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Crítica, literatura e universidade
Claudio Willer
Página ilustrada com obras da
artista Aline Daka (Brasil) |
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Dez anos atrás, minha primeira
contribuição para Agulha foi um
artigo sobre ensino de literatura,
com fortes críticas ao formalismo e
cientificismo: Um ensaio em forma de
manifesto – Crítica e criação
literária. |
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Também
publiquei outro, tratando do ensino médio, e
com as críticas, dessa vez, dirigidas aos
relativistas socioculturais: Em defesa da
Literatura, em agulha 25. O texto que se
segue, publicado originariamente na revista
Cult em 2001 – e agora republicado com
alguma revisão e atualizações – os
complementa. Juntos formam um tríptico,
tratando da mesma questão, porém sob ângulos
distintos. Todos já repercutiram, tiveram
bons leitores; que continuem a suscitar
debate, que tenham alguma conseqüência nos
campos da crítica e ensino.
Nas 24 páginas
de Crítica literária no Brasil, ontem e hoje
(publicado em Rumos da Crítica, Maria Helena
Martins, org., diversos autores, Editora
SENAC São Paulo e Itaú Cultural, 2000),
Benedito Nunes comentou autores e tendências
de 1870 até 2000, sem cair na compilação, no
inventário de nomes e obras. A única
restrição a esse trabalho seria o autor não
constar, não se haver incluído. Como tantos
outros textos recentes sobre o assunto,
termina com um diagnóstico de crise. O
crescimento da produção, quantitativo e
qualitativo, não o impede de registrar que a
crítica, sem mais representar um pólo de
tensão com a escrita dos escritores, está em
crise profunda desde algum tempo nos seus
princípios, na sua presença pública, na sua
operatividade como leitura.
Reportando-se a Leyla Perrone Moisés e
Walnice Galvão, vai mais longe: …talvez seja
mesmo a crise da crítica o efeito exterior
de uma crise da própria literatura,
combalida, intoxicada, inconfortada,
maquilada dentro do sistema vigente de
valores mediáticos da cultura brasileira
globalizada. (…) se a literatura cai, a
crítica despenca.
Crise da crítica, ou da literatura? Na
segunda hipótese, em qual das suas
instâncias? Da leitura, ou seja, na ponta da
recepção (que inclui a crítica, é claro), da
produção editorial e de seu sistema de
distribuição, ou da própria criação? Nessa
última, de modo algum. Bons autores novos
não faltam, pelo que eu tenho visto em
concursos, oficinas literárias e
lançamentos. Quanto à primeira hipótese, de
uma crise da crítica, cabe também uma
pergunta: de qual crítica? Há uma resposta
sugerida pelo próprio Benedito Nunes, ao
observar a mudança nesse campo entre os anos
50 e 70: Dera-se entrementes a ascensão da
teoria da literatura – ambíguo nome, quase
ciência e apenas teoria, encampando a
poética, a retórica e a estética, que
consolidou e enobreceu o ingresso da
atividade crítica na universidade,
convertida em parte considerável da
competência do magistério superior
habilitado em letras, prolífico em sua
incessante produção de monografias,
dissertações e teses universitárias, que,
dificilmente computável, em breve saturaria
a bibliografia especializada. |
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Há, aqui, um esclarecimento que
deveria ser grifado: o ingresso da
atividade crítica na universidade.
Uma das manifestações mais fortes de
ceticismo quanto ao alcance de uma
crítica universitária fundada em
paradigmas está em um artigo de
Massaud Moisés: …na década de 70, o
estruturalismo irrompeu como um
furacão, destruindo tudo à sua
passagem, iludindo com sua
objetividade sem invenção e sem
graça as mentes destituídas de
espírito crítico (…) Depois veio o
desconstrucionismo, em meio ao
método psicanalítico, o sociológico,
o sociopolítico etc., por vezes
contagiados da chamada
pós-modernidade.
Indaga se a adesão a uma delas não
resultaria, ao fim de contas, tão
precária quanto a crítica
impressionista que tencionava
substituir ou aniquilar de uma vez
por todas (A difícil e esquecida
arte da crítica, no Caderno de
Leituras do Jornal da Tarde, São
Paulo, 09/09/2000). |
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Opiniões desse
teor haverem passado em branco, sem
respostas, é sinal de abulia, pois quem as
emitiu não é um diletante, mas alguém que
continua valendo como fonte sobre história
da literatura brasileira e outros temas
relevantes. O cerne de sua argumentação é
uma disjuntiva, pela qual de duas uma: ou se
decodifica aplicando um método, forçosamente
redutor, sempre tomando a parte pelo todo,
ou então se opera no eixo da qualidade,
julgando (e correndo o risco de errar) com
base na sensibilidade e cultura literária.
Assim, nos últimos 40 anos não mudou só a
crítica: mudaram os críticos. Teorias
literárias têm, é claro, uma história
própria, ligada à ascensão dessas
ramificações do positivismo, as ciências
humanas, e daquilo que Octavio Paz chamava,
já em 1970, de imperialismo da lingüística.
Mas não se instalaram em um vazio.
Justificadas por uma produção que,
presumivelmente, resulta em avanços no
conhecimento, ganharam importância dentro de
um mercado de trabalho constituído por
universidades, faculdades e colégios. A
razão é demográfica: se há mais pessoas a
alfabetizar, instruir, integrar na sociedade
letrada, aumenta (ainda assim menos que o
necessário) a demanda de mão de obra para
essa função.
Ao mesmo tempo, o mercado de onde vieram os
críticos, aquele do jornalismo, sofreu uma
contração: basta lembrar a quantidade de
jornais diários que havia em São Paulo nos
anos 40 a 60, e observar o que existe agora.
A crítica, com os lundis de Sainte-Beuve e,
logo depois, com os relatos de Baudelaire
sobre suas leituras e visitas a salões de
artes plásticas, nasceu dentro de jornais.
Conforme já observei (no artigo citado de
Agulha # 1), há pouco mais de um século,
periodismo e literatura não eram
dissociados, e Zola ou Machado de Assis
ganhavam a vida colaborando com jornais que,
por sua vez, publicavam capítulos de suas
obras. O trânsito entre ambos ainda era
tranqüilo no tempo de Sérgio Milliet, que
lecionou em uma instituição de ensino
superior, mas ganhava a vida como
administrador cultural e jornalista; e,
nessa condição, como autor de rodapés de
crítica. Na biografia de autores da geração
seguinte, como Antonio Candido, observa-se a
passagem de uma área para outra, da crítica
jornalística, no tempo dos rodapés
reeditados em livros como Brigada Ligeira,
para o magistério e a produção acadêmica.
Portanto, antes da crise houve um refluxo,
com a mudança de lugar da crítica. E um
contrafluxo, a bem dizer um revertério,
representado por aquilo que sai na imprensa,
objeto deste diagnóstico de José Paulo Paes
(em um artigo de 1998 sobre o centenário de
Sérgio Milliet, publicado no Jornal da
Tarde): Nas poucas resenhas de livros que a
grande imprensa brasileira condescende ainda
em publicar, a auto-suficiência do magister
dixit costuma alternar com a anodinia do
press release disfarçado. E das observações
de Massaud Moisés: Os suplementos literários
ficaram reservados para as notícias,
publicidade editorial, resenhas,
entrevistas, reportagens; (…) foram
desaparecendo ou mudando de figurino, talvez
cônscios de que deixavam um espaço que nada
preencheria.
Constatações da mudança de perfil dos
críticos estão, quando muito, implícitas no
ensaio de Benedito Nunes, pois seu objetivo
é comentar obras, e não traçar biografias. A
defesa do biográfico, a personalização,
digamos, de questões literárias, é feita em
outros lugares. De modo que chega a ser
paroxístico, por Waly Salomão na revista
literária Babel. Por exemplo, nesta
passagem: Kavafis nunca recebeu um Prêmio
Nobel! Toda a vida dele ele escreveu foi
poemas de pegação, de pegação de rapazes que
ele encontrava nas ruas, em bares horrendos!
Os poemas de Kavafis são pequenos lances de
pegação, pegação em quartos escuros de
hotéis onde se entra para trepar – TREPAR!
(Depoimento, Waly Salomão, Babel, Revista de
Poesia, Tradução e Crítica, ano I – número
3, setembro a dezembro de 2000, Santos, SP)
E por aí afora.
Tais afirmações, tomadas ao pé da letra, são
redutoras, e Waly sabia disso. Seu propósito
foi questionar, valendo-se do exagero, a
dissociação acadêmica entre poesia e vida, o
desconhecimento do biográfico a pretexto de
examinar a literatura em sua autonomia. Algo
semelhante ao que, para tomar um exemplo de
maior envergadura, o surrealista português
Mário Cesariny fez em O Virgem Negra -
Fernando Pessoa explicado às Criancinhas
Naturais e Estrangeiras por M. C. V.
(Assírio & Alvim, 1996) tripudiando sobre
sua memória para mostrar que poesia é feita
por gente de carne e osso, e não uma
escritura em abstrato, um fenômeno
exclusivamente da linguagem. O próprio Waly,
no depoimento aqui citado, comentava um
poema seu, Novelha cozinha poética,
questionado por exibir anti-semitismo e
mau-gosto (Por Manuel da Costa Pinto no
jornal Folha de S. Paulo, Caderno Mais!,
02/07/2000, e por Suzana Scramin na edição
aqui citada de Babel, ambas as vezes no
contexto, esclareça-se, de observações
favoráveis ao livro do qual faz parte,
Tarifa de Embarque). Esclarece que o fez
pegando um tipo de poeta que é totalmente
biônico, fabricado nos departamentos de
letras das universidades, absolutamente
despido de qualquer experiência e se
vangloriando disso. Meras estações
repetidoras de esquemas, de professores, de
departamentos de Letras. A referência à
fatia de Teodor Adorno, à posta de Paul
Celan e à limpeza dos laivos de forno
crematório seria uma sátira aos que
reproduzem idéias e estilo desses e de
outros autores, sem terem passado, nem de
longe, pelas mesmas experiências. Algo
correlato ao que Roberto Piva diz neste
poema: Dante/ conhecia a gíria/ da Malavita/
senão/ como poderia escrever/ sobre Vanni
Fucci?/ Quando nossos/ poetas/ vão cair na
vida?/ Deixar de ser broxas/ pra serem
bruxos? (o poema está em Ciclones,
republicado em Estranhos sinais de Saturno,
Globo, 2008)
A edição aqui citada de Babel apresentou um
choque de códigos, notadamente nas respostas
a uma enquête sobre o cânone, na qual se
alternam manifestações no limiar do
impropério, e outras que exibem as mesmas
preocupações e repertório das revistas dos
departamentos de Letras. Permite enxergar
uma divisão em dois campos, um deles
universitário, outro, extra e antiacadêmico.
A mesma cisão foi encenada ao vivo em
algumas sessões de um ciclo de debates,
Poesia em Revista, que coordenei em outubro
de 2000 na Biblioteca Mário de Andrade, em
São Paulo, com a finalidade de mostrar que o
crescimento numérico de periódicos
literários (inclusive Babel e Cult) era um
indício de vitalidade no plano da criação.
Por isso, convidei seus editores e lhes pedi
que indicassem poetas, formando mesas com os
representantes dos jornais ou revistas
literárias e seus convidados. Acabou-se
mostrando algumas linhas mestras da poesia
contemporânea e, em certa medida, da
crítica. A mais evidente, a ponto de
suscitar discussões ásperas e certo
desconforto, confrontou revistas e jornais
encabeçados por quadros vinculados à
Universidade, estudantes ou professores de
Letras, e outros que externaram críticas à
instituição. A julgar por algumas farpas
dirigidas por Waly à revista Inimigo Rumor
no depoimento aqui citado, o debate nessas
sessões na Biblioteca Mário de Andrade não
foi um episódio isolado, porém um dos
capítulos de uma polêmica que já eclodiu em
outros encontros dessa natureza.
É mais um sinal de passividade do nosso
jornalismo nada disso haver transparecido em
seus cadernos culturais. Se fosse umas
décadas atrás, um Folhetim da Folha de S.
Paulo iria examinar, sob diversos ângulos,
esse contraste entre uma vida literária
universitária pautada pelo cerebralismo,
hiperteoricismo, dissociação entre vida e
uma produção identificada à “invenção”,
resultado da “pesquisa” e “experimentação”
praticadas com “rigor” e “disciplina”, e
outra correndo por fora, extra-institucional,
valorizando a informalidade, a tradução da
experiência vivida pelo autor e de suas
paixões em uma criação espontânea, fruto da
intuição e até da revelação. |
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Termos
binários como razão vs emoção ou classicismo
vs romantismo são excessivamente amplos.
Contudo, mesmo assim, será que tais
polaridades, e outras de maior substância,
como apolíneo e dionisíaco, não reapareceram
na segunda metade do século XX, na forma de
intra e extra-universitário? Difícil não dar
resposta afirmativa. Basta examinar duas
situações distintas. Uma delas, marcada pelo
predomínio de uma cultura universitária,
pode ser aquela apresentada pelos Estados
Unidos, do final da Segunda Guerra Mundial
até os anos 60. Notoriamente, universidades
são, naquele país, fonte de produção
cultural. Contudo, oferecer cultura é,
também, orientá-la, justificando esta
crítica de Allen Ginsberg à ortodoxia na
comunidade acadêmica, a começar por Columbia,
regida pelo New Criticism: Não liam William
Blake, nem qualquer outro dos autores
visionários da tradição romântica; seguiam o
formalismo de Pope e Driden. Não se falava
em Whitman; menos ainda em Hart Crane.
Sabiam que Pound era importante, mas sem
conseguir explicar os motivos. William
Carlos Williams morava a vinte quilômetros
de Columbia, e nunca havia sido chamado para
dar uma conferência lá. Poetas hoje
configurados como menores, como Allen Tate e
John Crowe Ramson, eram modelo, e a leitura
impessoal do texto servia como paradigma
para uma criação igualmente asséptica. Isso,
em um contexto examinado pelo
surrealista-beat Philip Lamantia, entre
outros, ao denunciar a consciência literária
americana fixada no realismo e no
positivismo, tolerando uma vanguarda apenas
à margem: Uma escrita de natureza analógica,
metafórica, não-realista, foi praticamente
interditada nesses cinqüenta últimos anos,
mesmo sendo uma prática corrente, quase um
hábito na França (esses comentários estão,
entre outros lugares, em meu recente Geração
Beat, L&PM Pocket, 2009).
Esse ambiente fechado contribuiu para o
caráter tardio de um vanguardismo
norte-americano, representado não só pela
Beat, mas por movimentos e tendências dos
anos 40 a 60 afins aos que, na Europa,
eclodiram nas primeiras décadas do século XX.
E para a migração rumo a Paris, como se
houvesse um sistema de vasos comunicantes,
transportando fugitivos do racismo como
Richard Wright e James Baldwin, do
macarthismo e do puritanismo anglo-saxão,
inclusive pela oportunidade editorial
oferecida aos Henry Miller e William
Burroughs ainda proibidos lá. Beber na fonte
vanguardista, como o fizeram Ginsberg,
Ferlinghetti e Carl Solomon, era trafegar no
mundo antípoda do austero academicismo
norte-americano. Muito já se publicou sobre
boemia literária francesa no período em que
idéias e projetos corriam soltos pelos bares
de Saint Germain, redações de revistas como
Merlin ou Paris Review, sedes de pequenas
editoras como a Pauvert ou Olympia. Eram as
trincheiras do novo, do ataque a formas e
fórmulas literárias ou às próprias
instituições, naquele tempo de
franco-atiradores, em que a cultura não
estava confinada a departamentos e salas de
aula. Nem Camus, nem Boris Vian, nem Simone
de Beauvoir, muito menos Alex Trocchi ou
Maurice Girodias, entre outros defensores da
idéia da autodeterminação do indivíduo,
foram professores universitários. Sartre foi
professor, mas sua atuação era mais
editorial, projetando-se através de
iniciativas como Les Temps Modernes e as
publicações e encenações de sua própria
obra. O público, esse sim, era
predominantemente universitário: daí os
pontos consagrados, bares e livrarias, serem
nas imediações da Sorbonne.
Desde então, acentuou-se o deslocamento,
acarretado pela institucionalização de
órgãos públicos e da própria universidade
como agência cultural, levando Michel
Foucault a observar, já em 1975, que o
grande corte que fazia com que Baudelaire
não tivesse nenhuma relação com os
professores da Sorbonne já não existe mais.
Os Baudelaires de hoje são professores da
Sorbonne. Constatava ainda que a
universidade se tornara determinante do
gosto literário: Pegando o exemplo francês:
não se pode conceber Robe-Grillet, Butor,
Solers, sem o auditório universitário que os
excitou, acolheu e analisou. O seu público
foi o universitário. (em entrevista no
número 1 do jornal Versus) Para Foucault,
isso não era necessariamente negativo, porém
um componente da mudança do intelectual, de
“universal”, a exemplo de Baudelaire, para
“específico”, como o seria um professor,
mais um entre aqueles que exercem trabalho
intelectual. Contudo, de intelectual
“específico” a burocrata vai um passo, e bem
pequeno. Se retirarmos da expressão
“burocrata” a conotação pejorativa, ambos
serão, forçosamente, a mesma coisa. Um
professor ou pesquisador universitário pode
até ser um aventureiro, mas fora do
expediente, no qual terá que se ater à grade
curricular e às exigências da carreira.
Diagnósticos de crise da crítica ou da
própria literatura aqui citados, e outros
que me parecem apocalípticos, a
contextualizam como fenômeno típico de uma
sociedade regida pela lógica do mercado.
Acontece que o mercado são eles! No Brasil,
onde mais circulam livros é nas instituições
de ensino! Ser recomendado ou adotado
determina o futuro comercial de uma edição.
Isso foi bem observado por Massaud Moisés,
no artigo aqui citado, ao comentar o
crescimento de editoras universitárias na
Bienal do Livro de São Paulo. Isso,
reconhecendo que desde então, depois de se
chegar a um ponto-limite de academicização
da crítica, observa-se abertura em
suplementos, com mais resenhistas e
comentaristas escrevendo como leitores e não
apenas como professores, dirigindo-se a um
público mais amplo, e não só a colegas,
alunos e orientador. |
A influência da universidade sobre
um mercado de obras literárias
possibilita analogias com o que
ocorreu nas artes visuais,
denunciado, um quarto de século
atrás, por Tom Wolfe em A Palavra
Pintada. Para o jornalista
norte-americano, com o crescimento
de importância e de sofisticação da
crítica, inverteram-se suas relações
com a criação. A cada vez que um
crítico ou grupo de críticos
indicava algo como sendo o mais
moderno, dotado de valor, artistas
aderiam a essa tendência. Nada de
novo, é evidente, em autores
produzirem com um olho no público e
outro na mediação mais importante
para chegar lá. Contudo, quanto mais
a crítica se sistematiza, se
apresenta como conjunto impessoal de
conceitos, tanto mais irá oferecer
referências igualmente precisas do
que se espera do aspirante à
carreira literária. Outrora, a
questão, para o iniciante nessa
trilha, seria perceber o que
agradaria a Brito Broca ou Agripino
Grieco. |
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Hoje, tarefa a
exigir menos da intuição e telepatia, ou da
sociabilidade, é o poeta biônico, indigitado
por Waly e outros, estudar a lição de casa e
ajustar-se a esse ou aquele paradigma.
O uso de termos bipolares não deve servir a
que se projete a sombra do maniqueísmo sobre
esta discussão. Em primeiro lugar, não
obstante Waly haver assumido o posto de
avatar do anti-academicismo, algo de seu
prestígio se deve ao endosso por docentes
como Antonio Medina Rodrigues. Além disso,
epígonos, formados ou não em Letras, não
provocam danos permanentes. Passarão, como
já foi observado antes. E a Universidade
consolidar-se como lugar, não só de
transmissão, mas de produção do
conhecimento, corresponde a uma tendência
secular. Mesmo com todos os problemas que
qualquer pré-vestibulando conhece –
departamentos que são perfeitas paróquias,
promoções injustas, boicote a talentos e
contribuições relevantes, produção em série
de repetidores de fórmulas, esforços e
recursos investidos em trabalhos tipicamente
circulares, para justificar esse ou aquele
método e não para avançar no conhecimento –,
querer revertê-la pode ser um chamado ao
obscurantismo, à supressão do que têm de
produtivo. Seu papel, hoje, é aquele que
lhes cabe em sociedades leigas, abertas.
Deixaram de ser lugares de formação do clero
para contribuírem, não só ao desenvolvimento
científico e tecnológico, mas, a partir dos
anos 60, à formação de movimentos sociais.
Contudo,
admitindo que exista uma crítica
universitária sob forma de doxa, de corpus
estruturado agora em crise, terá ela sido
canônica? Sim e não. Certamente não, se
tomarmos como referência aquela particular
ortodoxia que marcou o panorama
norte-americano comentado acima, onde todo
mundo, ou quase, rezava pela cartilha do New
Criticism. Pode-se, como exercício de
indagação, sem desconsiderar a contribuição
substanciosa de autores ligados à poesia
concreta, querer saber se a adoção do
estágio seguinte do formalismo em cursos de
letras não ampliou seu prestígio, enquanto
realização mais acabada de idéias
construtivistas. Mas hoje há pluralismo
nessa área, ao menos no sentido de serem
muitas as orientações teóricas. O panorama
oferecido por algumas das universidades, ao
menos, não é um deserto criativo. A
propósito, tendo sido convidado, repetidas
vezes, para julgar poesia no concurso
Nascentes, da USP, sempre me dei por
satisfeito com o que li. Nesse e em outros
lugares, existe gente escrevendo sem se
limitar à subliteratura ou aos chavões
indigitados por Waly. E a valorização do
modo cerebral, a frio, de criação poética,
tomando João Cabral e sua defesa da
supressão da emoção como modelo único e
excludente, não é um viés apenas
universitário, porém um componente de um
positivismo que impregna toda a elite
cultural brasileira. Daí autores
excêntricos, delirantes, que fogem ao
paradigma realista, terem sido
sistematicamente postos à margem, conforme,
para ficarmos só na produção em prosa, o que
tem saído ultimamente sobre o reconhecimento
tardio de Rosário Fusco, Murilo Rubião,
Campos de Carvalho, José Alcides Pinto,
Uílcon Pereira etc.
A
propósito, ainda, de abertura, tempos atrás
Ivan Teixeira publicou uma série de artigos
em Cult, resumindo e cotejando teorias
literárias e respectivos métodos. Implícita
na série, uma defesa do pluralismo. No
entanto, a utilização de mais de um quadro
de referências não basta, pela seguinte
razão: estruturalismos, abordagens
sócio-culturais, o que for, são partes que
não se somam, sistemas fechados, antagônicos
em seus fundamentos epistemológicos. Querer
simplesmente juntá-los seria igual a um
psicólogo acender velas ao mesmo tempo a
Freud e ao behaviorismo: não dá, não há como
fazer isso respeitando minimamente sua
integridade. Mais importante é reintroduzir
noções exteriores a esses paradigmas,
arejando-os, a começar por aquelas da
Filosofia (o que remete, novamente, a
trabalhos como os de Benedito Nunes). Também
é urgente, mais ainda aqui, onde primeiro se
estuda Bakthine, para depois, como
exemplificação de seus conceitos, ler
Rabelais e Dostoiewski, examinar o
conhecimento de literatura contido na
criação original, e o testemunho dos
próprios criadores. Nesse sentido, é ótimo
disseminar-se a prática de oficinas e rodas
de leitura em instituições de ensino, desde
o primeiro grau até a pós-graduação. Mas
professores e alunos envolvidos nesses
programas devem esquecer o que já
aprenderam, em uma espécie de zen-budismo
aplicado à leitura, desburocratizando-a para
recuperar uma informalidade inseparável da
sua vivência.
Felizmente, nenhum dessas propostas e
procedimentos é de um ineditismo chocante.
Assim como, remontando ao início desse
texto, não devem surpreender a ninguém os
termos utilizados por Benedito Nunes para
finalizar seu balanço da crítica: No
entanto, crise não é catástrofe. Crise é
incerteza do que fazer agora e do que virá
depois. |
Claudio Willer (Brasil, 1940).
Poeta, ensaísta, tradutor. Um dos
editores da Agulha – Revista de
Cultura. Contato: cjwiller@uol.com.br |
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