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Aline Daka: A arte possível, entre uma
loucura e um renascimento
[entrevista]
Camilo Prado
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É possível que estejamos ainda muito próximos do movimento
juvenil denominado punk, para dele termos
alguma compreensão mais ampla e, sobretudo,
para percebermos o impacto que causou na
cultura do Ocidente em termos de
comportamento. |
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Arriscaria
dizer, no entanto, que a identificação do
punk com os contrários surgidos na cultura
do Ocidente é um dos elementos que o
definem. Desde os memoráveis atos dos
cínicos (séc. IV a.C.), sempre dispostos a
ofender, a agredir, a ridicularizar: de
Antístenes, que indo visitar o venerável
Platão, que estava doente, “depois de ter
visto a bacia em que ele vomitara exclamou:
‘Vejo a bile aqui, porém não consigo ver o
orgulho’”; de Diógenes cuspindo na cara de
um anfitrião, “pois não encontrava, disse
ele, um lugar pior”; de Crates que, “em
certa ocasião foi advertido pelos inspetores
de polícia porque vestia roupas levíssimas
de musselina”; de Hiparquia, a jovem donzela
rica que a tudo e a todos abandonou para
viver nas ruas ao lado de Crates e de cujas
obras ― devoradas pelo tempo ― restam
fragmentos de que nenhum punk discordaria:
“Minha pátria não tem apenas uma torre nem
apenas um teto; onde quer que seja possível
viver bem, seja onde for, em todo o
universo, é lá a minha cidadela e minha
casa”. Desses filósofos, eu dizia, passando
pelos monges andarilhos da Idade Média (bons
cantantes: “tanto para o papa, quanto para o
rei,/ bebemos todos sem lei!”), até o
Romantismo e o Decadentismo, bebedores,
comedores e fumadores de absinto, haxixe e
ópio, bem como inimigos declarados da
“modernidade” e da “industrialização”, e
ainda passando pelas “vanguardas”,
Expressionismo, Dadaísmo e Surrealismo (“não
é o medo da loucura que nos forçará a deixar
dobrada a bandeira da imaginação”) e a
geração Beat e sua “contra-cultura”,
encontramos identificação comportamental com
o punk. Por isso não é de se estranhar que
tenha sido nesse meio, aqui, no Brasil, que
obras filosóficas (de Schopenhauer,
Nietzsche, Cioran, Foucault, Rosset),
literárias (de Blake, Baudelaire, Rimbaud,
Lautréamont, Artaud, Lorca, Breton, Péret,
Genet, Ginsberg, Kerouac, Burroughs) e
reproduções (em xerox!) de pinturas (de
Duchamps, Dalí, Magritte e demais pintores
surrealistas), além, claro, de inumeráveis
textos anarquistas (de Bakunin, Proudhon,
Emma Goldman, Malatesta, Kropotkin), tenha
circulado através de fanzines pela periferia
e atingido a mente desses miseráveis e
inconformados jovens (“vagabundos”,
“marginais”, “drogados”, “pobres”, “podres”,
“punks”). Nada de novo. Diógenes, o cínico,
foi parar em Atenas fugido de sua cidade por
ter falsificado moedas! Parece haver um elo
entre arte e contravenção nos interstícios
dos subterrâneos do Ocidente. Fato é que
sempre houve jovens contrariando a
sociedade, “se não por palavras, mas por
atos”, para usar de uma expressão de
Sócrates (talvez o primeiro suicidado pela
sociedade). E no punk, parece-me que se pode
encontrar uma junção de toda a contravenção
ocidental, uma reunião colossal de NÃOS! Daí
toda a filosofia “terrorista”, anticristã e
anti-social, toda literatura de agressão,
todas as palavras sujas, toda a contestação,
raiva, angústia, nojo, desprezo pelo humano,
ter encontrado guarida na mente desses
fodidos da periferia do Brasil, na década de
1980 e 1990, e gerado formas de expressão
artística diferentes daquelas que vêm pelos
meios “normais” (escola-universidade-tradição).
Do meio punk surgiram indivíduos que, não
importa o que foram fazer “depois que
cresceram”, fizeram de um modo peculiar,
fizeram do seu modo. Música (muita música),
teatro, dança, literatura, filmes e…
pintura.
É desse meio
que veio a autodidata Aline “Daka” Deorristt,
artista plástica nascida em Viamão, cidade
vizinha a Porto Alegre, em 1979, e autora de
uma obra singular, imagética e imaginativa.
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Aline é pintora, desenhista, faz
ilustrações para livros e capas de
disco, e atualmente estuda também
gravuras em metal, método pelo qual
já criou algumas obras. Por esses
dias, segundo ela, anda lendo Julio
Cortázar e fazendo exposições de
suas obras. Sobre duas dessas
exposições ela fala aqui: a
exposição coletiva Hystéra (ocorrida
de 09/06 a 01/07 de 2009, Galeria de
Arte do DMAE) e da exposição
individual O pátio das Idades (de 03
a 21/09 de 2009, na Galeria Clébio
Sória), ambas em Porto Alegre. |
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É também aluna
de Artes Visuais do Instituto de Artes da
UFRGS, cursando o 6º semestre, bolsista do
programa de Bolsas Santander
Luso-Brasileiras e Relinter/UFRGS, e está a
caminho da Universidade de Lisboa (Faculdade
de Belas Artes), onde permanecerá por seis
meses. Mora em Porto Alegre e edita os blogs:
O Impossível, em parceria com a jovem
escritora Ana Santos e Esfera, com as
artistas gaúchas Lílian Gomes, Fernanda
Kieling e Ana Becker. Aqui, ela fala sobre
sua autoformação, sobre sua relação atual
com a academia, sobre sua obra, sobre
Rimbaud e suas heranças estéticas, e demais
perguntas (impertinentes, talvez!) que lhe
fiz, depois de uma série de mensagens
trocadas via correio eletrônico. [CP]
***
CP | Aline, você está fazendo o caminho
inverso de muitos artistas atuais. A sua
formação artística veio antes da formação
acadêmica. Autodidatismo, faça-você-mesmo…
Como foi isso?
AD | Bem,
isso foi a partir de 1998, eu já era punk,
morava com amigos bem longe dos pais e da
terra natal. Uma das grandes influências
para o início de tudo foi o grande poder
imagético da literatura que eu lia, os
mundos que eu criava a partir daí… Rimbaud!
Sim, as imagens! Eu me apaixonava tanto
pelas reproduções de pinturas como pelas
histórias dos seus pintores, pelas gravuras
dos livros e dicionários antigos com os
traços bem fininhos e cheios de detalhes…
Lewis Carrol, Gustav Doré, Nouveau Petit
Larousse Illustré (1955)… Pelos HQs na linha
de Crepax e Mutarelli… Inicialmente compus
fanzines, que eu mesma desenhava, recortava,
escrevia, editava, xerocava e espalhava
pelos quatro cantos… como tantos outros
punks, movidos pela vontade de relação
crítica para com o mundo.
Comecei a
desenhar para dar poética às publicações,
porque eu precisava fazer minhas próprias
imagens, de alguma forma precisava daquilo,
e certamente para ver também o que e como eu
me arranjava naqueles dias. |
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Depois fui parar nos quadrinhos,
cheguei a publicar duas edições de
um fanzine de HQ chamado “Atristar”,
que quer dizer “entristecer”, ele
teve grande distribuição entre os
punks e afins… Nessas soluções
criativas eu me inventava e me
salvava. De uma maneira inconsciente
somos seduzidos pelas espécies de
rituais que vamos construindo para
nós mesmos. São momentos de solidão
e metamorfoses, de conversa com os
mortos… |
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A “Hora
do Lobo”, como definiu Bergman, é necessária
ao amadurecimento, porque os conhecimentos
aí são aprofundados, e não raro de maneira
extrema e febril. Enfrenta-se tudo isso
depois em choque com o cotidiano, que é
duro. Por isso acredito que minha formação
foi construída à flor da pele. Desenvolvi
habilidades manuais a partir de desejos
puros, fazendo apenas, exercitando,
produzindo imagens pessoais, misturando elas
à bagagem cultural que estava adquirindo.
Soltando a mão eu me alimentava de minhas
memórias sensíveis de vida, que era o que eu
tinha, e de percepções que procurava sempre
renovar. Eu sempre quis captar algo do
cotidiano para além do que ele pudesse me
dar. Desenhava cada vez mais e desenhava com
o possível. Por isso nunca compreendi os
conceitos que separam a arte da vida. Porque
ela tem muita fome de existir, a arte tem
fome de envolvimento… E autodidatismo é puro
envolvimento. É experiência. E autonomia.
Simples assim. Mas complexo. Vai entender…
Quando se faz isso com a própria vida você
está levando algo muito a sério (mais sério
ainda, porque é espontâneo), daí nascem os
estudos. A arte aí é transformadora, e
supera os limites do que chamam
pejorativamente de “terapia”. É linguagem e
conhecimento sendo manipulados, gerados e
nutridos, a toda vontade. Acumulei naquele
tempo uma boa quantidade de trabalhos que
alguns chamam de “fase negra”, mas que para
mim foram fundamentais à descoberta da minha
arte. A arte possível, entre uma loucura e
um renascimento. Sim, eu era bem jovem e já
compreendia isso, de várias maneiras. E,
como você pode ver, esse vício persistiu
tanto, que como por ironia, há dois anos, na
beira dos trinta, resolvi assumir uma
postura de quem tem um lugar no mundo, de
quem tem o que fazer, isto é, de que se pode
alguma identidade para si. Entrei para a
Universidade de Artes com a intenção de
“trabalhar” ainda mais, vesti o artista. E
se este grande fato acentuou minha produção?
Sem dúvida nenhuma, e como dizem por aí:
“para o bem e para o mal”. Mas não superou o
autodidatismo, que é sempre a fonte dos
milagres na terra.
CP | Além
de outros elementos, sua arte possui uma
forte característica suburbana onde
transparece, sobretudo nos rostos e olhares,
uma angústia, uma raiva, uma agressividade,
mas também, nos gestos, uma ternura. Estaria
aí uma herança do punk? Já que você, como
muitos outros jovens de nossa geração,
conviveu com essa “coisa” chamada movimento
punk?
AD | Sim, o
movimento punk foi uma de minhas vidas, a
arte começou a tomar forma aí. São
permanentes as experiências desse período,
muito fortes, influenciando o caráter
gráfico e pictórico dos desenhos (acúmulo de
coisas, cores vivas, figuras em estados
cruciais, crises, os temas ligados ao
existir e à condição de mundo, etc.) não
posso me desfazer disso. Nós punks saímos de
casa muito cedo, meninos e meninas, não
tínhamos nada mesmo e nem éramos aceitos em
nenhum lugar senão ali, entre os nossos. O
rancor era embebido numa vontade extrema de
mudar as coisas, a vida, a política, a
música, o amor, tudo! Para isso era preciso
muito mais que gritar na rua, era preciso
sacudir o mundo e a si mesmo. Desconstruir a
fragmentação que herdamos: uma luta! Éramos
nossos próprios exemplos e nossas cobaias,
criávamos nossos rituais porque já não
tínhamos Deus. Sim, sempre fomos ternos e
cativantes apesar daquela nossa aparência
propositalmente rude. Lembro de como éramos
extremos, tanto na dor como nas paixões.
Barroco, não? E tínhamos toda a
responsabilidade de estar crescendo num
mundo que nos espiava, não dava tréguas e
estava mudando sem que percebêssemos (nesta
época exatamente a internet estava chegando…
). Alojados em qualquer lugar, com um monte
de livros pra ler, sem perspectivas, sem
professor para explicar as teorias (que eram
relacionadas diretamente aos sentimentos e
sentidos e desejos e pensamentos que se
formavam cruamente ali, despidas de maiores
pudores, em contato direto com a nossa
condição de vida). Eu não tive aulas de
desenho, mas tive pessoas criativas à minha
volta indo e vindo e situações sem paralelos
que contribuíram muito para o
desenvolvimento das minhas percepções
gráficas e visuais. E isso tudo aconteceu
neste país bem aqui e sei que ainda existem
punks assim. O movimento punk mudou a vida
de todos que passaram por ele, tenho certeza
disso. Ninguém sobrevive a tanto rasgo e a
tanta costura de maneira a ignorar o que o
formou. Sei também que estou sendo um pouco
doce para relatar tal experiência, que foi
um trampolim para se descobrir a vida, mas
que como diz Cortázar, é (foi) também: “…
esse jogo à beira da sacada, esse fósforo ao
lado da garrafa de gasolina, esse revólver
carregado na mesa iluminada… “, muitos
riscos e muitas iminências obscuras. Prefiro
fazer isso que cair em antigos chavões ou
transformar tanta coisa expressiva e
profunda em frases de efeito e dar ao leitor
algo que eu detesto que me dêem: um retrato
chocante, mas de falso toque. Conservo
elementos do espírito daquela época na minha
arte e no meu caráter, é inevitável, é
memória.
CP | Como
você tem lidado com os “conceitos” das artes
plásticas na academia? Ouvi dizer, de um
curso de artes plásticas de uma universidade
catarinense, que os estudantes não aprendem
a arte pictórica, mas sim, a “desconstruir
conceitos”. Você consegue relacionar a sua
criação com esses “conceitos”, “teorias” e
linguagem técnica da academia e de boa parte
da crítica de arte atual?
AD |
Procuro lidar com os conceitos em arte com
toda a boa vontade e disponibilidade da
minha geniosa reflexão, mas não me desgasto.
Ganho muito mais trabalhando em casa,
quieta. Os conceitos estão inseridos nas
coisas de modo inseparável e há sempre
muitas relações de idéias a serem feitas. Ok,
não somos tontos, vamos aproveitá-las. Mas
se escuta muita bobagem também, é um teatro!
Não gosto do pedante, do presunçoso, do
inquisidor, figurinhas muito comuns nos
meios acadêmicos ou intelectuais. Eu suporto
dentro do que é possível relacionar conceito
e obra, isto é, se houver flexibilidade e
boas vantagens para ambos nesse diálogo
esquisito. Eu escrevo muito paralelo aos
trabalhos e esboços, não como escritora, mas
como poeta que “pinta e borda”. Escrevo
coisas misturadas, um tanto doidas, solto o
gesto da palavra que surge com a imagem,
circulo por idéias, e até faço definições,
mas tudo é muito ligado ao manifesto de
criação e não ao conjunto formal das idéias
discursivas acadêmicas racionalíssimas. E
sempre me sinto ridícula quando começo a
fazer citações demais ou a discursar como
universitária (por mais que a gente tente
sempre cai numa dessas) para explicar coisas
que podem ser postas a nu com a simplicidade
de uma conversa de bar, isto é, de maneira
mais íntima e verdadeira (apaixonada, eu
diria). (Arriscada! Metafórica!) Se
amadurecermos as questões em nós estaremos
usando o poder transformador disso, mesmo
que arbitrariamente em alguns casos, mas e
daí? É melhor que incorporar um palestrante
vinte e quatro horas ao dia. E bem, já que
não posso evitar os conceitos agora, lembro
de uma música dos Mutantes que diz: “chorar
não ajuda ninguém… que a vida mal começou”.
Quanto mais descubro características que
possa desenvolver, ou que já o tenha feito,
mais se definem as casinhas às quais me
encaixo, o que é normal, mas isso me causa
um certo pavor, confesso. Neo-expressionismo,
naturalismo-expressionista, neo-simbolista
(tudo é neo), artista figurativo-narrativa,
artesã, artista manual, artista que trabalha
com o “tradicional”, ah, ela faz figura
humana, ah, ela trabalha com a emoção,
maneirista, romântica, ah, o caminho dela é
evoluir para o neo-realismo, mas será que
não deve partir para a abstração e partir o
coração, desenhista ou pintora, cronista,
barroca, surrealista, ilustradora, maldita,
etc. Parece um pesadelo que não colabora em
nada com os caminhos tortuosos da criação.
Há conceitos para tudo, que nem as
patologias para as manias humanas que são
exageradas, ou as leis que são “feitas para
todos” … sim, é um mundo de advogados, de
manipulação! E o pior, não raro as duas
coisas (obra e discurso) se desencontram de
forma ridícula. Sinto-me aprisionada pela
fórmula, amputada quando discutida,
banalizada pelas etiquetas.
(Mas quem sou eu?)
A
informação e a formação fazem isso contigo,
trazem a consciência da família da qual
pertence, te propõem lugares ― discursos ―
para agarrar e seguir com a confiança de
quem encontrou sua “pesquisa”, te isolam, te
fazem picadinho, te torturam a mente,
saturam! Tu me perguntas se consigo
relacionar conceitos acadêmicos e da crítica
atual ao que eu faço… sim, às vezes, mas
essa relação não é amistosa. E eu gosto de
fazer misturas. Simplificar para exagerar.
Pode parecer que não estou dizendo nada com
isso… não me importo. Sou doida pelos
maneiristas, amo Caravaggio, logo,
Caravaggio está em mim, subjetivamente,
simbolicamente e formalmente, de alguma
forma, que é a minha, e não a dele. Quando
eu descobri a Transvanguarda Italiana,
simplesmente adorei, as palavras de Oliva
ecoavam, até a contradição era boa. O
Expressionismo, com toda sua carga de
“detrimento da forma em virtude da
expressão” é genial, Kokoschka e Schiele são
primos muito próximos e queridos! Nesses
tempos li o livro “Mi Vida” (uma edição
traduzida para o espanhol), que é a
autobiografia de Kokoschka. Ele escreve
completamente livre da crítica formal, e foi
uma das coisas mais incríveis que li sobre
arte e artistas, havia intimidade ali. Paula
Modersohn-Becker é uma irmã de alma!
Reconheço nas obras dela uma atmosfera que
me aproxima, que expande o “espírito” além
da matéria, isso pode parecer loucura, mas é
simbólico, extra-oficial, poético! A
anarquia dos Dadás, eu cresci com isso!
Desenhos de Artaud! Pura arte, pura vida e
puta merda, que maravilha! Arte brasileira?
Marcelo Grassmann, Rubem Grilo… Tem um
artista gaúcho que foi meu professor de
gravura em metal no Atelier Livre em Porto
Alegre… O Cava! Grande artista o Sr. Wilson
Cavalcanti! Alguém aí já viu as coisas
belíssimas que ele faz? A arte não é menos
incrível porque seu autor está vivo do seu
lado (muitas vezes, o caso é que ele está
marginalizado pelo sistemão!). Gosto das
características brilhantemente narrativas
nas pinturas de Paula Rego, que força! Do
caráter simbólico e atormentador das obras
de Balthus, Camille Claudel, Alice Neel,
Charley Toorop, Kate Kollwitz, Kiki Smith,
Anselm Kiefer, Goya, Lucien Freud…
Fotógrafos que exaltam o “humano” me
encantam: Lewis Hine, Diane Arbus e Mary
Ellen Mark são maravilhosos. Por falar
nisso, a força da presença do autor quando
acontece ali na obra, é algo apaixonante pra
mim, a ambiguidade da arte com relação à
realidade me encanta. Alguém esteve ali um
dia, alguém fez aquilo, alguém viu além de
mim agora, são relações com o infinito! (Não
acredito na crítica que separa tanto o autor
quanto o observador da obra.) A partir dessa
forma de “gostar” ― palavra proibida no
mundo dos conceitos intelectualizados ― que
significa “o que dá ganas na alma da gente”
você chega até os discursos formais,
sociológicos, antropológicos, existenciais,
políticos, poéticos, patéticos, etc. A minha
maneira de refletir os conceitos é torná-los
internos, aproveitáveis, inerentes à
percepção e à paixão que tenho pela arte. De
acordo com eles, eu posso ser uma “artista
figurativa”, que trabalha evidenciando a
“sensibilidade emocional”, “além da forma”,
graficamente “expressionista”, e “fora de
moda”. Uma trilha já formada então, prestes
a ser aprofundada teoricamente no meu grande
Projeto de Graduação. Mas o que é que eu
quero mesmo? Acredito que seja preciso nos
aproximar ainda mais das coisas antes de
usarmos nossas “sábias” palavras para os
cortes. Ficamos então sempre com a obra e
aquilo que ela nos faz sentir, não importa
muito o que diz o cartaz. |
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CP | Muitas das suas criações
possuem um peso, uma espécie de
morbidez que causa certo incômodo ao
observador.
Para pessoas não habituadas à arte,
talvez até assuste um pouco. Imagino
que já te disseram algo acerca
disso. Eu confesso que sinto, diante
de algumas de suas imagens, algum
desconforto, algo análogo ao que
senti com certas passagens da
literatura de Samuel Beckett.
Como você lida com isso, com esse
tom mórbido que está expresso em
muitas de suas criações? É uma forma
de expulsar seus demônios, ou
simplesmente o gosto por uma
estética sombria que, creio que você
concorda, tem um “ar”
expressionista? |
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AD | Sim, já
me disseram tantas coisas… São muitos tipos
de reações diante dos desenhos, agradáveis e
desagradáveis a elas, e devolvidas a mim.
Gosto mais quando as pessoas ficam quietas e
pensativas. Esse ar misterioso estimula a
mim e gosto de pensar que a elas também.
Parece-me que o incômodo do qual tu falas é
gerado porque os desenhos não são fáceis de
serem apreendidos numa rápida primeira
olhada, tanto pelos detalhes quanto pela
carga das formas… e eu diria ainda, pelos
demônios que elas provocam. O que eu quero
ou consigo com isso? Não sei. Penso em
palavras como “real proximidade”,
“sensibilidade nua e crua”, “morte e vida”,
“imaginário e memória”, “tire o espinho da
pata do leão e ele será seu amigo para
sempre”, sei lá. A compreensão é sempre
tentativa, não sei até que ponto nós
conseguimos tocar o outro, e o outro tocar a
obra ou ao autor. Não dá para medir a
dimensão disso em nós… Pensar no observador
é outro momento, foi algo que veio depois, é
recente, inevitável. Anterior a isso, eu
simplesmente não mostrava os desenhos, eles
ficavam no canto deles, só eu os visitava.
No caso das ilustrações eu me proponho a
pensar em uma comunicação artística, mais
clara, em parceria com o texto, porque são
muitos elementos aí envolvidos, é condução,
iluminação, conversa. Nos meus desenhos e
pinturas é diferente, é onde eu habito com
desembaraço. Um lugar onde posso explorar
todo o tipo de relações. Não estou inserida
aí moralmente, não estou em julgamento, nem
fico imaginando o que possa ser realmente
compreendido fora da ventania dos meus
pensamentos e sentimentos. Esse é o primeiro
momento. Para mim, muitas vezes, as imagens
aparecem como segredos, eu sinto que sei
sobre elas, mas não me digo totalmente… e
nem sempre acabo descobrindo depois algo
além disso, da cara de enigma. Nos momentos
de “criação” sou eu que estou em xeque, eu
sinto muito prazer nisso misturado à
angústia de todo o sempre. Prefiro resumir
que é exposição, desejo, exercício de
sensibilidade. Não se trata de isolamento do
mundo porque estou falando dele, eu estou
nele, o cotidiano me dá muitas referências,
é o próprio esboço! É força empregada,
carregada, coberta de vestígios, de
percepções, de inclinações e de influências.
Isso é paixão pela linguagem, acho que não
outra coisa, a gente faz o que pode também.
Graficamente eu converso muito com minhas
limitações sem me preocupar em polir o ato.
Parece-me que a deformação nos desenhos não
conseguiria ser um charme estilístico,
hahaha. E eu acabo descobrindo mundos com
isso. Uma vida atrás, penso eu, era mais
exorcismo, sim, porque eu só queria o rasgo.
Como disse cinematograficamente Johan Borg:
“Nada há de revelação pessoal em minhas
criações – a não ser a compulsão”. Talvez o
caráter “mórbido” venha daí. Mas eu não
acredito que seja isto agora. Antes um
processo artístico tocando fundo no absurdo
das coisas e se deixando levar pelas
relações (Pare de fazer acrobacias, a casa é
sua). No início controlamos menos, com o
tempo afinamos mais nossas manias,
inventamos mais certezas, ainda que elas
sejam descaradamente um pretexto pra
desconstruir tudo de novo. O desconforto que
tu fala vem dessa estético-poética
encontrada no modo de pensar e sentir o ser,
acho que vem daí minha obsessão pela figura
humana. Fui educada pelas circunstâncias
lendo muita poesia, Rimbaud, sempre falo
nele, Pizarnik, Trakl, Cruz e Souza,
Sousândrade… meus desenhos se alimentam
muito de escritas ditas “malditas”,
“existenciais”, “intimistas”, “visuais”.
Pelo poder humano que elas têm, e enquanto
pura arte! Sim, eu adorei Beckett, Cortázar,
Lautréamont… eles carregam o espírito
literário vinculado às sensações mais…
incríveis! Caramba, como dizer isso!
Atualmente, tenho lido a poesia de Adélia
Prado, livros de Clarice Lispector e
Guimarães Rosa, em conseqüência de ter
conhecido uma jovem e grande escritora que
se tornou minha amiga e parceira na arte. A
senhorita Ana Santos me instiga muito a
desenhar com seus contos, descobrimos grande
afinidade, fazemos muitas trocas. Foi por
meio dela que descobri a delicadeza que
estava escondida nos desenhos, ali, prestes
a me devorar, a me mostrar um novo mundo que
dá atenção aos detalhes e às sutilezas das
expressões. A Ana é genial. Esse “tipo” de
literatura e poesia guarda muitos segredos.
E por certo têm alguma parcela de culpa
nessa minha teoria “simples” de “pensar e
sentir o ser” (muito além dos teóricos de
arte que tenho que ler). Logo, os desenhos
estão carregados dessa emoção e por mais que
eu me esforce em calcular ou realizar
grandes esboços, escrever conceitos
antecipadamente para equilibrar isto ou
aquilo, eles me surpreendem, ficam tortos, é
coisa submetida. Realizado de raciocínio,
claro, mas de veia, sobretudo. Tentativa de
não sei o que, do que e como explicar.
Transcendência? Manifesto? Poesia? Por isso,
o “ar” expressionista. (E não estou falando
de ilustrações de textos lidos, mas de
gravidade na arte, no vínculo poético com o
cotidiano e o ser). Quanto ao público há uma
grande vaidade em minha vontade, mais
orgulhosa da luta que pretensiosa, que
pensa: “é impossível que não os atinja, que
não os chame a uma conversa íntima, pois que
meu interesse é o humano, eles não vão ficar
indiferentes… “. Uma obra então que pode
assustar…
CP |
Imagino, pelo resultado final de suas obras,
que você não está muito próxima desses
artistas que gostam de descobrir novas
técnicas, novos materiais, etc., e que você
se ocupa mais da criação em si, do que dos
materiais pelos quais cria. Estou certo
nisso? E já que a maioria das pessoas
(incluso eu) vê suas obras pelo meio
virtual, fale um pouco sobre os materiais
que você normalmente usa.
AD |
Matéria. Nunca tive muita escolha em relação
aos materiais, estou vivendo a melhor época
disso. Neste país é caro fazer arte, você
tem que se virar, mas acaba percebendo que
as coisas que faz não duram muito, elas
estragam muito cedo, bem na sua frente,
parece que só para te mostrar a própria
efemeridade. Tem gente que não liga pra
isso. Eu desenhava no verso de folhas
mimeografadas que a mãe de um amigo trazia
da escola onde trabalhava, para fazer os
fanzines, mas não por opção. Um belo dia,
alguém me apresentou a caneta nanquim, e que
dia! Usava maquilagem, tintas guache do
armazém da esquina, sementinhas de urucum
bem vermelhinhas… Esses trabalhos hoje têm
manchas amareladas de tanta gordura e ácido,
e estão em processo de fenecimento… a
solução foi escanear tudo. E por que isso?
Porque me interessa a imagem com seu poder
simbólico ali trabalhado que eu não quero
deixar morrer. Depois veio o pastel oleoso
nas minhas mãos e percebi que eram
semelhantes à maquilagem gordurosa que eu
usava para fazer as manchas… além disso
davam um resultado muito superior à imagem,
claro, daí que agora tenho muitos trabalhos
em pastel, todos bem coloridos. Uso tintas,
tela, papel, lápis aquarelados para as
ilustrações, coisas normais demais. Emprego
nos trabalhos, porém, muita matéria,
exageradamente até ele dizer chegaaaaaa!
Misturo às vezes todos os materiais como em
muitos desenhos que têm de tudo ao mesmo
tempo, é uma bagunça. Algumas misturas
desastrosas me tombam, normal, fico puta,
depois passa. Preciso de um suporte bom para
trabalhar a imagem e isso basta, quando ela
está prestes a vir não posso perder tempo. É
verdade que o material influencia e torna as
coisas diferentes entre um trabalho e outro,
mas se é necessário fazer, e se tenho apenas
isto aqui então adeus delírios. Por outro
lado, estou estudando gravura em metal desde
o ano passado, e me apaixonei perdidamente
pela técnica e pelas suas possibilidades, e
é uma arte cara, tenho que correr atrás de
como pagá-la. Recentemente, para um projeto
de Exposição Coletiva sobre a Histeria e o
Feminino, eu me deparei com o clássico
problema de como expor desenhos em papel. Eu
precisava de uma quantidade considerável de
molduras, e elas teriam que ter uma grande
medida para o que eu estava imaginando, e
então como fazer? Resolvi desenhar com
nanquim em tecido, dois pedacinhos de
madeira pra sustentar… briguei com o
material como doida até encontrar uma
fórmula (que também não achei na
Universidade)… Demorou, fiz estragos quase
irremediáveis nas paredes 3x3m que é a
metade do meu quarto, o maravilhoso atelier
que tenho pra trabalhar, mas consegui.
Sozinha, munida de um pincel e um tubo
grande de nanquim: dez trabalhos, todos em
tamanho natural. Ah, e importante dado para
atestar meu esforço: realizados em quatro
meses, sem dinheiro e nos intervalos de
aula, dos dois empregos que eu tinha e da
hora marcada para o sono que nunca vinha.
Isso sem contar as relações pessoais que
ficam submetidas ao vendaval. Foi um inferno
e a vida quase parou o mundo para eu descer.
Não descansei enquanto não pus todos para
fora de mim. E enfim, é como nascer para um
novo nada! Esvaziar-se, simmmmmm, isso
mesmo. Os desenhos estão agora enrolados
ali, embaixo da mesa. Fragilidade? Penso
nisso. Mas minhas experiências artísticas se
concentram na “criação em si”, não é mesmo?
Falo do que as traças e o mofo não podem
jamais tirar de mim.
CP | Com
exceção das que estão “embaixo da mesa”, que
destino estão tomando suas obras? Sei que
algumas ficam com amigos, outras estão indo
para capas e ilustrações de livros,
exposições, etc. Parece-me sempre que o
desejo de um artista é sobreviver de sua
arte. Que planos a jovem Daka tem para suas
criações?
AD | O
destino delas até aqui são esses mesmos que
tu acabas de citar: amigos, capas de livros,
exposições… Não sei do futuro. Gosto das
exposições, elas dão um trabalho do cão, mas
assim tudo pode ser de todo mundo… Ninguém
tira isso de ninguém… é um acontecimento
para a obra também, ela passa a ter vida
própria, uma anarquia de sentimentos. E
ninguém paga por nada (a não ser o artista).
As pessoas que normalmente querem ficar com
os trabalhos também não têm dinheiro… Meus
amigos acabam ganhando trabalhos como
presente e fizemos trocas muitas vezes… Sei
que não faço nada que pudesse decorar uma
sala de estar. Não tenho sobrenome, não para
seduzir o mercado de Arte até meu “atelier”
(minha pátria são os meus sapatos). Se
haverá um mercado para minha arte? Não sei,
somos alguma coisa nesse mundo econômico
quando ele precisa da gente de alguma forma,
isto é, eles decidem. Nada a ver com
recompensa ou compensação ou retorno pelo
trabalho empreendido. Ninguém sabe dizer o
que define o preço real de uma obra de arte…
em moedas? Impossível. Tenho o desejo de
viver da minha arte, claro, é até engraçado
isso (e a dependência é triste). Porque
dessa forma se pode dedicar-se a ela
integralmente, como um círculo,
faz-recebe-faz-recebe. Por outro lado, não
quero restringir o seu acesso, ou torná-la
um produto. Como fazer, de novo? Com a
chamada “vida dupla” o artista acaba ficando
louco e isso é muito sério. Você não pode
habitar os dois mundos tranquilamente, o
mundo de empregado em qualquer função por
oito horas ao dia e o mundo de produzir
arte. Ninguém agüenta. E tem o fator tempo e
o fator espaço que são muito importantes em
artes. A arte “material” também habita um
espaço… Penso em mais adiante poder enganar
o tempo e arranjar um jeito de conservar
esses trabalhos antigos. Penso em fazer,
fazer e fazer e tenho muitas idéias, temas,
formas, esperando a oportunidade, eu guardo
muitos segredos também… quero cor e pintura
e quero continuar estudando gravura em metal
em paralelo… Dar forma às imagens internas…
Estudar profundamente a figura humana… Sair
por aí e viajar e ver gente… Misturar as
coisas… Expor tudo depois para ver o que
acontece, comigo, com a obra e com os
outros… etc. Sim, Camilito, desejo
ardentemente amenizar o choque da “dupla
vida”, e dessa maneira poder deixar minha
arte amadurecer sem desesperos inúteis. Todo
artista quer isso.
CP | Fale
um pouco sobre esta exposição que ocorre
agora em agosto.
AD | Foi
uma oportunidade relâmpago, dessas que
aparecem uma semana antes da abertura.
Surgiu a partir da Exposição Coletiva
Hystéra que citei ainda há pouco, que
aconteceu no mês de junho deste ano em Porto
Alegre. Vou expor agora parte dessa série de
desenhos, composta por nove trabalhos, sendo
eles três grupos de três, intitulados “O
Pátio das Idades”. Eu mais quatro
amigas/artistas montamos um projeto de
exposição inicialmente baseado na Histeria.
Depois, mexendo nesse formigueiro, nós
descobrimos o termo Hystéra, que quer dizer
“útero” em grego. Tema amplo, que nos
remetia ao todo da palavra “origem” e nos
identificava diretamente. Propomos então
trabalhar o “Feminino” na arte. Cada uma de
nós passou a realizar um trabalho específico
para a exposição relacionado ao tema. Por
onde eu fui… aproveitei-me profundamente da
figuração. Os sintomas da Histeria de
Charcot (séc. XIX), sempre ligados à
condição cultural de opressão da mulher são
carregados de uma linguagem corporal
extremamente mimética aos sentidos,
simbólica e subjetiva. Os gestos do corpo,
os enigmas propostos pelas crises (muitas
delas provocadas por torturas), a condição
de ser uma “doença de alma”, isto é,
psíquica… Um prato cheio de trigo para um
tigre triste! Foi nesse embate
corpo/cultura/espírito/sensibilidade que eu
compus as formas das figuras, todas
femininas, o que me colocava numa posição
próxima demais. São três grupos de idades:
meninas, mulheres e velhas. Cada uma delas
possui em si uma gama de elementos sensíveis
postos em choque. Eu me deixei levar por
memórias pessoais e também coletivas, por
relações culturais de nosso tempo. Misturei
tudo depois à mitologia grega, inventei
contrastes, discuti subjetividade em arte, e
por aí dançou. Essas figuras foram feitas de
memória, a partir de esboços pequenos, e
desenhadas diretamente no pano em escala
maior. Fiz em P/B, era necessário, a
Histeria me dava sensações em preto e
branco. Propus “O Pátio…” porque é o lugar
onde todas ficam juntas quando estão fora de
suas “celas”, um momento de pluralidade,
digamos assim. Elas saíram de olhos
fechados, me fazendo refletir suas
presenças. Graficamente eu “limpei” a
quantidade de elementos da composição
deixando somente elas, flutuantes,
existentes alegoricamente numa atmosfera
“interna”. Só consigo dizer assim. Esses
desenhos de “Fases da vida” me disseram
muitas coisas… e me deixaram de veias
abertas.
CP | A
questão das cores. Se não me engano, você
começou preto e branco e depois foi
colorindo-se aos poucos. Mas isso não mudou
os desenhos na sua, digamos,
“expressividade”; o que você fazia em preto
e branco continua fazendo com cores. Como é,
ou foi, inserir o colorido sem mexer com a
“natureza” (sombria, mórbida… ) de suas
criações.
AD | Não
sei. As cores, normalmente quentes, que uso
te parecem mórbidas? Eu vejo uma vibração
querendo saltar, após longo período de
timidez. Fiz um desenho grande todo colorido
(que um professor me disse que era “barroco
demais”) cheio de figuras alegóricas em meio
a uma chuva de serpentinas… tudo dançava na
minha frente, quando terminei veio isso:
“Vida e Morte Serpentina”. É alegria!
Alegria de morte, sim. Mas não mórbido, é
diferente. É um respiro profundo de vida com
todas as mortes possíveis para que ela se
reinvente, claro. A arte é como a gente… Um
golpe de tristeza infinita, inerente e
inevitável… Desencanto. Teoricamente
continuo com o impulso de querer sacudir
tudo de dentro, das emoções à ponta do pé…
Lirismo, ainda que negro compadre, mas não
morbidez, é o que eu acho. Artaud escreveu
(é um clássico!): “Quem no seio de certas
angústias, no fundo de alguns sonhos, não
conheceu a morte como uma sensação
destroçante e maravilhosa com a qual nada
pode confundir-se no reino do espírito?”,
exatamente assim. A arte é feita aos
círculos, de vidas e de mortes, metafóricas
e reais, e a vida é igualzinha. Comecei a
usar a cor em momento significativo, quando
um amor morreu, literalmente, num estúpido
acidente de trabalho e eu fiquei viúva aos
22 anos. O que eu conhecia morria e era
necessário começar então outra coisa.
Acredite ou não, isso tem a ver. Parei
exatamente ai de xerocar e de fazer os zines.
Agora desenhava colorido imagens solitárias,
sem grandes narrativas, congeladas em seus
próprios significados. Percebo com isso que
tudo possui uma misteriosa relação.
CP | Por
favor, não considere o termo “mórbido” como
negativo! Vamos usar um outro que me parece
sinônimo: “grotesco”. Se não me falha a
memória, foi Baudelaire quem primeiro
refletiu sobre o grotesco na arte. No
Brasil, nosso maior poeta, Augusto dos
Anjos, se insere na arte grotesca. Na
pintura, lembro de Hieronymus Bosch, de
Félicien Rops, e, para citar um
contemporâneo, H.R. Giger. Todos esses
possuem obras mórbidas, ou, se preferes, com
elementos grotescos. É claro que isso não os
limita, assim como não limita você. Quando
eu disse, por exemplo, que alguns de seus
desenhos me passavam um “desconforto”
semelhante ao que senti lendo Samuel Beckett,
estava pensando nas figuras mutiladas, pelo
menos duas, que você fez (uma delas é
gravura em metal). Isso me trouxe ao
espírito imediatamente aqueles personagens
dentro de latas de lixo em “Fim de partida”
de Beckett. É claro que eu percebo alegria
em algumas de suas criações. Aquelas meninas
em roda, com um fundo super azul, transmite
alegria, sem dúvida, mesmo que a menorzinha
pareça triste. Então, não me parece que as
cores quentes que usas sejam mórbidas, mas
me espanta que inseres uma leve morbidez, um
leve tom grotesco, apesar das cores quentes.
Tem certas imagens que parecem que pedem o
preto e branco. Acabas de dizer: “a Histeria
me dava sensações em preto e branco”. E, no
entanto, penso que talvez serias capaz de
colorir a “Histeria”, sem perder em nada a
sua expressão original. |
|
AD | Camilo, a palavra “grotesco” é
um tanto grotesca, não acha? Mas tá
certo, sem complicar, eu entendi o
que você disse e o que deseja… você
quer mexer com o monstro que está
quieto e não apenas com o médico que
tem estado presente tentando
costurar a própria insensatez e
pintar algo tranqüilo pra não
acordar as crianças… ok, vamos
despertar, “aprenda a dançar”…
primeiro precisamos fugir do foco
nos termos e falar positivamente
desses elementos que para mim são no
mínimo instigantes, embriagantes,
sedutores e um tanto inevitáveis.
|
|
Falemos das
características dos desenhos que é o que
sugere esse aspecto mórbido e grotesco. Do
espírito intrigante e assustador de se levar
as coisas ao seu confronto crítico, de
desconstrução, o que é uma característica
existencial pura, a partir das ferramentas
das quais se têm. Habitar entre sonhos e
pesadelos humanos sem com isso se deixar
levar pelas moralizações. Viver entre as
vidas e as mortes dos ciclos, aqueles de que
falei evocando Artaud, das linguagens
possíveis dos nossos impossíveis… Da mania
de colocar adjetivo para toda e qualquer
palavra dramatizando os sentidos para
encontrá-los novamente (sei que faço isso
como doida, são os meus antepassados
habitando as minhas veias). Do céu e do
inferno de nossas dualidades constantes
perseverantes incoerentes absurdas e
trípticas… Das sabedorias e das paixões
sempre renovadas às duras penas. Encontramos
aí o ser lírico, rasgando-se,
perguntando-se, o exato momento de crise e
de reconstrução, de corte, de devaneio, de
composição, de morte, de banalidade também,
de eterna infância e eterna velhice, de
solidão, de silêncio, de angústia, de nada,
de encontros e desencontros… A dor não é
somente negra ela é rosa também. L'etoile a
pleuré rose… De extrema e constante dor na
alma, de febre no corpo, de limites, de
vertigens, de imaginação, de tempestades, de
subjetividade e de consciência (habitantes
da mesma casa) ferozes ocres avermelhadas
armadas contra a inocência amarelo-limão da
própria mesquinhez, e acomodação, e
mediocridade, e alienação, e ingenuidade (Davis
e Golias). De inebriação, extravagância,
orgulho, vaidade e desembaraço azuis… Cai a
máscara, põe o espelho na frente da face,
desequilibra o corpo, adormece e deixa cair,
puft, lá vou eu de novo. Cansa, quem não
cansa e depois sacode a miséria roxa? Claro,
a moça persiste, é siamesa, é preciso
enganá-la diz assim olha lá o avião.
Morre-se de amor também. Mas porque amor é
intimidade, misturas de cores, isso, quem
tem medo do amor? Precisamos compartilhar…
Alcançamos mais, sei que podemos, ei não
vamos desistir, vamos começar destruindo o
compasso rumo ao caixão das emoções. Mesmo
que depois sejamos nós mesmos a compor os
nossos novos réquiens. Acho que ainda vale.
A alegria de que falo não é a alegria
sorridente da tampa de margarina, é uma
alegria interna vibrante de estar inteiro e
vivo pelo tempo de um suspiro… Pra depois
reencontrar-se com a angústia de existir,
dar as mãos e sair pra passear numa rua
deserta qualquer, sem pai nem mãe olhando
para o céu apontando o dedo e fazendo
pedido. Acho que a menina mais alegre da
composição é sem dúvida nenhuma a menina
triste! Perceber a vida é encontrar-se com a
tristeza maior, divina, fundamental, e
sorrir. Coragem! A tristeza é palácio de
imaginação, é palco, é binóculo, é casa, é
quintal, é sabedoria, fortaleza imaginária e
roupa estendida no varal para renovar todas
as defesas contra a morte derradeira. No
Brasil a tristeza é feliz, tinha que ser.
Esfera do olho apavorado ou triste ou
angustiado que olha diretamente lá dentro do
outro parecido ou susceptível alcançado… E
sorri espontâneo, livre, brilhante,
cumplicidade. Figuras mutiladas são muitas
vezes os retratos de nossas faltas, ora, é
simples, somos todos deficientes de muitas
coisas sempre… Objetos espalhados pela
imagem como muletas, seringas, cigarros,
vestimentas rotas, nariz de palhaço e tantas
outras coisas “apavorantes” atestam nossas
impotências, carências, loucuras, vontades e
mais, mais, não há tradução direta e
concisa, não estou fazendo propaganda de
nada. As posições dos corpos são nossas
danças, nosso canto, nosso pranto, nosso
sono, ciranda das ocasiões. As narrativas
são as situações, os descontroles, os
atropelamentos, as relações… Todas essas
imagens vieram soltas, in-conscientes,
sábias e frágeis, assim como vão, e podem
voltar me enganando sempre. Permeiam os
desenhos, a vida. Somos universais em nossas
particularidades… não é difícil descobrir
isso… somos particulares em nossas
universalidades… Há códigos mais antigos que
a imaginação de uma menina prepotente,
certamente. Visuais então, nem se fala, eles
se multiplicam com os anos. Desenhos de
ausência, de desejos, de curas, de alívios e
de tantas outras coisas a mais que possa nos
salvar… Do infortúnio e da felicidade de se
descobrir vivo. Existir não é fácil, já
dizia Ian Curtis, ídolo e símbolo de beleza
da minha juventude que fazia com que a gente
se sacudisse “ao som do rádio” em fita k7,
ele sim era um mórbido, hahaha
(brincadeira). Mas tudo isso permanece na
teoria, não é a “música”. A gente precisa
sentir e ouvir e ver… As convenções das
palavras mortas esbarram no corpo flutuante,
sempre. Somos atropelados pelas palavras nos
outdoors, por exemplo, definindo e
mastigando tudo como terríveis cumprimentos
diários, não podemos morrer nisso, devemos
ampliar os significados para não sermos
seqüestrados, caramba! Quase desisto, a
falta de organização da minha fala me
espanta, mas foi você quem puxou a reza. É
morbidez talvez e então e é grotesco também,
essa delicada presença de espírito. Figuras
e lugares caindo num abismo com o peso do
dicionário. Posso colorir tudo isso, claro,
basta me dar uma caixinha de lápis de cor,
mas saiba que a emoção não vem no arco-íris
da embalagem, ela aparece misteriosamente:
uuuuuuuuuu! A tristeza, se a quero, por
exemplo, não pode nascer subjugada aos
clichês de “tristeza”, tento, senão o que
será de mim? Deixar a atmosfera do desenho
colorido semelhante a que consigo com a
imagem em P/B tem mais a ver com o meu gesto
viciado e impotente do que com uma procura
de uma estética “mórbida” ou “grotesca”.
Desconstrução.
CP | Vou te
provocar. Duas exposições seguidas com
temática feminina. Você não teme cair
naquele lugar comum que as instituições
costumam colocar as mulheres, uma espécie de
“espaço feminino”, onde se dá “voz à
mulher”, como se só se pudesse expressar o
feminino em lugares restritos? E, pior
ainda, como se pelo simples acaso natural de
se ser mulher, deve-se obrigatória fazer uma
“arte feminina”, com “temas femininos”. Por
exemplo, nunca ouvi falar de uma exposição
onde o tema fosse para expressar o
“masculino” e fosse restrito a homens. Ou
uma exposição de “arte hermafrodita”, ou de
“artistas bissexuais”, ou “arte de ruivos”!
É sempre “arte feminina”, “arte indígena” ou
“afro-brasileira”. Não vejo, obviamente,
você como uma “artista feminina”. E depois,
a arte não tem sexo, nem cor, nem
nacionalidade. Mas, para te provocar a falar
sobre o assunto, com duas exposições
seguidas sobre o tema feminino você não
corre o risco de cair nesses limites criados
― normalmente por vias institucionais ― sob
alegação de “dar voz” às mulheres?
AD | Você é
gentil, antes de provocar – enfiar a faca –
tu me avisas, ora, obrigada! (Riso).
Não são
duas exposições com temas femininos, é um
conjunto de trabalhos que foram feitos para
uma delas, a proposta da Hystéra, que foram
migrar para outra exposição que apareceu de
repente, da qual deixei com o nome da série,
só que sem o Pã, aquela mesma do “O pátio
das Idades”. Com ela, te digo, não, não
tenho medo de cair nesses lugares comuns dos
discursos políticos que servem às pessoas
encaixadas no termo “minorias oprimidas” no
jantar, ou dos magazines que colocam na capa
“Você é mulher e é diferente! Faça o teste.”
etc. Já superei isso na minha vida, lá no
punk, voltando de novo, não me deixo pegar.
Eu tenho plena consciência da ingenuidade e
da manipulação das quais estão assentadas
esse tipo de atitude discursiva que preza o
“feminino”, e também da banalização que
neutraliza os problemas em suas raízes. Sim,
os problemas existem, ainda, fortes, por aí
e por aqui, estamos todos somente passando
por um período de fingimento nesse país
pobre e sedado, mas vai passar. Sabemos
disso. No caso do tema feminino nas
exposições é o seguinte, eu propus romper
limites com um grande desafio: falar do
mesmo em nós sem dizer o mesmo. E com isso
não criar outros muros. Com esta série fui
buscar antigas representações, mexer com
símbolos, coisas de hoje também, mas que a
“sociedade da informação e do consumo”
transformou em “clichê”, o que pode ser
bastante perigoso. Como o corte do cabelo,
por exemplo, que sempre teve uma simbologia
muito forte de transformação em especial
para as mulheres, culturalmente,
historicamente, etc. Para trabalhar com
isso, eu precisei estar despida de conceitos
moralizantes, caminhar até outra região,
onde eu pudesse me surpreender. Se quiser me
acompanhar agora tem que começar sem as
vestimentas atuais porque nós vamos costurar
retalhos. Primeiro, e antes de mim, a
cultura, um pano enorme pra manga do mundo.
Não sei quem era a avó da minha avó, mas sei
que minha avó paterna, uma imagem doce numa
fotografia rota, morreu de câncer no seio,
logo que nasci, porque meu avô boêmio e
estivador não deixava ela mostrar os seios
para os médicos para fazer os exames. Isso é
bem recente, tem trinta anos. Sei também que
quando eu era punk os meninos punks não
queriam em sua maioria namorar com as
meninas punks porque nós éramos iguaizinhas
a eles e os assustávamos sendo assim, lógico
que eles preferiam as meninas bonitinhas e
burrinhas da vizinhança. Era muito injusto
para com o nosso esforço! No ano passado um
professor de artes me disse que para eu ser
uma “grande artista” eu tinha que “dar” para
um curador americano! Hahahaha. E por aí
vai… parece brincadeira. Você até esquece
que é “mulherzinha”, sim, porque está
envolvida demais com o “humano” da coisa,
com o “arte não tem sexo” etc.… mas volta e
meia chega uma situação cretina dessas pra
te colocar na parede e te esbofetear a cara
dizendo: não tá vendo tonta, por onde você
anda, sua menina ingênua? Certo, o mundo
está aí. Outro pano: para compor os desenhos
não pensei em vitimização de coitadinhas,
nem em “ai de mim que sou mulher” ou “vamos
falar agora só de mulheres”… que bobagem,
não quero dar desculpas por ter desenhado
meninas, mulheres e velhas, tão próximas de
todos nós. Estou tão acostumada como
“mulher”, por exemplo, a ler todas as coisas
generalizadas pela língua escrita e falada
no masculino quando se referem ao “humano”
que nem ligo… então por que eu não posso
fazer uma série representando mulheres que
vai dar na mesma: os “homens” podem se
identificar pelo caráter humano da coisa…
sim o caráter humano da coisa! A partir de
experiências femininas, de experiências
minhas e da minha mãe e da minha amiga e da
louca ali da rua, por que não? A histeria
antes de Freud foi feminina, uma crise da
cultura machista e cristã (estou me sentindo
nos anos setenta)… E por que não falar
disso, dessa ferida viva no corpo do humano
e da história? É da loucura de que estou
falando, da sensibilidade emotiva sempre
subjugada ao campo moral da Razão, sobretudo
do nosso poder e desejo de significação. Se
eu começar a gritar agora vão me chamar de
“histérica”, por quê? O que é isso? De onde
vem? Simples assim, nunca quis excluir a
sensibilidade nos homens nem ajudar a formar
um clubinho de menininhas espertinhas. Sim,
existem características masculinas e
femininas nas coisas, iconografias,
símbolos, signos, significados, teorias,
expressões etc., isso vem de muito e muito
tempo atrás, de antes de mim, não tenho
culpa disso. Sou apenas uma jogadora (e
joguete) como qualquer um, de tudo o que nos
representa e apresenta desde há muito. Tocar
nessa antropologia de símbolos, arquétipos,
mitos… é segregar? Camilo, eu me solidarizo
humana e profundamente com a “culpa
masculina para com os males do mundo” que
reservaram para vocês, “homens” desta época,
como um peso terrível. E não acredito que
minha arte caiba num rótulo de “arte
feminina”, mesmo porque, esse tipo de coisa
não combina em nada com meus meninos, homens
e velhos. O elemento psíquico delas – das
mulheres de “O Pátio das Idades” – é o
grande deus Pã, já te contei isso? E ele é
masculino, deveras masculino.
CP | Boa
parte das artes plásticas atuais é abstrata.
Traços de cores que, para um leigo como eu,
não diz absolutamente nada. Na sua página há
um “Maravilhoso Caravaggio” e muita arte
figurativa, que é isso que você faz. O que
acha dessa arte atual fundada e acabada em
tintas sobre tela, papel, papelão, madeira,
tijolo… e que não representa nada.
Normalmente os “entendidos” em arte dizem
que fazer figuras é muito fácil, basta ter
técnica e que a criação mesma está nessas…
coisas, que virou praga nas galerias de arte
e que precisa sempre de um monitor para
explicar “o que o artista quis dizer” com os
riscos que fez na tela.
AD | Ai, ai
Camilo, vamos ser presos, e quem pagará a
Fiança? A Agulha? Até me dizem algumas
coisas parte desses trabalhos, mas só depois
que eu leio as legendas, rarará! Se eu fosse
analfabeta nem isso. Pessoalmente eu fico
sempre com aquela clássica pergunta: “Tá, e
daí?”. É frio mesmo, não raras vezes
“publicitário”, senão um bom achado estético
que morre em seu discurso formal extenso.
Não tem ressonância poética, certamente, por
isso a maioria das pessoas “não entende”,
elas não atingem ninguém. E não se preocupe,
todos ficamos leigos em frente à tamanha
“inteligência”, trancafiada na cabeça do
Artista e escondida na Obra, em algum lugar…
mas será? Tentamos. Não encontramos. E te
digo, tem gente do mesmo círculo que finge a
roupa invisível do rei. O artista de hoje
que não sabe muito bem o que fazer, mas é
seduzido pelo “ego artístico” que dá muitas
vantagens a quem tem fama e sucesso e
dinheiro, costuma se intitular “multimídia”,
voltando a ser o grande gênio da história,
ele faz qualquer coisa (ego copioso) sob a
autoridade de sua assinatura. Ainda que ela
tenha saído da convenção do quadro para
entrar na do banner e do convite eletrônico.
Se não temos curiosidade no seu umbigo, que
relação teremos com esse tipo de
artista-obra? O mundo da Arte está esvaziado
de significações, é verdade. Se “a imagem
construída é somente um pretexto para o
desenvolvimento técnico” eu fico pensando
onde será que está a arte aí? Mas essa é
minha opinião (nos protegemos nesse mundo de
opiniões assim, cada um tem a sua, então
tanto faz). O pensamento “pensado” ainda
padece privado de suas possibilidades
sensíveis, inventando qualquer coisa que
seja distante tematicamente da vida, que
separe as pessoas não acadêmicas das obras
(que mania, ele não aprende!). Sim, sem
representação, sem eco e sem experiência
simbólica. Mas eles estão na moda, são
vários tipos pra se escolher, por isso são
que nem praga. O andar de baixo eu diria que
é onde habitam o “manual”, modo considerado
“menos inteligente” e recluso em uma
categoria de “arte menor”, assim como o
figurativo. Fato que acumula à margem uma
quantidade grande de artistas ativos em
ateliês por aí, categorizados
pejorativamente de “artesãos” ou “não-contemporâneos”.
Sutil guilhotina! Que preconceito feio. E
não se trata de uma guerra entre
“figurativos e abstratos”, nem de
“conceituais” e “tradicionais”, isso é uma
bobagem! Chega. Adeus Séc. XX, ele está
morrendo em nós ainda que ele vá morrer
conosco também. Vai além do aspecto formal a
falcatrugem da “não-obra” em nosso mundo de
“multiplicidades”. E envolvida profundamente
nisso, eu juro que sinto que há algo puindo,
sinais de esgaçamento nessa rigidez da Razão
não sensível aos “mistérios” humanos. O
mundo está mudando ou eu estou colecionando
loucuras… Se o figurativo é “mais fácil”? Ok,
mas é pra rir? As pessoas “inteligentes”,
isto é, “não-naifs” não desenham mais hoje
em dia além de riscos e riscos e “esquemas
esquemáticos”, por que então? Por que o
desenho já foi superado em sua simplicidade
de representar e apresentar o mundo e se
tornou tão complexo que acabou virando um
risco apenas? Por que as pessoas ainda
desejam renovar febrilmente as técnicas de
arte a caminho de um grande conhecimento
formal abstrato, que eu diria, quase
invisível? Não, é porque elas não sabem mais
desenhar. Tenho certeza. Está cada vez pior.
Elas não têm tempo para bobagens, claro. O
mundo urge! As têmporas saltam! O coração
definha. Sim, Camilo, eu poderia falar
muito, muito, muito mal de parte dos meus
coleguinhas de profissão, há tantas coisas
ainda, e isto aqui já virou uma bagunça, mas
prefiro acabar dizendo: “Maravilhoso
Caravaggio”! e seguir andando.
CP | Aline,
para terminar gostaria de retomar o punk. E…
já que você disse que gosta de falar de
Rimbaud… Foi no meio punk que eu ouvi pela
primeira vez falar dele, e também de
Baudelaire, de Poe, de Blake, de Artaud e os
surrealistas, etc. Acho interessante que
depois de vinte anos na escola (colégio,
universidade), não foi por aí que me veio a
fórmula rimbaudiana “é preciso mudar a
vida!”. Eu tive (e tenho) professores que
com certeza nunca tocaram num livro de
Rimbaud. E lá naquele meio “feio, sujo e
agressivo” do punk, Rimbaud circulava de
mãos em mãos, mesmo que em frases soltas em
fanzines. Aquilo que chamávamos “imprensa
underground”, o meio dos fanzines, das
revistas anarquistas e mesmo das conversas
pessoais ou por cartas, foi coisa
riquíssima, que só agora, na devida
distância temporal, é que reconheço o quanto
de valor informativo e cultural possuía.
Enfim, encontramos Rimbaud e mudamos nossas
vidas por aí, não? assim como também
aprendemos o “faça você mesmo” na prática.
Agora, eu pergunto: com os dois blogs que
você mantém na rede, as parcerias, os
contatos e as trocas de informação e cultura
que se dá por esse meio de comunicação, de
algum modo, você não se sente como se
estivesse fazendo mais ou menos o mesmo, só
que, digamos, num outro nível? Ou seja,
Rimbaud entre os punks, e agora a
continuidade de um “movimento” por esse meio
virtual que é a internet, e que é bem mais
prático do que fazer xerox, xerox e xerox,
que era o meio do fanzine.
AD | Não, não sinto que é a mesma coisa com
a internet, nem em “outro nível”. Sempre
senti isso conforme as coisas foram mudando
e eu me adaptando, mas agora que eu, tendo
que explicar, devo ir mais adiante, não é?
Vou tentar, não prometo. Não é nada marginal
fazer blogs hoje em dia, eis a primeira
questão. O mundo mudou, o sentido das coisas
mudaram e nos atropelaram, o sentimento,
estamos diferentes. Temos outras coisas.
Substituímos antigas dificuldades em que
remávamos por facilidades e novidades que
nos adicionam, locomovendo a vida, ok,
sabemos disso e lemos isso em todos os
lugares para nos convencermos o espírito.
Tem a saudade ainda, nostalgia que começamos
a descobrir em nossa geração, da importância
que dávamos às informações, e discos, e
livros, e imagens… pelo grau de dificuldade
em obtê-los e desejo alimentado de
aproveitá-los, que movimentavam uma energia
diferente em nós, nos transformavam.
Tínhamos ou temos mais poder de manipulação?
Não importa. Mas ainda não é por aí… É uma
grande coisa nossa acessibilidade e
compartilhamento de informações de hoje em
dia, ainda que nesse bombardeio democrático
e benéfico à sede enciclopédica do ser
humano o cérebro do infeliz quase exploda…
Mas onde ficamos com Rimbaud e o “Faça Você
Mesmo”, o “Movimento articulador de
imprensas rebeldes”, o “é preciso mudar a
vida”, etc. de que falaste? Não, não é a
mesma coisa Camilo. Não se pode comparar um
mouse com um rato. Continuo recortando… mas
aonde quero colar? Comer com as mãos, era
isso fazer Fanzine, era raro, e era
solitário e custava muito e era sinônimo de
articulação e personalidade. Essa última
palavra era sussurrada lá em baixo, não se
vendia na vitrine como hoje. Fazer um blog é
tão, tão, tão fácil e comum que é só
recortar e colar tudo o que atrai na
internet e plim, todo mundo pode ver,
vaidade e luxo! Não parece despertar as
sensações incríveis que tínhamos antes em
nossos cantinhos abandonados acreditando
derrubar fronteiras de pensamentos e
distâncias, nós, perdidos em meio aos papéis
embolorados e tesouras afiadas apontadas pra
gente mesmo. Isso pode parecer bobo ou
inocente ou sei lá o quê de piada para essa
nova geração, mas isso fazia todo um sentido
de vida diferente. E não estou sendo
saudosista, nem quero um prêmio por isso
tudo. Explico uma coisa impossível de
resgatar ou se fazer entender. Já disse que
é uma “emoção” diferente, isto é, o gesto
era outro. Eu vejo fotos e escritos do
Rimbaud, que não tenho em livro, na internet
como vejo um milhão de reproduções de
pinturas que jamais teria a oportunidade de
ver, que legal, tá tudo ali, mas logo fico
cansada e vou para a cama ou para o chão ler
o meu livro amassado e manchado do Rimbaud
de sempre e vou lê-lo e carregá-lo comigo
mais mil vezes, estragá-lo e surrá-lo com as
mãos, e ele vai apodrecer comigo também. E
logo vou sonhar com o dia em que eu puder
ver ao vivo os quadros, aqueles em que vi
nas figurinhas do Google. Entende? Estou
falando de sensações. Outros gostos no
“viver a vida”. É só diferente, talvez um
pouco romântico, mas não mais ou menos
nobre, antes que me atirem as pedras. Quando
encontro meus amigos preferiria dar um livro
de presente, do que meu endereço de blog,
acontece que um livro é caro e a internet é
“de graça”… fazer o quê? Para as longas
distâncias isso funciona em parte, mas não
substitui o desejo. A verdade é que estamos
à deriva, aprendendo a trabalhar um mundo
que anda mil vezes mais rápido do que as
nossas pequeninas pernas, mas tenho certeza
que o “é preciso mudar a vida” é o que a
gente alcança, o que a gente consegue. As
relações pessoais, os encontros ou grupos de
hoje em dia também são outros, melhores e
com mais riscos, porque é preciso lidar com
mais diferenças. No movimento punk, todos
éramos viciados nos mesmos códigos, isso até
cansava. Na vida fora disso, com pessoas de
minha geração que tiveram experiências tão
diferentes de mim e que muitas vezes nem
leram Rimbaud, relacionar-se torna as coisas
mais interessantes e provocadoras, se houver
afinidade isso então vira uma metáfora!
Gosto mais de hoje, neste caso, onde há
contrastes, misturas, mais sutilezas e
malícias. A vida é estranha.
CP | Põe
estranha nisso… Obrigado, e boa viagem à
velha Europa!
AD | De
nada. Foi bom te rever e ver como tu ficaste
depois que cresceu… Obrigada também ao
querido Floriano por ter emprestado as
agulhas para brincarmos ao nosso modo… Vamos
ver o que acontece no velho mundo, no
caminho inverso da descoberta… |
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