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Primeiras
lições de José de Alencar
Ana Maria
Roland
Página
ilustrada com obras da artista Aline Daka (Brasil)
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Não foram as canções de ninar, nem o
repertório de rezas e ditos e
pregões, que se constituíram nas
primeiras fontes da obra literária
de José de Alencar. O escritor
brasileiro forjou-se em chão mais
árduo. As primeiras e decisivas
lições, as que seriam por ele
reconhecidas, estiveram afetas a
outras reminiscências de infância.
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Reservou
lugar primordial ao romanceiro popular
nascido da luta dura contra o deserto
cearense, das cantigas de boi e canções de
pastoreio – os aboios.Foi da escuta das
toadas dos vaqueiros, nos fins de tarde no
sítio do Alagadiço Novo, em Messejana, que
Alencar menino guarda a primeira impressão
da beleza perene. Com estas reminiscências
irá construir a cena tocante da corrida do
Boi Dourado, sucedâneo do mítico Boi Espácio,
em seu último romance, O sertanejo, de 1875.
Haveria outras lições. |
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A
segunda marca a comparecer no seu
projeto literário reúne a literatura
e a política. Por este tempo o
menino seguia os estudos no Colégio
da Instrução Elementar, do Rio de
Janeiro. Alencar reconheceu a valia
da disciplina, desde as primeiras
letras, a dele austera e gravíssima,
para o garoto de nove anos, de quem
se exigia rigor monástico e
desempenho escolar quase à
perfeição. O menino passa a ter um
lugar destacado nos repetidos saraus
familiares do sítio em que vivia a
família do Senador Alencar, seu pai.
Nasceu daí o menino ledor da
família, que lia romances para a mãe
e as tias, nos saraus familiares.
Estes livros eram alguns exemplares
traduzidos, pertencentes à pequena
biblioteca familiar. Lia, repetidas
vezes, os mesmos romances.
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O menino
lia, enquanto as mulheres fiavam ao redor da
mesa de jacarandá. No centro da mesa, um
candeeiro, a lembrar que entre as luzes do
século, a rebaterem tênues na Corte
embelezada, havia esta penumbra, exigindo
muito esforço do menino para cumprir o
destino de tornar-se o futuro romancista e
um político brasileiro. |
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Estavam às vésperas da “revolução
parlamentar” que reconheceu a
maioridade antecipada de Dom Pedro
II. Aqueles saraus se faziam ao
mesmo tempo em que, nos fundos da
casa do Senador, “altos personagens
filiados ao Clube Maiorista”
conspiravam no movimento político
que terminaria vitorioso. A leitura,
em voz alta, de romances, por um
menino tão franzino, feito aprendiz
de aedo diante de auditório
singular, era entrecortada por
comentários das ouvintes sobre
personagens e atos da intriga.
Choros copiosos explodiam, enquanto
os homens definiam os destinos do
reino – conforme o saboroso relato
do escritor, na sua autobiografia
literária. A literatura e a política
uniam-se naquela casa e foram no
escritor duas forças que traçariam o
seu destino.
O
terceiro aprendizado do jovem
Alencar se inicia durante o período
preparatório para a faculdade de
Direito, em São Paulo. Foi para lá
com apenas 13 anos de idade.
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Passou a conviver com parentes e amigos da
família, todos mais velhos que ele, leitores
dos românticos ingleses e franceses. O
garoto tímido exercitou a escuta paciente –
que já conhecia do mestre da Escola, o
severo Januário Mateus. Teve acesso à vasta
biblioteca do amigo Francisco Otaviano e
pôs-se a ler Balzac, na língua original,
debulhando palavra a palavra sobre um
dicionário. Depois leu Dumas, Chateaubriand,
Hugo, Vigny e outros romancistas. Mas não
esqueceu a descoberta do primeiro romance
brasileiro, de 1848, que o encantou, A
moreninha – “gentil romance” - do médico
Joaquim Manuel de Macedo. Os jovens
estudantes fumavam charutos, discutiam e
liam as sombras de Byron. Alencar, o mais
garoto, passou sem nenhuma simpatia pela
mancha negra da melancolia. Já a possuía de
sobra – declarou – e a empregaria na vida e
nos romances.
A literatura de Alencar não teve, não
poderia ter o traço do descompromisso em
face da história. Fez literatura como
missão, tal como o fizeram quase todos os
escritores e poetas românticos, desde
Gonçalves Dias – estes que assentaram um
chão com a língua portuguesa no Brasil, e
criaram figuras e nomes próprios da terra.
Alencar fala com orgulho cerimonioso do
Dicionário da Língua Tupi, do seu
predecessor, o “Senhor Gonçalves Dias” –
reconhecendo-lhe presente no caminho de sua
própria aventura.
Acontecia
também que o projeto que se desenhava, no
Brasil independente, foi, diga-se, sui
generis em toda a América. |
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Uma nação ainda por se instaurar e
uma transição feita com os mesmos
personagens que até ontem figuravam
da existência colonial, que se vão
transformando e mudando as funções.
E a terra, de simples colônia de
exploração passa à colônia de
plantação rentabilíssima,
difundindo-se monoculturas diversas
sob o regime de trabalho escravo, ao
mesmo tempo em que se formava um
patriciado local, poderoso e altivo.
Passa, no ordenamento político, de
vice-reinado colonial à sede da
monarquia portuguesa, a Reino
Independente, a Império brasileiro.
A formulação política e jurídica da
nação brasileira seria projeto de
largo prazo.
Tanto a literatura brasileira,
quanto os lances decisivos do
Primeiro e Segundo Reinado passariam
por esta família Alencar, de
tradição insurgente, forjada na
política em lances dramáticos das
lutas libertárias, como os da
Confederação do Equador. |
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Registre-se ainda a vocação eclesiástica
desse clã cearense de origem pernambucana,
que resultaria em muitos padres católicos. O
espírito missionário estava na alma exaltada
de seus descendentes.
O último
homem nele, a aparecer, tardio, foi o
político – o parlamentar e o polêmico. Mas
como imaginar um destino diverso para um
menino que teve o pai e a avó, Bárbara de
Alencar, presos na Confederação; a velha
matriarca, exilada, reaparecendo depois em
paradeiro misterioso, numa fazenda em
Fronteiras, pelos confins do Piauí, lugar em
que veio a falecer… É muito enredo para um
só romancista – que necessitou do fôlego de
algumas mil páginas para ocupar-se com as
incríveis aventuras das minas de prata. Este
foi o espanto de Afrânio Coutinho, ao
coordenar a edição das obras completas do
romancista. Alencar viveu 48 anos,
alternando-se quando jovem bacharel em
Direito, entre o jornalismo, a literatura de
folhetim, o teatro. Depois, sem deixar a
literatura e o jornalismo, dedicou-se ao
parlamento, duas vezes Deputado pela
Província do Ceará, e à gestão ministerial,
na pasta da Justiça. Ainda que sob o peso
desta divisão, escreveu mais de cinco mil
páginas conhecidas, e pesando-lhe ainda a
sombra ameaçadora a lhe espiar, “a mão
descarnada” da moléstia.
Haveria a destacar por último, na escritura
alencariana, outra presença importante,
preciosa por muito arcaica, que aparece não
tanto nos temas, e sim no espírito e na
construção narrativa, que subverte
sistematicamente as leis da verossimilhança
interna de seus romances. Refiro-me à
transmissão que recebeu dos contos de fadas
e histórias de aventuras, que migraram para
seus romances e estão presentes em diversos
deles, na aura, no gênero, além do
repertório temático e de motivos. Já no seu
primeiro breve exercício novelesco, Cinco
minutos, aparece um mote, um topo dessa
herança imemorial, que é o da transformação
de personagens femininas pelo “beijo
milagroso”. Exemplos de motivos oriundos dos
contos de fadas são pródigos em Alencar.
Também daí desse manancial é aquele da busca
da menina-mulher amada, pelo objeto perdido
que lhe pertence - a mesma metonímia
fetichista do conto de Cinderela. Um
minúsculo sapato-bibelô a revelaria ao
enamorado, no caso um debochado dândi
carioca, um “leão da moda” da Corte do Rio
de Janeiro, em A pata da Gazela. Neste filão
vêm histórias de aventura, das mais antigas
tradições orais, que as modernas literaturas
escritas aproveitaram e aproveitam, estas
antiqüíssimas narrativas que têm quase
sempre origem no antigo Oriente, desde
Sherazaade. E tem ainda as impossíveis
façanhas de Peri a Arnaldo, a deixar o
“auditório” em suspense, jogando com o medo
que faz na infância a aventura se travestir
em pedagogia. |
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É
bastante fútil dizer-se de um
escritor, que navegou em diversas
tradições lingüísticas, que
limitou-se a seguir este ou aquele
romancista moderno que o precedeu. O
Guarani, atravessado pela lenda de
Tamandaré, abarcando um trecho épico
da colonização portuguesa, no plano
histórico, é principalmente um
espetacular romance de aventuras, no
plano narrativo e no plano
discursivo da história. Permanece
lenda e aventura ainda quando traz à
luz o fundamento histórico, as lutas
entre conquistadores portugueses e
toda sorte de aventureiros, e os
índios que habitavam a região da
Serra dos Órgãos, ao interior do
litoral fluminense. |
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Não
espanta que romance tão bem urdido se fosse
transmitir e impregnar a cultura brasileira,
ao longo de mais de 150 anos. Publicado em
folhetim no Diário de Noticias do Rio de
Janeiro, os exemplares do jornal eram a cada
capítulo disputados, lidos em grupo “até em
pontos de bonde”, na fria garoa paulista –
dão conta relatos da época. Não surpreende
que a verve popular deste folhetim assentado
em projeto literário consistente - um
horizonte ao reconhecimento para a língua e
a nação ainda informe - tenha sido recebida
com tanto entusiasmo e se feito ademais
decisivo na constituição do público leitor
no Brasil – como já foi analisado pela
crítica.
Mas o recuo alencariano à lenda e à fábula,
para desenvolver argumentos históricos,
feito em O guarani, daria por fim o fruto
mais original – e para este seria necessário
espaço mais largo para falar. Trata-se de
Iracema, a heroína indígena que cumpre ainda
sua vocação popular, em todo o Brasil.
Nascida no ano de 1865 mereceu o subtítulo
de Lenda do Ceará. Era sua obra mais
acalentada, criada na plenitude de sua
experiência estética e política. Não se
disse o suficiente da beleza do seu estilo e
da função histórica que coube a este livro
na cultura brasileira, nele convergindo
individualidade do estilo com a desejada
nacionalidade da língua literária; da sua
presença na reorientação do campo estético e
político nacional.
O toque de gênio do Alencar poeta, qual foi?
Realiza o milagre da poesia e da comunhão do
corpo e da alma: em Iracema, repõe com
poesia o vazio de palavras da cena
originária de um povo, seja a colonização
brasileira, fazendo-se pintor desta cena e
cantor de seus heróis. Recria com a língua o
território brasileiro, os objetos e
utensílios da cultura com as palavras
indígenas ágrafas, que já nomeavam lugares e
objetos sem que muitos dos contemporâneos,
como os de hoje, se dessem conta destes
nomes e sons. E o faz como que revestindo o
chão, iluminando-o de palavras eufônicas e
formas verbais delicadas, ensinando
travessias a partir da lenda, pela via da
epopéia moderna - que é a forma romanesca,
como a reconheceu Lúkacs.
Como um rei ou patriarca, ainda prepara o
primeiro elo da sucessão genealógica, de sua
obra, com o nascimento do nomeado Moacir, o
filho do sofrimento, que ganha ainda outro
epíteto, o primeiro cearense – no plano
histórico, o primeiro mestiço brasileiro.
Nesta cena condensada podemos, nós todos,
até hoje nos reconhecer. A criação do
romance e a formação do povo brasileiro
podem incluir o sacrifício de escrever no
deserto a epopéia moderna de uma língua
antiga, trazendo à luz o sacrifício dos
primeiros donos da terra. Feita pela via
fabular, a lenda, esta forma da sabedoria
que ensina a dor com um acalanto. Unindo na
lenda o que a história apartou – conforme
escreveu comovido Machado de Assis.
Alencar vai além, no estabelecimento da
“pátria da liberdade”, como designava o
continente Americano. Que alegria
suplementar tem ainda, entre os brasis, um
cearense de lei, em descobrir no cenário da
lenda os significantes e a beleza da
toponímia que faz parte de seus próprios
roteiros diários? Mecejana (com c), Mocoripe,
Maranguape, Parangaba, Meruoca, Baturité,
Aracati, Aratanha, Camocim… Nunca mais nos
perderíamos de forma irremediável. |
Ana Maria Roland (Brasil, 1949). Doutora
em Sociologia pela Universidade de
Brasília/Faculdade Latino-Americana de
Ciências Sociais. Publicou Fronteiras da
palavra, fronteiras da história (1997),
vencedor do Prêmio Tribuna Americana-Aula
Simon Bolívar, da Casa de América, Madri,
1996. Pesquisadora no Observatório das
Nacionalidades (Universidade Federal do
Ceará), membro da comissão editorial da
Revista Tensões Mundiais. Contato:
anamariaroland@uol.com.br. |
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