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As crônicas eventuais
Nicolau Saião
Página ilustrada com obras da
artista Aline Daka (Brasil) |
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1. AMÉRICA
DE LUZES E SOMBRAS
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Para nós,
amantes da Literatura Policial, a América
tem sido o país das mil-e-uma-noites: nela
brotaram flores de mistério e de
maravilhoso, de mágoa e de tragédia através
dos dias e dos anos, plantadas por
escritores e visionários como Edgar Alan Poe,
H. P. Lovecraft, Dashiel Hammett, August
Derleth, Raymond Chandler, Charles Williams,
William Faulkner, Melville Davison Post e
tantos outros.
A América atravessámo-la nós com os
vagabundos de Frank Gruber, com os “road
runners” de W. R. Burnett. Contemplámos as
vertentes do Ohio e os arranha-céus de Nova
Iorque e Chicago até às montanhas do
Colorado e aos desertos do Arizona e do Novo
Máxico com Bill Ballinger, Hammond Hines,
Burt Spicer e Jim Thompson. Excursionámos
pelas vilórias e pelas pequenas cidades do
Midlle West com Ellery Queen e Ray Bradbury,
perdêmo-nos nas alfurjas dos portos e nos
“fumoirs” de Chinatown e da Bowery com Craig
Rice, Thomas Burke e um certo chinês
filósofo de bigode a quem chamavam Charlie
Chan e que estava ali de passagem vindo da
sua ensolarada Honolulu.
Numa certa noite de neve, sob a lua da
Carolina do Norte, ouvimos tiros na estrada
deserta por onde minutos antes haviam
passado Bruce Robinson e Jonatham Latimer,
que nos esclareceram o enredo.
Amámos e padecemos em quartos e em caves, de
mãos atadas atrás das costas pelos
“gangsters” de serviço. E fomos salvos “in
extremis”, com o fato rasgado e o nariz
deitado abaixo, por um tal Mickey Spillane e
pelo seu amigo dilecto Mike Hammer. A
iluminação brotou-nos da mente num momento
de sagacidade perpetrada por um fulano que
atendia pelo nome de Philip Marlowe. E foi
homem a homem que derrotámos o mafioso
crápula pseudo político que nos envinagrava
o quotidiano, devido aos sábios ensinamentos
dum tipo chamado Continental Op, em
escaramuça devastadora numa viela do Bronx.
De manhãzinha, com o nosso elegante fato
cinzento de discreta risca azulada, entrámos
num palacete onde um ancião atormentado pela
nostalgia nos pediu auxílio para encontrar o
genro e fomos catrapiscados por uma “mulher
fatal” que nos lançou na senda da aventura.
De outra vez, acompanhando um sofisticado
cavalheiro conhecedor de arte assíria e
etrusca que nos disse chamar-se Philo Vance,
tivemos a dita de nos introduzirmos nos
ricos salões de Nova Inglaterra e de
Manhattan e, em troca, de juntura com um tal
Humphrey Bogart, levámo-lo até aos confins
do Colorado, até à High Sierra, e aprendêmos
a beber uns valentes “bourbons” sem ficarmos
caídos de caixão à cova.
Com um jurista desembaraçado que nos disse
apelidar-se Perry Mason, jornadeámos pelas
artérias de Los Angeles e pelos desertos da
Califórnia em busca de assassinos nefandos.
Ouvimos muitas vezes o bramir dos ventos,
sentimos na pele o negrume das noites e a
chicotada da chuva inclemente, enquanto –
dissimulados a uma esquina, com a gola da
clássica gabardina levantada – esperávamos a
chegada dum companheiro empregado na mesma
agência que se chamava Caution, Lemmy
Caution e que era pai dum tal James Bond.
Tudo isto sentímos nessa América onde havia
e há problemas e conflitos não resolvidos,
mas onde também sempre houve esperança e
alegria devido a umas coisinhas simples, mas
espantosamente importantes, que dão pelo
nome de liberdade de palavra, de reunião, de
pensamento e da sua divulgação não obrigada
a mote, como sucede hoje em muitos sítios
supostamente civilizados.
E, agora que se tornou moda ou
característica pôr-se sistematicamente em
equação essa América (toda a América?!) como
símbolo do mal e da desgraça -
principalmente para se sentir melhor a
nostalgia dum Leste implodido e de novos
bárbaros a quem se santifica como mártires -
lembremo-nos de todos os mosaicos
intemporais que ela criou através de membros
humildes ou repletos de cultura viva que,
hoje por hoje e amanhã por amanhã, se calhar
só serão epigrafados e em altas vozes se, de
novo, tiverem de dar a vida para
continuarmos a disfrutar de um pouco de
futuro possível.
2. IRENE, JOLMAR &
COMPANHIA
Têm-se tornado quase gente do meu lidar
estes e outros que, decerto pelos melhores
motivos, procuram nobremente beneficiar-me
das mais diversas maneiras…
Neste tempo de movimentos caracoleantes na
“silly season” de fogos que nos perturbam ou
empolgam e de outras amenidades semelhantes,
os nomes que cito – e que chegam até mim
interactivamente pela Net em e-mails não
solicitados – divertem-me e até me
confortam, pois sou pessoa muito agradecida
a este acervo de gente que, não me
conhecendo, busca contudo fazer de mim um
homem de quotidiano feliz e, presumo, de
mais agradável perfil social.
Este Jolmar, que é certamente um médico
prodigioso, mediante sucessivas mensagens
alerta-me para o facto de que posso aumentar
a tonelagem de certo órgão de que disponho
para diferentes utilizações
anatómico-fisiológicas, qual delas a mais
agradável ou aliviante. E isto sem me ter
observado in loco, o que diz bem da sua
competência profissional, maior no entanto
que o seu grau de previsão e conhecimento.
Propõe-se também fornecer-me, por um preço
muito em conta, pequenos utensílios muito
úteis em épocas de superpovoamento. De
passagem, caso não esteja interessado nesse
funcional produto, negociará comigo, em
moldes extremamente vantajosos, fotos de mui
gratificante recorte confeccionadas nos
entrepostos adequados do multirracial
Brasil.
Irene - por seu turno - que deve ser uma
jovem sincera e ternurenta a atender ao que
reza na sua espevitada publicidade -
propõe-se ajudar-me a passar noites
produtivas dum certo ponto de vista em
Copacabana e, se necessário, em Belo
Horizonte – e sem sequer precisar de sair do
quarto e sem ter de estar a jogar primeiro à
bisca ou ao dominó.
Não é isto dum desvelo perfeitamente
comovedor?
E que dizer dos potenciais fornecedores de
automóveis topo de gama ao preço da uva
mijona, dos agentes de fenomenais casinos
onde tudo é possível, dos especialistas
honrados que me tratarão da contabilidade ou
da potencial calvície com toda a competência
e mansuetude? E que até me vão ensinar, se
eu quiser, judo-savate ou karaté com
maviosas aplicações?
E das experts de antigos países de Leste (a
atender aos nomes característicos) que
poderão fazer de mim um felicíssimo
cavalheiro por toda a santa vida, caso eu
aceda em dar-lhes o sim num qualquer
cartório notarial? E o excelente gentleman
que me propõe a aquisição de alguns
portentos de raça cavalar? E o vendedor de
vinhos de boa casta? E o das pulseiras e
colares? E aquela que… Mas basta de
publicidade gratuita, por ora!
Obrigado Irene, obrigado Jolmar! Obrigado a
todos quantos se preocupam assim com a minha
estabilidade terrena, com o meu equilíbrio
psicológico e com o bem-estar do meu
agregado biológico!
Há só um pequeno senão. Que lhes estraga
desde logo o(s) interessante(s) negócio(s).
É que, por questões de cepticismo
incontrolável, sou um péssimo utilizador de
gestos samaritanos de tão poderoso quilate.
E, ainda por cima, o que é bem pior – que
raiva e que desgosto! - o meu erário pessoal
é mais ou menos tão pouco portentoso como o
do nosso bíblico velho amigo Job… |
3. BREVE RELANCE SOBRE A MÚSICA
A música, imagem da alma, como
referiu com propriedade Frederich
Herzfeld, tem sido uma segura
acompanhante do Homem embora só
tardiamente o tivesse sido da
sociedade. Com efeito, se nos
lembrarmos que a primeira escola de
música – ainda estabelecida em
termos muito artesanais – foi criada
em mil e nove por Saint-Gall e que o
primeiro público musical (ou seja,
reunido com o fito de ouvir a música
por si mesma) só começou a existir
no ano de 1725, com a criação por
Philidor dos chamados “concertos
espirituais”, começaremos a perceber
que, como uma âncora profundamente
fixada no mar societário, a música
enquanto fenómeno ou, para dizer
doutra maneira, a música enquanto
entidade criadora de acontecimentos
partilhados por milhares ou por
milhões é um dado relativamente
recente, tanto mais que os meios
técnicos de difusão só neste século
se tornaram uma presença quase
absoluta. |
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Nos dias de
hoje, em que vivemos rodeados de sons e de
timbres organizados de forma lógica (e
relembro que foi somente no séc. XVIII, com
Mozart, que o timbre começou a ser utilizado
de modo significativo e criativo) é-nos
difícil entender quanto a música estava
afastada das grandes massas populares como
fruição habitual e quotidiana. Como refere
apropriadamente Konrad Riemann, para o geral
da população havia, nos dias de semana, as
frases musicais ritmadas ao jeito de
pequenas canções que sublinhavam o trabalho
feito ou a fazer; no domingo era a canção
entoada quando havia festas mas, acima de
tudo, a presença do canto religioso,
frequentemente expresso mediante a monódia
gregoriana.
Antes disso – e a memória mais afastada vai
só até 40 mil anos, documentados no fresco
de Ariège, na gruta dos Três Irmãos em
França – a música seria um sublinhar de
fastos mágicos ou ritos religiosos, pois era
coisa de deuses e de alguns homens que se
haviam subtraído ao seu presumido controle.
A música era apanágio do mago, do sacerdote
ou do monarca, fracção espiritual que
proporcionava um contacto directo com as
divindades e os seus áulicos.
Contudo, no nosso tempo a música espalhou-se
pelo imaginário, dando azo a muitas
figurações sociais, políticas e
psicológicas. Goebbels, por exemplo, com a
sua fina intuição de patifório esclarecido,
conhecia bem o peso que tem, ante os
basbaques, o desfilar dum cortejo precedido
duma poderosa charanga e fez disso um uso
infernalmente manipulador. Também os nossos
meios de comunicação de massas manejam bem
esta matéria: repare-se na forma
psicologicamente bem estudada com que nos
bombardeiam os ouvidos, repetindo até à
saciedade temas de sucesso (as mais das
vezes de pouca qualidade) entoados por
vedetas primárias que eles próprios criam.
Aliás, o consabido ambiente musical dito
ligeiro dispensa-me de maiores comentários.
Seja a música – como alguns pretendem – uma
variante da linguagem ou, como outros
defendem, a abstracção da linguagem levada
às últimas consequências, a verdade é que
constitui um dado incontornável do nosso
tempo. É, em suma, um dos componentes do
grande imaginário actual para além de ser,
nos casos mais exemplares – como por exemplo
em Bach, Mozart ou Schubert – talvez um
sinal com que a “música das esferas” chega
até nós para nos dar testemunho profundo do
rosto secreto da eternidade.
4. OUVE, ISABEL!
Estava eu no norte do país e queria sair da
Cidade em direcção ao Porto sem me enganar
na estrada. Como gosto de olhar para as
coisas, claro que me enganei. Fui dar, sem
má consciência, a Serzedelo.
Fica prá direita, prá esquerda? Sei lá, mas
foi ali que eu deslindei um mistério. Ao
passar por uma rua apertada que precedia um
largo divisei numa parede uma inscrição a
tinta que me chamou a atenção e me informou
utilmente. Dizia: “Amo-te, Isabel!”.
Era então ali que a Isabel morava! Que mora.
A Isabel nortenha dos negros olhos
pestanudosque todos conhecemos.
E eu parece-me que sei, Isabel, quem te
interpelou assim publicamente. Ou eu muito
me engano ou foi aquele rapaz um pouco
calado - sim, o que tem um pé ligeiramente
de lado e o nariz algo torcido - que uma vez
ao passar por ti junto a um café se desviou
logo para tu entrares. Por um momento o
vosso olhar cruzou-se e tu durante dois dias
ficaste a meditar, que o moço apesar do pé e
do nariz tem olhos sensíveis, bons braços de
trabalhador (é empregado num armazém de
pneus) e uma expressão prometedora.
E eu digo-te, Isabel: agarra-o com as duas
mãos. Assalta um casino, um comboio correio.
Ou vende as arrecadas que os parentes te
deram. Paga a operação ao moço, que ele
merece. E até pode ser que gostes do pé de
lado. E do nariz torcido. E diz-lhe que
leste a mensagem. Um tipo capaz de arriscar
assim a reputação publicamente não pode
deixar de ser um sujeito de carácter. E
gostar de ti deveras.
Dá-te pressa. Põe sebo nas canelas - que
tens bem harmoniosas e roliças.
Aproveita, que coisas destas não aparecem
duas vezes numa eternidade! |
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5. NA MANHÃ CLARA E QUENTE
Não é soturna mas misteriosa. Um
antigo lagar. Todos os dias a vejo,
aquela casa casarão agora
abandonada. Só frequentada, agora,
por pombos. Segundo andar e sótão a
toda a largura do edifício. E
janelas, janelas de arcada, janelas
em ogiva, janelas largas em sacada
por onde se faziam subir as
saquiladas de azeitona nos tempos da
minha infância e adolescência. Todos
os dias a vejo – que fica mesmo em
frente do Museu aonde estacionava
profissionalmente e onde todos os
dias passo. Que todos os dias
recordo.
Todos os dias? Todas as horas, que
da janela do meu gabinete o via e
hoje catrapisco na memória sem ser
sequer preciso virar os olhos dentro
da cabeça. |
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Casarão à
maneira do Lovecraft, que se ele o pisgasse
logo o meteria em estória de espantações.
Agora, deserto de presenças humanas, já com
algumas vidraças partidas, é a guarida dos
pombos, dos pombos que como dantes lhe andam
sempre em volta (são dum columbófilo
encartado, desses que fazem largadas de
Oviedo, Sevilha, Vila Nova de Poiares, o
mundo…) sem ousarem entrar. Netos -
bisnetos, quero eu dizer - dos que por aqui
esvoaçavam quando eu era tão-só um puto.
Lançavam-se papagaios: feitos de papel de
seda – azul, vermelha, amarela, duravam
pouco mais que um dia mas prolongavam-se
pelo tempo. E passavam as mulheres da
queijaria, a soldadesca e os pedreiros,
gente de cara seca e braços encordoados e
alguns ficavam a olhar por um momento antes
de irem abancar na taberna do sr. Abreu,
taberna assim a modos que fina onde os
manejadores do maço e das pachadas de
cimento entravam com unção de quem entra já
não digo num templo mas pelo menos numa
sacristia. Os odores das iscas cozinhadas à
maneira, o belo carapau de escabeche que
nunca mais senti como presença de sedutoras
iguarias, o moço de lábio leporino que
levava as travessas carregadas de copos e de
terrinas substanciais… E o senhor
primeiro-sargento Cabanas (o que mais tarde
me ensinou a esgrimir) que depois do toque à
ordem ia buscar o jantar p’ra ele e sua
senhora, acompanhado pelo impedido pacholas,
soldadinho raso das bandas de Montargil que
lhe transportava os comeres.
E o fiscal de isqueiros, funcionário da
repartição de Finanças a quem se atribuíam
também suspeitosos outros mesteres e que
afinal, depois da bernarda abrilina, se
revelou velho militante do partidão e
distribuidor, pela calada da noite, de
corajosas papeladas subversivas. E a dona
Virgínia, cordial vizinha e esposa do senhor
Casaca, que fazia brinquedos de madeira –
camionetas coloridas, rocas e piões a granel
e palhaços que davam cambalhotas suspensos
numa barra de arame grosso. E os altares de
S. João donde escorria e onde cantava a água
numa ribeirinha de cenário, e a menina Maria
que foi mestra de gaiatos toda a vida, e o
polícia senhor Laranjo que era da terra da
minha mãe e por isso eu não temia porque me
dava ervilhanas e, já quase na reforma, um
dia teve de me ir deter com um colega também
das minhas relações, por mando do governador
civil porque eu agia demais no velho Clube
de Futebol do Alentejo e estava dado como
perigoso oposicionista.
Os pombos. Dizia eu – os pombos. Parentes
dos que todas as manhãs me acordam, pois
vivem no rebordo da marquise por cima da
janela do meu quarto, abandonados que foram
por um cidadão columbófilo com demasiado
apego a Baco e que por isso, flechado na
figadeira, lá foi ter com o comandante dos
olimpos romanos antes de tempo.
Pombos, pombinhos? Dum suave arrulhar para
quem é um dorminhoco convicto. E lá no velho
lagar, que eu bem a vi quando uma vez não me
contive e espreitei pelo arrombado duma
porta, há uma poeira muito fina no ar de
outrora iluminada brevemente por raios de
sol que lhe cruzam a penumbra mais
consistente e onde o silencio para quase
todas as horas se condensa e vai perdendo no
tempo vivo.
6. COMO UM TAMBOR
AO LONGE
Bate e palpita e não é um mar nem um tropel
de pernas e braços que sobre um relvado arfa
e se descompõe. Nem a revoada de palmas numa
sala comicieira de gândulos esfaimados por
prebendas, por coisas de muito mandar. Bate:
quente, arfante, solitário, nítido como uma
voz que reboa na manhã em que ainda se sente
o sussurro da madrugada. Bate como um punho
numa porta cerrada e depois aberta para o
afago, o grito, o absoluto permanecer. Não é
um bater de espingarda que se dispara, de
aparelho (um piano, um frigorífico, uma mala
enorme) que tomba num chão e faz um
estardalhaço infernal. Nem um tum tum tum de
maquineta enlouquecida.
No calor e no frio das terras e dos tempos,
no afastado de salas e de quartos onde os
mistérios se interpenetram como corpos de
amantes, como corpos de amantes que ao
mistério se dão, como um balão que rebenta
mas de mansinho, na noite de muito possuir e
na manhã de magia, ele efectua o seu ruído
difuso, único, solar.
É um pássaro, um super-homem, uma nave que
ultrapassa a barreira do som com um
estampido?
Ou é soco violento numa mesa, muitos socos
violentos sobre uma mesa, um rosto, uma
situação?
Não é nem ronronar de máquina de navio, nem
grasnar rouco de motor de avião, nem
estrépito de cavalos no empedrado de uma
calçada antiga.
Com efeito, esse toque toque toque, esse
pulsar incógnito mas reconhecível, humilde
mas fragoroso no interior do seu silêncio,
reboante nas horas de que não há nem
notícias nem mapas, esse pequeno ruído como
o de um tambor ao longe é apenas, tão-só,
simplesmente - o de um humano e apaixonado
coração. |
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7. AS FRAUDES LITERÁRIAS [a]
Neste caso teatro de sombras, de
silhuetas difusas, de hipóteses… De
coisas muito reais deliberadamente
colocadas sob o signo da aparente
brincadeira que afinal tem a ver com
os equívocos da literatura e das
ainda mais equívocas circunstâncias
circenses que por vezes lhe andam em
torno.
Mas eu explico-me já.
De há uns tempos a esta parte,
principalmente depois de haver sido
“caçada” uma conhecida e talentosa
plagiadora, tem sido razoavelmente
falada no milieu nacional a questão
das fraudes literárias. Das quais
duas - se lhes podemos chamar
fraudes - ficaram famosas no século
que há 8 anos se finou. Refiro-me,
como os de melhor memória terão já
percebido, aos affaires de “A caça
espiritual” (Rimbaud) e de “Gros
Calin” – O lambe-botas, (Romain Gary/Emile
Ajar). |
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Já vamos
dar-lhes uma rápida olhadela. Mas importará,
em jeito de leve rol, referir que as
chamadas fraudes se dividem em vários
grupos, a saber: o plágio puro e simples
(que tem sido o mais praticado muros
adentro); o livro escrito com questionável
qualidade mas valorizado por um “nome” de
prestígio já a fazer tijolo; o livro de
qualidade que todavia o autor nunca
escreveu; o livro de qualidade, de facto
escrito por um autor de renome mas atribuído
a um desconhecido e que antes de ser
premiadíssimo vários editores espertalhaços
não agarraram com as quatro mãos. Ainda,
numa estância subsidiária, o livro que
simplesmente não existe (apenas composto por
maravilhosos fragmentos bem artilhados) e o
livro convincente mas criado de cabo a rabo
com o único intuito de mostrar os limites do
que se conhece sobre uma personalidade
histórica ( e há alguns bastante célebres:
sobre Napoleão, Rasputine, Erskine Caldwell…).
Falemos no caso do falso Rimbaud.
Certo dia, os eruditos académicos Maurice
Saillet e Pascal Pia (que já havia editado
falsos Baudelaires, Pierre Louys e
Apollinaires…) disseram ao mundo que o
arquifamoso e perdido “A caça espiritual”
estava nas suas mãos. Começara a grande
tourada…
Imediatamente desmascarado como falso por
André Breton, que se baseara apenas no
conhecimento interior da obra rimbaldiana, a
titarada arrastou pelos bas-fonds da
ignorância, da jactância, da sobranceria
académica e da tolice literata muitos dos
“trutas” das letras francesas mais armados
em arco. Afinal, a deliciosa brincadeira
fora pensada e executada por dois
actores/estudantes que tinham resolvido dar
uma lição aos emproados.
Curiosamente, diz-nos um comentador do caso
que apesar das evidentes provas dadas de
caducidade mental e societária, os génios da
crítica em causa continuaram a dispor de
respeitabilidade, ainda que a sua
credibilidade tivesse ficado muito abalada
nos meios menos atoleimados.
Ou seja: o que por vezes parece contar (e
por cá há maviosos exemplos) não é de facto
nem o talento nem a seriedade estudiosa mas
a classe de poder onde os pássaros bisnaus
se incrustam.
8. AS FRAUDES
LITERÁRIAS [b]
Em 1973 a editora “Gallimard” recebeu um
inédito intitulado “Gros câlin” ( O
lambe-botas), relato prenhe de sustância,
força, pundonor e novidade de escrita.
Intimidada, porque o texto era de facto
inovador e ia contra a corrente dos romances
que a época e as vendas em montra
festejavam, a publicação foi recusada.
Dias mais tarde é o “Mercure de France” que
recebe o dactiloscrito. A sua responsável,
Simone também de apelido Gallimard, pesados
os prós e contras dá-o a lume. Olhado a
princípio com certa incomodidade pela
crítica, a pouco e pouco a obra impõe-se.
Começa a sua marcha triunfal e é proposta
para o prémio Renaudot. O nome do seu autor,
Emile Ajar, por ser desconhecido começa a
suspeitar-se que cobre um autor de gabarito:
para uns, Raymond Queneau; para outros,
Louis Aragon. E outros mais…
Mas um dia, o dia do lançamento de um volume
depois célebre, “La vie devant soi”, o
mistério descripta-se: o seu autor Emile
Ajar era o nome com que Paul Pavlovitch, o
sobrinho do já galardoado e consagrado
escritor Romain Gary (autor, por exemplo, de
“Racines du ciel”, “La promesse de l'aube”
de “Lady L”) dera a lume o livro que, logo a
seguir, receberia o prémio Goncourt,
venderia mais de um milhão de cópias e seria
traduzido em 23 línguas…
Paul Pavlovitch torna-se uma coqueluche do
“tout Paris”: repórteres seguem-no de Monte
Carlo até à Côte d'Azur, é visto nas festas
e nos bares de luxo em companhia de
belíssimas actrizes e meninas finas do “demi-monde”.
Um lindo e saudável forrobodó que não
desagradaria, suponho, a se calhar mais de
metade dos austeros romancistas lusos…
No princípio de 79 outro livro de Ajar vem à
luz: o belíssimo “L'angoisse du roi Salomon”,
novo êxito de criar bicho. E é então que em
Março outro escrito da autoria de Romain
Gary, “Vie e mort d'Emile Ajar” revela o
imbróglio: os livros eram produto da sua
pena, o sobrinho fôra apenas o actor
escolhido para esta partida aos literatos –
partida tanto mais gostosa se nos lembrarmos
que o Goncourt não se pode atribuir/receber
duas vezes…
Ou seja: então como resolver a bambochata? E
os gabirús da literatice desesperavam!
Na sequência deste seu último livro, pois
logo a seguir, profundamente ferido pela
morte de sua mulher e amada, a célebre
actriz Jean Seberg, Gary suicidava-se -
deixara um bilhetinho irónico colado na
testa: “Diverti-me a valer! Até à vista e
obrigado…”.
Sem ser só por isto - mas também por isto,
por esta manifestação de excelente senso de
humor e de alto talento que a passagem dos
anos não crestou - sugerimos vivamente, a
quem porventura os não conheça, a leitura
dos livros de Romain Gary. É um dos que, a
par de Marcel Scipion, Jean Husson, Philip
Claudel e Jacques Borel (ou seja, dos
chamados “descentrados” das letras gaulesas)
valem muito a pena ser lidos – com os olhos,
com as orelhas, com a ponta da alma.
E com um leve risinho absolutamente
colorido… |
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9. CHARLOT E OS JOGOS DO ESPELHO
Podemos questionar-nos: Charlot
seria Chaplin ao espelho? Pergunta
talvez ociosa, mas que não deixa de
ser pertinente. Quase diria com
humor: para ser Charlot, a Chaplin
só lhe faltava o bigodinho.
Senão, vejamos: a vida de Chaplin
foi exemplar do ponto de vista de um
ser humano que forcejava por se
enquadrar numa sociedade que sem
cessar fazia esforços para o
remeter, com o clássico pontapé no
traseiro das suas comédias, para
lugares inabordáveis.
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Recordemos, ao calhar, os episódios
Lita Grey, [1] a tentativa de darem
o nosso homem como comunista por ter
vendido bónus de guerra (Chaplin
comunista é de facto demasiado
forte), a censura que lhe faziam em
Inglaterra por ter abandonado mais
ou menos aquele rincão onde
oficiavam os comediantes, esses sim
verdadeiros comediantes, no género
de Lord Chippendale ou Neville
Chamberlain…
Por
isso é que hoje se nota sem
precisarmos de lupa – basta-nos a
perspectiva do tempo, esse supremo
crítico como lhe chamou André Gide –
que o riso de Charlot, mesmo o dos
seus primeiros momentos que a alguns
distraídos pareceram simples
vaudeville, é o que fica a qualquer
um depois de uma grande e pura
tristeza. Pierre Hourcade, que um
dia se forçou a debruçar-se sobre os
mecanismos do humor, como personagem
grada que era e por isso vagamente
cómica (ia quase a dizer gravemente
cómica) tinha dessa matéria uma
ideia que, com maldade,
classificarei de “perspectiva de
proprietário”. Mais ou menos na
altura em que Chaplin nos dava o seu
“Monsieur Verdoux”, referia aquele
académico que o verdadeiro humor é
sempre amável ou alegre, ou seja
dito de outro modo: excelente
pitança para pessoas sérias e
decentes que gostam de amenizar os
seus dias.
Bem melhor andou Wenceslau Fernandez
Flores ao referir que “o humorista é
um descontente que se ri da
Sociedade em vez de a ferir” – o que
remete Chaplin para o lugar que é
efectivamente o seu: um homem
belamente encolerizado com os
disparates do mundo, como diria
Chesterton, ao qual foi imposto, por
inerência de talento (ou, se
preferirem, génio) um caminho
traçado entre os pardieiros de
Londres e, finalmente, as ruas da
imensa metrópole americana. E que
ele soube transfigurar e tornar
perene.
Ainda hoje se ri a bom rir durante a
projecção de “Os ociosos”, de “A
quimera do ouro”, de “As luzes da
cidade”, de “Tempos modernos”. Já
não estou tão seguro que o mesmo
suceda ao vermos “O grande ditador”,
ou “Um rei em Nova Iorque”, ou
“Monsieur Verdoux”, ou “A condessa
de Hong-Kong”. Por esta razão muito
simples: hoje sabemos à nossa custa
que as gargalhadas podem gelar na
garganta e que, no fundo, o que
Chaplin encenava eram não comédias
mas tragédias e que o riso só lá
estava para sublinhar uma evidência
já posta em equação por Lautréamont:
“Ride, mas chorai ao mesmo tempo. Se
não puderdes chorar pelos olhos,
chorai pela boca ou por qualquer
outro lado. Sejam lágrimas, seja
mijo, seja sangue, tanto faz. Mas
advirto que um líquido qualquer é
aqui indispensável”.
Dizia Brassai, conversando com
Malraux e Picasso, que de cada vez
que via nas actualidades Mussolini a
discursar, tinha a impressão que por
detrás lhe estava sempre alguém a
dar pontapés no posterior. Mas
Mussolini era um patifório um pouco
risível, apesar dos desmandos que
praticou na pátria de Leopardi.
Quanto a Hitler o caso era
diferente: sinistro sem
contemplações de picardia toscana,
era de facto um canalha de alto
coturno, um verdadeiro criminoso e
um ente que, com a sua simples
aparição, espalhava a inquietação à
sua volta como nos conta Trevor
Roper citado por Jean-Marie Domenach.
Será então de espantar que hoje nos
apareça muito mais ridículo e
verdadeiramente objecto de maior
riso ferino? Porque o que admira – o
que assim torna a regra mais
sensível e com maior relevo – é como
é que um patife daquele calibre que
de facto era não mais que um ser
perturbado, pôde ser tido como
profeta e condutor de povos.
Porque, efectivamente, o riso
profundo, verdadeiro, que dói e
liberta mesmo à custa de um arranco
interior, tem sempre como alvo o
fundamental e nunca o acessório.
Pois os ditadores, mesmo disfarçados
de gente quotidiana, são sempre um
pouco como as figuras dos baralhos
de cartas: metade do corpo para cima
e a outra metade para baixo, como se
estivessem cortados a meio por um
espelho que os anos articulam
apropriadamente.
Chaplin e Charlot funcionavam noutra
base, estavam de corpo inteiro nesta
história de imagens devolvidas por
um vidro encantado. Agiam noutro
plano, que é o da realidade criada
depois de se ter atravessado o
deserto da estupidez e da
mediocridade habilmente forjada por
um quotidiano que se auto-designa
como responsável e respeitável. À
sua maneira contundente, para além
de tudo o mais, Chaplin
demonstrou-nos e continua a
demonstrar-nos esta coisa pacífica e
intuitiva: que o riso, tal como os
raios da manhã, são o mais eficaz
elixir contra a monstruosidade
codificada e que, contra ele, os
ditadores e os bandidos fardados
ficam em petição de miséria – até
porque acabam por finalmente
compreender que o riso é o
verdadeiro precursor daquilo que nas
fitas vem efectivamente em sequência
e que é a finura de uma estaca
plantada em pleno coração do
fantasma.
NOTA
1. Lita Grey, actriz vulgar mas
muito bela, foi casada com Chaplin.
Instruída por sua mãe, mulher ávida
e cruel, apresentou queixa contra
ele com o pretexto de que este
quereria praticar no leito conjugal
actos eróticos que saíam do habitual
– ou seja fellatio, cunnilingus e
sodomia – que em certos estados dos
EUA são punidos com pesadas penas de
prisão. Entre pessoas casadas,
repare-se, nomeadamente por qualquer
uma das diversas igrejas existentes
e sem que haja violência ou
constrangimento moral pelo meio!
10. O QUE
SERÁ FEITO DE O.W.FISCHER?
Em conversa de cá para lá com um
confrade brasileiro, veio à baila
Axel Munthe. O autor de “Homens e
bichos” e “O livro de San Michele”,
essas obras-primas da nossa boa
lembrança.
Incitei o meu compadre do outro lado
do Atlântico a apanhá-los com
velocidade e a lê-los mesmo pela
noite dentro (como se fôsse
necessário sugerir…). E vem-me à
memória o Munthe do cinema, o grande
actor O. W. Fischer que com Rossana
Schiaffino nos deu um “San Michele”
que nos colava à cadeira do
“Crisfal” da minha década dos anos
60.
Moderno, espertalhão, interactivo,
vou procurar Fischer nas ruas da Net.
E sei que bateu os engaços, como se
diz por aqui, em Janeiro de 2004 .
Com 88. Bela idade. Na última foto,
ainda com a boquilha cigarral entre
os lábios.
Tenho de me deixar destas pesquisas.
Prefiro ficar mal informado, sem
estas sabedorias descoroçoantes.
Senão qualquer dia, distraindo-me e
do outro lado do espelho, ainda vou
saber que já fui para os anjinhos…
11. SOBRE
TRAVANCA REGO, A UM LUSTRO DO SEU
FALECIMENTO [a]
Encontrei-me com J.O.Travanca-Rego,
pela primeira vez, no decorrer da
inauguração duma exposição colectiva
de obras de alguns pintores
alentejanos – uns vivos, outros já
falecidos – que organizei em
Portalegre com o apoio do sector
cultural dessa época do município
desta cidade.
Já de há certo tempo nos
carteávamos. Quem nos pôs em
contacto foi o José do Carmo
Francisco, que aliás me mandara
poemas dele para um suplemento
elvense que então orientava, o
“Miradouro” do defunto Notícias de
Elvas.
Assim que lhe li os versos de
imediato me dei conta que não estava
ali uma voz de vulgar amenidade. O
mesmo que senti quando pela vida
fora tenho estado a contas com
outros autores que muito estimo: ele
sabia o que dizia, quando o dizia e
como o dizia. Não era (não é) e
creio que não será por muitos anos e
bons, um autor de lugares simétricos
carreados por um talento urbano e
suave. Em Travanca-Rego há o
espanto, a garra, o meditar de
muitos mistérios que na poesia e
pela poesia se consubstanciam. E, no
entanto, existe paralelamente uma
harmonia que nos seus momentos mais
altos nos comunica a certeza de que
no seu discurso, na sua linguagem,
tudo faz o verdadeiro sentido e é
dotado de um padrão interior votado
à permanência no tempo.
“A pena valerá que mais palavras/
suportem a voz nua a (des)dizer-se/
como selámos todos – enigmáticos - /
uma dúvida perante o indizível?”
diz-nos ele nos versos iniciais de
“Comunicação”, o terceiro poema do
seu “Sinais: 15 poemas de sideração
e saudade”.
Siderado e saudoso do que não sabe
definitivamente, me parece ter sido
o tónus poético deste autor.
Interrogativo e em certos casos
crepuscular, em Travanca-Rego há
como em muitos outros – mas nele com
a acuidade dolorosa que o seu
passamento veio confirmar – uma
amargura filha dum espanto e duma
melancolia abertos à procura,
contudo, de novos ritmos e da
maneira de dizer mais exacta, mais
real e adequada aos diversos
momentos daquilo que se sente e por
isso se descreve. Descrição,
comunicação… No fundo, doação de
descobertas, de universos que se
encontram no percurso que mal ou bem
o poeta efectua quotidianamente a
despeito das suas mágoas e das suas
alegrias, ou para dizer doutra
forma: os poemas que encontram a sua
existência nessa escrita que se
fornece a todos para que a leiam e
assim revelem o mundo - que em todos
vive, mas que o poeta encarnou.
Diz ele em “Ilha”, arrolado em
“Cinco Incisões”: “Deixa-me contar o
tempo/ pelos nós dos dedos. Nesta
ilha,/ nem estrelas nem uma
árvore!”. Mas o poeta efectua a
religação mediante os poemas, as
palavras que articula ainda que algo
o destroce ou, melhor, tente
destroçar-lhe o sentido do que cria.
Travanca-Rego, sendo um autor de
clara vocação lunar, nocturna e
aforística, não se compraz nesse
mergulho, não se recreia na
convulsão: o que ele tenta é
efectivamente encontrar uma medida
para que esse caos seja reordenado e
se extinga como tal, passando para o
lado solar das propostas de vida
plenamente erguida: “Grão de trigo,/
feitio de um ventre:/ Um planeta/ te
habita?”, pergunta ele na primeira
quadra do pequeno texto “Intimidade(s)”
de “Extracto sensitivo”. Ou seja: o
universo contido num pequeno
elemento da vida vegetal, o que está
no alto tornando-se igual ao que
está em baixo como na Tábua
alquímica da tradição e da sageza.
Travanca-Rego soube pesquisar o
mistério, assim tentou devassar o
segredo da esfinge. Perplexo ante os
enigmas cumpriu contudo a sua íntima
tarefa, se alguma tem o poeta.
Pôde, portanto, afirmar num trecho
do seu “Sentido sexto”: “Onde
habitasse o desespero alheio,/
deveria ter construído a minha
casa!/ - Onde habitasse um pássaro
sem asas/ pedindo uma árvore ou um
veleiro ou/ pedindo simplesmente/ a
mão do vento que sob o seu corpo/ -
a afogar-se de mágoa -,/
transformasse em Espaço/ o seu canto
em mágoas prisioneiro!”
E não é este, para um autor, um
profundo projecto de vida que
completamente nos reivindica de pé
perante a morte?
12. SOBRE
TRAVANCA REGO, A UM LUSTRO DO SEU
FALECIMENTO [b]
Durante os sete dias que antecederam
o seu falecimento, Travanca-Rêgo
fez-me três telefonemas.
No último contacto que comigo
estabeleceu, dois dias antes de
partir, pareceu-me deprimido, com
algo indefinível a limitar-lhe a
comunicabilidade. Vinha perguntar-me
se recebera a carta contendo um
poema para a antologia sobre Abril,
organizada por um confrade a quem
servi de intermediário. Mostrava-se
um pouco ansioso, como se temesse
que os irregulares e frequentemente
desrespeitadores correios lusitanos
lhe frustrassem o intento.
Quando lhe referi que sim senhor,
recebera o envelope, que gostaria de
o ver e, para o dispor melhor, me
dispunha mesmo a ir buscá-lo a Vila
Boim, para em Arronches ou
Portalegre degustarmos umas
especialidades da região e
conversarmos até às tantas, senti
que se comovera. Respondeu-me, com
um travo ameno na voz, que teria
muito gosto nisso, mas andava a
sentir-se mal. Eram incómodos no
corpo e no espírito. Insisti em que
o meu propósito, francamente lho
confessava, era contribuir para as
suas melhoras. Estava ele disposto a
entrar nessa jornada? - tornei eu.
Em vão. Não que não lhe fosse
agradável tal passeio mas…não se
sentia nada bem.
À guisa de consolo, intuí,
informou-me que estava praticamente
pronta a estruturação do bloco
específico que seria inteiramente
preenchido com poemas meus - a dar a
lume na Revista de Elvas, de
propriedade municipal e que
coordenava com Fernando Guerreiro.
Recomendou-me com alguma insistência
que procurássemos que o poema
saísse, quando saísse, sem quaisquer
gralhas. “É um poema complexo…Tem
aquelas recorrências… Veja lá isso,
está bem?”.
Nos dois anteriores telefonemas
preocupara-se com o andamento do “Fanal”,
o suplemento de que era colaborador
e que saíu durante três anos no
“Distrito de Portalegre” e que
posteriormente, por constrangimento
da administração, foi suprimido.
Informou-se também sobre o caso em
que tivera parte, um processo contra
três difamadores que nos haviam
enxovalhado numa folha
portalegrense.
Dê-lhe a informação que me pedia,
tentando pelo meio alguma ironia
fraternal.
A sua morte, comunicada de supetão,
foi para mim uma dolorosa surpresa.
Lá o fui acompanhar ao cemitério de
Vila Boim.
Estava um dia de calor atabafante. O
ambiente, para além da tristeza
habitual em ocasiões assim, era
soturno – um ambiente de pequena
vila do Alentejo profundo e sem
horizontes.
Durante vários dias aquelas horas
que constituíram os funerais do
poeta pesaram em mim como algo de
irreal e de absolutamente não
desentranhável.
13. O
PRAZER DE CITAR
Tenho um gosto pronunciado pelos
provérbios e as citações.
Os provérbios porque,
independentemente da sua justeza,
por vezes são pérolas de fantasia
verbal; as citações porque
correspondem a momentos excepcionais
no espírito dos autores das frases,
quando a mente, em fase ascendente e
profundidade fecunda, traça
girândolas que jamais se apagam.
Além disso, ambos são úteis. Os
primeiros servem muito bem para nos
acautelar o dia-a-dia, tornando-nos
mais atentos às eventuais ciladas;
os segundos, além de serem uma
homenagem reconhecida a quem as
pronunciou ou escreveu, dão sempre
sinal sonoro que ilumina tudo em
torno.
Assim, por exemplo, quando um
político astuto e cheio de ronha vem
prometer mundos e fundos, tirando o
pigarro uma pessoa pode
responder-lhe parafraseando
Churchill: “ Pois… Como se eu não
soubesse que a política é a arte de
ajudar o público a não tratar dos
assuntos que lhe interessam…”. E, se
um malacueco qualquer até nós vem
com falinhas mansas para nos
interessar num negócio chorudo e de
mão-beijada, podemos raciocinar: “Tá
bem, deixa…Como se eu não soubesse
que não dá o frade do que bem lhe
sabe!”. Se alguém se queixa de que,
num estabelecimento, comprou um
produto bom e barato, desses que a
perclara televisão nos mete pelos
lúzios adentro e que a breve trecho
pifou, pode pensar com equilíbrio:
“Fui um saloio… Então não sabia eu
que as pechinchas dão em requinchas?”.
E, ao saber que num determinado
serviço público certos funcionários
andaram a lesar o contribuinte
mediante actos de pequena ou grande
corrupção, abafados pelos superiores
factuais, pode comentar com
filosofia: “Os javardos, na lama,
são donos como el-Rei no Paço…”. E a
alguém que se admire de que num
areópago os representantes populares
passem o tempo a bulhar por dez réis
de mel coado, esquecendo os
interesses da nação, pode
responder-se com sensatez: “Deixe
lá… Se se pusessem de acordo é que
se calhar era mau. Pois não sabe o
meu amigo que quando os barões se
abraçam quem leva as pauladas é o
servo?”. Espanta-se uma pessoa
porque os inquéritos sobre os casos
das contas de… e das luvas de…
demoram a deslindar-se? É
referir-se-lhe, com bonomia: “Tenha
lá tento! Então nunca ouviu dizer
que a roupa suja deve ser lavada em
família?”. E ao fabiano que comente
o ar patibular de certas figuras
públicas, pode esclarecer-se
sensatamente, a exemplo de Oscar
Wilde: “Note, meu caro, que cada
sujeito tem a cara que merece.
Aliás, a partir dos trinta anos cada
um é responsável pela cara que
tem…”. Vem um tipinho, muito
moralista, metido na sua
indumentária a dar conselhos à
gente, pela televisão e pela rádio,
alertando-nos para a nossa falta de
contenção na fala e para o nosso
amor ao mundo, ao dianho e à carne?
É repontar-se-lhe de pronto: “Sim,
sim…Bem prega frei Tomás”. Ou, como
escreveu um dia Benjamin Péret,
“Quando eu tinha 20 anos, os
espertalhaços avisavam-me: vais ver
quando tiveres 40 anos! Tenho 40
anos - não vi nada…”.
Pela minha parte, digo que embora os
ditames e as citações sejam inúteis
para ultrapassar certas situações de
facto (vejam, por exemplo, se é
possível acabar com o abuso de poder
de certos donos dos grandes
dinheiros com um provérbio jogado à
cabeça do argentário) o que não
admira pois lá reza o ditado sobre o
trinta-e-um de boca, e sabe-se que
cantar é bonito mas não enche
barriga, serei sempre apreciador de
tão concisos conceitos.
Bom, mas calo-me já para não correr
o risco de algum leitor mais afoito
me dizer fique-se com a sua sabença
que eu fico-me com a minha mantença
ou, pior ainda, vozes de jerico não
chegam ao firmamento.
E não me assistiria, está de ver, o
direito de responder com uma parelha
de coices, como fazem certas
coléricas personagens que, por nosso
azar, transitoriamente nos tratam do
quotidiano…
14.
SCHUBERT, A 180 ANOS DE DISTÂNCIA
Em qualquer pessoa que à música se
entregue sem preconceitos sempre
ecoará uma melodia de Franz Schubert
– o Schubert “pequeno, rude e mal
ataviado” que numa manhã de
Setembro, ante o gáudio de uma
vintena de alunos e cultores do
bel-canto, se apresentou no
Conservatório de Viena para mostrar
o que valia, num desses eventos que
usam apelidar-se “exames de Estado”
das Academias. [2] Mas igualmente um
outro Schubert, o de óculos luzindo
nas trevas sociais duma Europa que a
breve trecho se veria mergulhada em
convulsões que aparentemente nada
fazia adivinhar, o rapaz “de coração
fagueiro” que amava os campos
floridos e os bosques olorosos –
esses lugares onde, em potência,
palpitava a imaginação a que os
altos espíritos sabem ser sensíveis
e onde se viaja na direcção certa,
sob as madrugadas de feliz boémia
criadora. E, também, o Schubert dos
tempos do fim, pouco a pouco
desfeito pela miséria económica e os
farrapos dum sonho que não cabia nos
estreitos limites duma sociedade
espartilhada por regras desajustadas
– esse Franz Schubert que a
“indústria cultural”, mesmo que o
tente, não conseguirá nunca devorar
nem escurecer, o “pobre rapaz de
olhar ingénuo” no fim da doença que
iria levá-lo, lendo custosamente,
mas com todo o prazer de um homem
que entendia, as páginas exaltantes
de liberdade dum James Fenimore
Cooper habitante do lado de lá do
Oceano. Esse outro lado onde sabia
bem viver e onde as planícies
abertas eram percorridas por um
grande hausto de ar novo e de
aventura.
É Alexander Woolcott quem nos conta:
“Certo dia de Novembro de 1828,
Franz Schubert morria de febre
tifóide, em casa dum irmão, nos
subúrbios de Viena. Apenas um ano
antes, empunhando archotes, um grupo
de amigos acompanhara o grande
Beethoven à sua sepultura em Wahring
e, na volta, fora Schubert de entre
eles quem, erguendo o copo,
propusera um brinde àquele que iria
a seguir. Chegara a sua vez e o
inditoso e acanhado rapaz, de corpo
cansado e desajeitado, olhos míopes
e coração faminto, não daria mais
canções ao mundo. Jamais, até então,
havia aparecido alguém dotado de
tanto talento para a melodia. Foi
uma fonte inexaurível de música, e
nunca tão fértil como nos últimos
anos da sua curta vida. (…) E qual
foi a última coisa que Schubert
escreveu? Uma carta – uma carta ao
seu amigo Schober, com quem no
princípio do ano tinha morado na
estalagem do “Porco Espinho Azul”,
até que se mudou por não poder pagar
a metade do aluguer que lhe cabia:
11 de Novembro de 1828 – Caro amigo:
Estou doente e há 11 dias que quase
não como nem bebo. Estou tão cansado
e prostrado que mal me posso mover
da cama para a cadeira e vice-versa.
Rinna é que cuida de mim. Qualquer
alimento que tome, lanço-o logo
fora. Nesta situação aflitiva,
poderia V. mandar-me alguns livros
que me animassem? De Fenimore Cooper
já li “O último Mohicano”, “O
piloto”, “O espião” e “Os
pioneiros”. Se tiver mais algum
livro seu, agradecia que o deixasse
no Café da Srª Gogner. O meu irmão,
que é a consciência em pessoa, mo
fará chegar às mãos da melhor forma.
Do amigo, Schubert.”
E conclui Woolcott: “Quando pensamos
em Franz Schubert, comovido no seu
leito de morte ao escutar o ruído de
um galho estalando sob o passo de um
índio nas florestas à beira do rio
Mohawk – que pena não ter, nessa
altura, sido ainda escrito “O
caçador de veados”! – de certo modo
os anos entre 1828 e o presente
momento ficam como que riscados do
calendário. Não somente a distância
entre Cooperstown e Viena se
encurta: o espaço de permeio também
desaparece. E, de repente,
achamo-nos tão perto do jardim de
Schubert que podemos ver o vôo dum
pardal, e de tal modo próximo da sua
cabeceira que chegamos a ouvir o
pulsar dum nobre coração”.
A despeito dessa nobreza interior,
foi ele sujeito de parcos amores
consumados (uma Teresa Grob, uma
Karolin von Estherazy pertenceram
mais ao plano das vivências do
coração forçadas pela miséria do
tempo), substituídos por muitas
horas empregues a trabalhar nos
Cafés de uma Viena dada à alegria e
aos folguedos, de conversas com
amigos pelos atalhos e caminhos
vicinais dos arredores. Schubert,
que nunca pertenceu a qualquer ordem
iniciática, deu-se contudo com gente
diversa, incluindo alguns frater e
era sensível à música mais hermética
de Mozart como “A flauta mágica”.
Mas o seu universo, tão povoado de
seres de outro plano mais profundo,
reconduzia-se à terra, ao quotidiano
citadino ou campestre,
transfigurava-se na existência que
ele sonhara um dia alcançar mas que
a dura realidade societária
acerbamente desmentiu. Nessa Viena
que pouco depois da sua morte
sentiria os abalos dos novos tempos,
o destino que lhe coube foi o de
incessante tangedor das esferas da
Natureza, pois este mourejador
musical era um cativante companheiro
de pacatos festins e de largos
passeios, amando como bom andarilho
o sol e o cantar dos pássaros, as
merendas e os banhos nas ribeiras
campestres [3].
Pode afirmar-se sem margem sensível
de erro que só na sua “Viagem de
Inverno” palpitam amargamente os
fantasmas da nostalgia e do
desespero melancólico, a plena
certeza da proximidade da morte.
NOTA
2. Principalmente depois do filme
“Amadeus” de Milos Forman, Salieri
viu colada a si uma lenda
absolutamente injusta de
mediocridade. Aquilate-se do valor
dessa lenda pela sua atitude quando
foi presidente do júri que examinou
Schubert: ao terminar a prova,
ajoelhou-se perante ele e beijou-lhe
as mãos. Mais: com Rueziezka,
completou-lhe a educação artística e
protegeu-o sempre que pôde.
3. Schubert tinha muitos amigos, que
devotadamente o acompanhavam nas
famosas “schubertíadas”e em
excursões pelas estalagens dos
arredores que faziam jus à estima
que lhe devotavam e à sua maneira de
ser aberta e comunicativa. Pois logo
a maldade dos bons burgueses de
Viena tentou, caluniosamente, ver
nisso uma característica de teor
sexual em geral mal encarada pelos
hipócritas pseudo-moralistas.
15. COISAS
DE PANTAGRUEL…
Não percebo nada de cozinha. Emendo:
creio que não entendo nada de
culinária, o que bastante me pesa.
Os prestígios secretos da pimenta,
do sal, do cravo-de-cabecinha, as
magnificências do colorau e dos
cominhos - escapam-me, por meu mal,
completamente. Por outro lado, até
hoje o único prato que consegui
confeccionar sem desdouro de Mestre
Cuca foram uns ovos com ervilhas em
estilo cometa…que ninguém, saiba-se
lá porquê, apeteceu consumir.
Sou pois, como preparador de regalos
e de acepipes, aquilo a que
propriamente se chama um fracasso e
estou em crer que se algum
empresário da nova vaga, um desses
dinâmicos patrões que se encomendam
a Zeus e a Mamon, tivesse a infeliz
ideia de me contratar como chefe de
restaurante, depressa faria fugir a
sete pés todos os comensais que
eventualmente me caíssem em frente
do guardanapo.
Isso não significa, contudo, que não
seja capaz de apreciar a boa mesa!
Já se sabe que para se aquilatar do
gosto duns ovinhos mexidos não é
indispensável ser-se galinha, assim
como para se distinguirem as
saborosas características de um
chispe não é imprescindível
pertencer-se à espécie porcina,
posto eu saiba que anda por esse
mundo fora muito reco a tentear a
mestrança de perito em paladares: o
que é sem dúvida legítimo, desde que
se mantenham nos limites gustativos
da bolota e do maceirão.
Para mim, que tenho pinta de gourmet
como dizem os franceses, que nisto
de comidas ninguém lhes leva a
palma, o frango do campo não é
necessariamente inferior à galinhola
ou ao pato, o esturjão remolhado não
se avantaja à pescada bem fritinha,
de rabo na boca ou com todos os
matadouros. Cá me lembra por
exemplo, com saudades, uma pratada
de peixinhos fritos que devorei em
Peso da Régua, assim como não me
esqueço dos prazeres que em
Reguengos de Monsaraz me provocou o
maroto dum coelho todo envolto em
vinha-de-alhos.
Tenho para mim que há vegetais e
vegetais… Todavia, virem-me com a
estorieta de que a couve é sempre
melhor que a cenoura é balela que eu
não engulo.
Bem sei que a couve contém elementos
que a tornam recomendável: ele é o
ferro, os sais minerais diversos, a
vitamina H ou Z, o diabo; mas para
mim as cenouras, desde que tratadas
com discernimento e suavidade, não
se lhes ficam atrás. Além do mais
consta que fazem bem à vista. E,
havendo nestes tempos tanto omnívoro
meio-cegueta, verifica-se assim que
não são elas um legume para deitar
no lixo ou no esquecimento.
Confesso que tenho um fraco pela
batata. Isso parece-me lógico: a
batata é o pão dos pobres e eu sou
de origem humilde. Radico pois tal
preferência num hábito hereditário
que me deve ter deixado marcas nas
papilas e nos refêgos interiores do
estômago. Mas alto! Que não são
todas as batatas que me agradam: bem
preparadas as quero, sem grelos nem
pontos negros. Se cozidas, que se
desfaçam na boca; se fritas, que
estalem sob os dentes; se assadas,
que transportem ao palato o fino
olôr místico da salsa e do cebolão.
O que menos me agrada numa batata é
que seja envinagrada, farinhenta,
torpe como nascida das pedras ou com
sabores menos filhos da terra úbere
que do super-mercado às três
pancadas. Rasca como certos homens
públicos…
Quanto a aves, tenho conhecido
muitos passarinhos fritos que mais
se parecem com pássaros bisnaus. Mas
se a avezinha, qualquer que ela
seja, estiver cozinhada com mão de
mestra, eis que quase se sente
esvoaçar no ventre - tão leve e
saborosa se achou ao rés do fogo.
Nunca devemos esquecer-nos que uma
iguaria, para o ser, não deve ter o
lume por demasiado violento ou
excessivo: é que os pitéus, tal como
os homens, parece não se darem bem
com o que é rude em extremo. E é bem
natural que a carcaça de um peru se
queixe, tal como noutras
circunstâncias um qualquer cidadão
faria.
Nunca gostei de santolas. Aliás, o
marisco em geral deixa-me frio: tem
muita casca e pouca carne, é caro e
anda para trás como o caranguejo. E
eu tenho para mim que às arrecuas
não se vê bem o caminho: às vezes
até se cai de cabeça ou de joelhos,
sem mesmo se ter tempo para antes do
trambolhão se pronunciar um deus me
acuda protector. Por isso o único
marisco que aprecio é a ostra - pois
por vezes tem lá por dentro a
maravilha de uma pérola.
Quanto a licores só gosto dos
generosos. Os espirituosos quase
sempre não têm espírito nenhum, até
se parecem com um eventual crítico
literário au pair ou algum ronceiro
comentador televisivo. E se pelos
vinhos se entrevê a alma dum povo,
então desejo com ganas que o nosso
se vá parecendo mais com um porto
que com um uísque, mais com um
colares que com um vodka, mais com
um madeira que com um conhaque. E
que não tenha o álcool muito fraco,
pois que é dele que lhe advém a
generosidade e a altivez.
Das frutas prefiro a cereja, o
pêssego, a laranja. Não gosto nada
da pêra e quanto à banana já lá vai
o tempo em que muita gente a tinha
quase de graça, de exportação
africana. Agora, coitadinhos,
ficaram votados às bananas de
outros, à ameixa e às pevides de
melão…
Não falarei nas sobremesas, que
nisso não tenho preferências de
assinalar. Sou ao contrário dos
romanos, que quase invadiam um país
só para lhe raparem os bolos e os
doces ancestrais. Aliás, as
sobremesas são petisco pouco sólido
e que ainda por cima vem no fim do
repasto, quando os apetites já estão
fartos e os convivas repletos.
E a nós, apreciadores esclarecidos,
o que nos caracteriza é o que a
todos os humanos convém: não se
encherem muito as panças, não se
ceder ao empanturramento, pois que
de indigestões e de fartanços estão
as covas cheias e as sociedades
saturadas.
E na cozinha, como em tudo, é
necessário manter o bom-senso.
Não vá daqui amanhã querer-se comer
e só nos restar uma côdea ao
cantinho da gaveta… |
|
Nicolau Saião (Portugal, 1946).
Poeta, artista plástico e ensaísta.
Autor de livros como Passagem de
nível (1992), Flauta de Pan (1998) e
Os olhares perdidos (2000). Com este
mesmo título a Escrituras Editora
(São Paulo) acaba de publicar uma
antologia de sua poesia no Brasil.
Contato: nicolau19@yahoo.com |
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