaginária e roupa estendida no varal para renovar todas as defesas contra a morte derradeira. No Brasil a tristeza é feliz, tinha que ser. Esfera do olho apavorado ou triste ou angustiado que olha diretamente lá dentro do outro parecido ou susceptível alcançado… E sorri espontâneo, livre, brilhante, cumplicidade. Figuras mutiladas são muitas vezes os retratos de nossas faltas, ora, é simples, somos todos deficientes de muitas coisas sempre… Objetos espalhados pela imagem como muletas, seringas, cigarros, vestimentas rotas, nariz de palhaço e tantas outras coisas “apavorantes” atestam nossas impotências, carências, loucuras, vontades e mais, mais, não há tradução direta e concisa, não estou fazendo propaganda de nada. As posições dos corpos são nossas danças, nosso canto, nosso pranto, nosso sono, ciranda das ocasiões. As narrativas são as situações, os descontroles, os atropelamentos, as relações… Todas essas imagens vieram soltas, in-conscientes, sábias e frágeis, assim como vão, e podem voltar me enganando sempre. Permeiam os desenhos, a vida. Somos universais em nossas particularidades… não é difícil descobrir isso… somos particulares em nossas universalidades… Há códigos mais antigos que a imaginação de uma menina prepotente, certamente. Visuais então, nem se fala, eles se multiplicam com os anos. Desenhos de ausência, de desejos, de curas, de alívios e de tantas outras coisas a mais que possa nos salvar… Do infortúnio e da felicidade de se descobrir vivo. Existir não é fácil, já dizia Ian Curtis, ídolo e símbolo de beleza da minha juventude que fazia com que a gente se sacudisse “ao som do rádio” em fita k7, ele sim era um mórbido, hahaha (brincadeira). Mas tudo isso permanece na teoria, não é a “música”. A gente precisa sentir e ouvir e ver… As convenções das palavras mortas esbarram no corpo flutuante, sempre. Somos atropelados pelas palavras nos outdoors, por exemplo, definindo e mastigando tudo como terríveis cumprimentos diários, não podemos morrer nisso, devemos ampliar os significados para não sermos seqüestrados, caramba! Quase desisto, a falta de organização da minha fala me espanta, mas foi você quem puxou a reza. É morbidez talvez e então e é grotesco também, essa delicada presença de espírito. Figuras e lugares caindo num abismo com o peso do dicionário. Posso colorir tudo isso, claro, basta me dar uma caixinha de lápis de cor, mas saiba que a emoção não vem no arco-íris da embalagem, ela aparece misteriosamente: uuuuuuuuuu! A tristeza, se a quero, por exemplo, não pode nascer subjugada aos clichês de “tristeza”, tento, senão o que será de mim? Deixar a atmosfera do desenho colorido semelhante a que consigo com a imagem em P/B tem mais a ver com o meu gesto viciado e impotente do que com uma procura de uma estética “mórbida” ou “grotesca”. Desconstrução.

CP | Vou te provocar. Duas exposições seguidas com temática feminina. Você não teme cair naquele lugar comum que as instituições costumam colocar as mulheres, uma espécie de “espaço feminino”, onde se dá “voz à mulher”, como se só se pudesse expressar o feminino em lugares restritos? E, pior ainda, como se pelo simples acaso natural de se ser mulher, deve-se obrigatória fazer uma “arte feminina”, com “temas femininos”. Por exemplo, nunca ouvi falar de uma exposição onde o tema fosse para expressar o “masculino” e fosse restrito a homens. Ou uma exposição de “arte hermafrodita”, ou de “artistas bissexuais”, ou “arte de ruivos”! É sempre “arte feminina”, “arte indígena” ou “afro-brasileira”. Não vejo, obviamente, você como uma “artista feminina”. E depois, a arte não tem sexo, nem cor, nem nacionalidade. Mas, para te provocar a falar sobre o assunto, com duas exposições seguidas sobre o tema feminino você não corre o risco de cair nesses limites criados ― normalmente por vias institucionais ― sob alegação de “dar voz” às mulheres?

AD | Você é gentil, antes de provocar – enfiar a faca – tu me avisas, ora, obrigada! (Riso).

Não são duas exposições com temas femininos, é um conjunto de trabalhos que foram feitos para uma delas, a proposta da Hystéra, que foram migrar para outra exposição que apareceu de repente, da qual deixei com o nome da série, só que sem o Pã, aquela mesma do “O pátio das Idades”. Com ela, te digo, não, não tenho medo de cair nesses lugares comuns dos discursos políticos que servem às pessoas encaixadas no termo “minorias oprimidas” no jantar, ou dos magazines que colocam na capa “Você é mulher e é diferente! Faça o teste.” etc. Já superei isso na minha vida, lá no punk, voltando de novo, não me deixo pegar. Eu tenho plena consciência da ingenuidade e da manipulação das quais estão assentadas esse tipo de atitude discursiva que preza o “feminino”, e também da banalização que neutraliza os problemas em suas raízes. Sim, os problemas existem, ainda, fortes, por aí e por aqui, estamos todos somente passando por um período de fingimento nesse país pobre e sedado, mas vai passar. Sabemos disso. No caso do tema feminino nas exposições é o seguinte, eu propus romper limites com um grande desafio: falar do mesmo em nós sem dizer o mesmo. E com isso não criar outros muros. Com esta série fui buscar antigas representações, mexer com símbolos, coisas de hoje também, mas que a “sociedade da informação e do consumo” transformou em “clichê”, o que pode ser bastante perigoso. Como o corte do cabelo, por exemplo, que sempre teve uma simbologia muito forte de transformação em especial para as mulheres, culturalmente, historicamente, etc. Para trabalhar com isso, eu precisei estar despida de conceitos moralizantes, caminhar até outra região, onde eu pudesse me surpreender. Se quiser me acompanhar agora tem que começar sem as vestimentas atuais porque nós vamos costurar retalhos. Primeiro, e antes de mim, a cultura, um pano enorme pra manga do mundo. Não sei quem era a avó da minha avó, mas sei que minha avó paterna, uma imagem doce numa fotografia rota, morreu de câncer no seio, logo que nasci, porque meu avô boêmio e estivador não deixava ela mostrar os seios para os médicos para fazer os exames. Isso é bem recente, tem trinta anos. Sei também que quando eu era punk os meninos punks não queriam em sua maioria namorar com as meninas punks porque nós éramos iguaizinhas a eles e os assustávamos sendo assim, lógico que eles preferiam as meninas bonitinhas e burrinhas da vizinhança. Era muito injusto para com o nosso esforço! No ano passado um professor de artes me disse que para eu ser uma “grande artista” eu tinha que “dar” para um curador americano! Hahahaha. E por aí vai… parece brincadeira. Você até esquece que é “mulherzinha”, sim, porque está envolvida demais com o “humano” da coisa, com o “arte não tem sexo” etc.… mas volta e meia chega uma situação cretina dessas pra te colocar na parede e te esbofetear a cara dizendo: não tá vendo tonta, por onde você anda, sua menina ingênua? Certo, o mundo está aí. Outro pano: para compor os desenhos não pensei em vitimização de coitadinhas, nem em “ai de mim que sou mulher” ou “vamos falar agora só de mulheres”… que bobagem, não quero dar desculpas por ter desenhado meninas, mulheres e velhas, tão próximas de todos nós. Estou tão acostumada como “mulher”, por exemplo, a ler todas as coisas generalizadas pela língua escrita e falada no masculino quando se referem ao “humano” que nem ligo… então por que eu não posso fazer uma série representando mulheres que vai dar na mesma: os “homens” podem se identificar pelo caráter humano da coisa… sim o caráter humano da coisa! A partir de experiências femininas, de experiências minhas e da minha mãe e da minha amiga e da louca ali da rua, por que não? A histeria antes de Freud foi feminina, uma crise da cultura machista e cristã (estou me sentindo nos anos setenta)… E por que não falar disso, dessa ferida viva no corpo do humano e da história? É da loucura de que estou falando, da sensibilidade emotiva sempre subjugada ao campo moral da Razão, sobretudo do nosso poder e desejo de significação. Se eu começar a gritar agora vão me chamar de “histérica”, por quê? O que é isso? De onde vem? Simples assim, nunca quis excluir a sensibilidade nos homens nem ajudar a formar um clubinho de menininhas espertinhas. Sim, existem características masculinas e femininas nas coisas, iconografias, símbolos, signos, significados, teorias, expressões etc., isso vem de muito e muito tempo atrás, de antes de mim, não tenho culpa disso. Sou apenas uma jogadora (e joguete) como qualquer um, de tudo o que nos representa e apresenta desde há muito. Tocar nessa antropologia de símbolos, arquétipos, mitos… é segregar? Camilo, eu me solidarizo humana e profundamente com a “culpa masculina para com os males do mundo” que reservaram para vocês, “homens” desta época, como um peso terrível. E não acredito que minha arte caiba num rótulo de “arte feminina”, mesmo porque, esse tipo de coisa não combina em nada com meus meninos, homens e velhos. O elemento psíquico delas – das mulheres de “O Pátio das Idades” – é o grande deus Pã, já te contei isso? E ele é masculino, deveras masculino.

CP | Boa parte das artes plásticas atuais é abstrata. Traços de cores que, para um leigo como eu, não diz absolutamente nada. Na sua página há um “Maravilhoso Caravaggio” e muita arte figurativa, que é isso que você faz. O que acha dessa arte atual fundada e acabada em tintas sobre tela, papel, papelão, madeira, tijolo… e que não representa nada. Normalmente os “entendidos” em arte dizem que fazer figuras é muito fácil, basta ter técnica e que a criação mesma está nessas… coisas, que virou praga nas galerias de arte e que precisa sempre de um monitor para explicar “o que o artista quis dizer” com os riscos que fez na tela.

AD | Ai, ai Camilo, vamos ser presos, e quem pagará a Fiança? A Agulha? Até me dizem algumas coisas parte desses trabalhos, mas só depois que eu leio as legendas, rarará! Se eu fosse analfabeta nem isso. Pessoalmente eu fico sempre com aquela clássica pergunta: “Tá, e daí?”. É frio mesmo, não raras vezes “publicitário”, senão um bom achado estético que morre em seu discurso formal extenso. Não tem ressonância poética, certamente, por isso a maioria das pessoas “não entende”, elas não atingem ninguém. E não se preocupe, todos ficamos leigos em frente à tamanha “inteligência”, trancafiada na cabeça do Artista e escondida na Obra, em algum lugar… mas será? Tentamos. Não encontramos. E te digo, tem gente do mesmo círculo que finge a roupa invisível do rei. O artista de hoje que não sabe muito bem o que fazer, mas é seduzido pelo “ego artístico” que dá muitas vantagens a quem tem fama e sucesso e dinheiro, costuma se intitular “multimídia”, voltando a ser o grande gênio da história, ele faz qualquer coisa (ego copioso) sob a autoridade de sua assinatura. Ainda que ela tenha saído da convenção do quadro para entrar na do banner e do convite eletrônico. Se não temos curiosidade no seu umbigo, que relação teremos com esse tipo de artista-obra? O mundo da Arte está esvaziado de significações, é verdade. Se “a imagem construída é somente um pretexto para o desenvolvimento técnico” eu fico pensando onde será que está a arte aí? Mas essa é minha opinião (nos protegemos nesse mundo de opiniões assim, cada um tem a sua, então tanto faz). O pensamento “pensado” ainda padece privado de suas possibilidades sensíveis, inventando qualquer coisa que seja distante tematicamente da vida, que separe as pessoas não acadêmicas das obras (que mania, ele não aprende!). Sim, sem representação, sem eco e sem experiência simbólica. Mas eles estão na moda, são vários tipos pra se escolher, por isso são que nem praga. O andar de baixo eu diria que é onde habitam o “manual”, modo considerado “menos inteligente” e recluso em uma categoria de “arte menor”, assim como o figurativo. Fato que acumula à margem uma quantidade grande de artistas ativos em ateliês por aí, categorizados pejorativamente de “artesãos” ou “não-contemporâneos”. Sutil guilhotina! Que preconceito feio. E não se trata de uma guerra entre “figurativos e abstratos”, nem de “conceituais” e “tradicionais”, isso é uma bobagem! Chega. Adeus Séc. XX, ele está morrendo em nós ainda que ele vá morrer conosco também. Vai além do aspecto formal a falcatrugem da “não-obra” em nosso mundo de “multiplicidades”. E envolvida profundamente nisso, eu juro que sinto que há algo puindo, sinais de esgaçamento nessa rigidez da Razão não sensível aos “mistérios” humanos. O mundo está mudando ou eu estou colecionando loucuras… Se o figurativo é “mais fácil”? Ok, mas é pra rir? As pessoas “inteligentes”, isto é, “não-naifs” não desenham mais hoje em dia além de riscos e riscos e “esquemas esquemáticos”, por que então? Por que o desenho já foi superado em sua simplicidade de representar e apresentar o mundo e se tornou tão complexo que acabou virando um risco apenas? Por que as pessoas ainda desejam renovar febrilmente as técnicas de arte a caminho de um grande conhecimento formal abstrato, que eu diria, quase invisível? Não, é porque elas não sabem mais desenhar. Tenho certeza. Está cada vez pior. Elas não têm tempo para bobagens, claro. O mundo urge! As têmporas saltam! O coração definha. Sim, Camilo, eu poderia falar muito, muito, muito mal de parte dos meus coleguinhas de profissão, há tantas coisas ainda, e isto aqui já virou uma bagunça, mas prefiro acabar dizendo: “Maravilhoso Caravaggio”! e seguir andando.

CP | Aline, para terminar gostaria de retomar o punk. E… já que você disse que gosta de falar de Rimbaud… Foi no meio punk que eu ouvi pela primeira vez falar dele, e também de Baudelaire, de Poe, de Blake, de Artaud e os surrealistas, etc. Acho interessante que depois de vinte anos na escola (colégio, universidade), não foi por aí que me veio a fórmula rimbaudiana “é preciso mudar a vida!”. Eu tive (e tenho) professores que com certeza nunca tocaram num livro de Rimbaud. E lá naquele meio “feio, sujo e agressivo” do punk, Rimbaud circulava de mãos em mãos, mesmo que em frases soltas em fanzines. Aquilo que chamávamos “imprensa underground”, o meio dos fanzines, das revistas anarquistas e mesmo das conversas pessoais ou por cartas, foi coisa riquíssima, que só agora, na devida distância temporal, é que reconheço o quanto de valor informativo e cultural possuía. Enfim, encontramos Rimbaud e mudamos nossas vidas por aí, não? assim como também aprendemos o “faça você mesmo” na prática. Agora, eu pergunto: com os dois blogs que você mantém na rede, as parcerias, os contatos e as trocas de informação e cultura que se dá por esse meio de comunicação, de algum modo, você não se sente como se estivesse fazendo mais ou menos o mesmo, só que, digamos, num outro nível? Ou seja, Rimbaud entre os punks, e agora a continuidade de um “movimento” por esse meio virtual que é a internet, e que é bem mais prático do que fazer xerox, xerox e xerox, que era o meio do fanzine.

AD | Não, não sinto que é a mesma coisa com a internet, nem em “outro nível”. Sempre senti isso conforme as coisas foram mudando e eu me adaptando, mas agora que eu, tendo que explicar, devo ir mais adiante, não é? Vou tentar, não prometo. Não é nada marginal fazer blogs hoje em dia, eis a primeira questão. O mundo mudou, o sentido das coisas mudaram e nos atropelaram, o sentimento, estamos diferentes. Temos outras coisas. Substituímos antigas dificuldades em que remávamos por facilidades e novidades que nos adicionam, locomovendo a vida, ok, sabemos disso e lemos isso em todos os lugares para nos convencermos o espírito. Tem a saudade ainda, nostalgia que começamos a descobrir em nossa geração, da importância que dávamos às informações, e discos, e livros, e imagens… pelo grau de dificuldade em obtê-los e desejo alimentado de aproveitá-los, que movimentavam uma energia diferente em nós, nos transformavam. Tínhamos ou temos mais poder de manipulação? Não importa. Mas ainda não é por aí… É uma grande coisa nossa acessibilidade e compartilhamento de informações de hoje em dia, ainda que nesse bombardeio democrático e benéfico à sede enciclopédica do ser humano o cérebro do infeliz quase exploda… Mas onde ficamos com Rimbaud e o “Faça Você Mesmo”, o “Movimento articulador de imprensas rebeldes”, o “é preciso mudar a vida”, etc. de que falaste? Não, não é a mesma coisa Camilo. Não se pode comparar um mouse com um rato. Continuo recortando… mas aonde quero colar? Comer com as mãos, era isso fazer Fanzine, era raro, e era solitário e custava muito e era sinônimo de articulação e personalidade. Essa última palavra era sussurrada lá em baixo, não se vendia na vitrine como hoje. Fazer um blog é tão, tão, tão fácil e comum que é só recortar e colar tudo o que atrai na internet e plim, todo mundo pode ver, vaidade e luxo! Não parece despertar as sensações incríveis que tínhamos antes em nossos cantinhos abandonados acreditando derrubar fronteiras de pensamentos e distâncias, nós, perdidos em meio aos papéis embolorados e tesouras afiadas apontadas pra gente mesmo. Isso pode parecer bobo ou inocente ou sei lá o quê de piada para essa nova geração, mas isso fazia todo um sentido de vida diferente. E não estou sendo saudosista, nem quero um prêmio por isso tudo. Explico uma coisa impossível de resgatar ou se fazer entender. Já disse que é uma “emoção” diferente, isto é, o gesto era outro. Eu vejo fotos e escritos do Rimbaud, que não tenho em livro, na internet como vejo um milhão de reproduções de pinturas que jamais teria a oportunidade de ver, que legal, tá tudo ali, mas logo fico cansada e vou para a cama ou para o chão ler o meu livro amassado e manchado do Rimbaud de sempre e vou lê-lo e carregá-lo comigo mais mil vezes, estragá-lo e surrá-lo com as mãos, e ele vai apodrecer comigo também. E logo vou sonhar com o dia em que eu puder ver ao vivo os quadros, aqueles em que vi nas figurinhas do Google. Entende? Estou falando de sensações. Outros gostos no “viver a vida”. É só diferente, talvez um pouco romântico, mas não mais ou menos nobre, antes que me atirem as pedras. Quando encontro meus amigos preferiria dar um livro de presente, do que meu endereço de blog, acontece que um livro é caro e a internet é “de graça”… fazer o quê? Para as longas distâncias isso funciona em parte, mas não substitui o desejo. A verdade é que estamos à deriva, aprendendo a trabalhar um mundo que anda mil vezes mais rápido do que as nossas pequeninas pernas, mas tenho certeza que o “é preciso mudar a vida” é o que a gente alcança, o que a gente consegue. As relações pessoais, os encontros ou grupos de hoje em dia também são outros, melhores e com mais riscos, porque é preciso lidar com mais diferenças. No movimento punk, todos éramos viciados nos mesmos códigos, isso até cansava. Na vida fora disso, com pessoas de minha geração que tiveram experiências tão diferentes de mim e que muitas vezes nem leram Rimbaud, relacionar-se torna as coisas mais interessantes e provocadoras, se houver afinidade isso então vira uma metáfora! Gosto mais de hoje, neste caso, onde há contrastes, misturas, mais sutilezas e malícias. A vida é estranha.  

CP | Põe estranha nisso… Obrigado, e boa viagem à velha Europa!

AD | De nada. Foi bom te rever e ver como tu ficaste depois que cresceu… Obrigada também ao querido Floriano por ter emprestado as agulhas para brincarmos ao nosso modo… Vamos ver o que acontece no velho mundo, no caminho inverso da descoberta…

 

Camilo Prado (Brasil, 1969). Narrador, tradutor e editor. Fundou e dirige as Edições Nephelibata. Atualmente é doutorando em Literatura na UFSC, com tese em tradução da obra Tribulat Bonhomet, de Villiers de L’Isle-Adam. Contato: nephelibatas@gmail.com.

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