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Pequena sabatina ao artista Sérgio
Lucena
Fabrício Brandão
Página ilustrada com obras do
artista Sérgio Lucena (Brasil)
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A primeira visão de um tudo habitava
as moradas de um silêncio. Pelos
tecidos que escorriam entre as
horas, o menino vislumbrava no seu
cume predileto o sertão-mundo
presente, palpável, concreto e
imaginável aos olhos. |
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E sentir tais
visões impregnadas na retina trazia-lhe a
íntima certeza de que atirar-se à vida
poderia ser algo delicado, complexo, porém
não menos fascinante. A partir disso, tomava
posse do sonho como um aliado ideal da
sublime busca ensimesmada em torno dos
sinais que percorrem a existência.
Aquele menino-sertão cruzaria os anos
futuros carregando obstinadamente os
imperativos de seu digno olhar sobre todas
as coisas. Pelas alamedas inexplicáveis da
arte, tornar-se-ia o homem que, além de
perceber a realidade pulsando bem diante de
si, mostraria disposição para transcender os
signos embalados no caminho da criação. É
como se, através de suas telas, Sérgio
Lucena nos propusesse a vida surgindo sempre
e revelada a cada dia. Desde os primeiros
estudos de desenho e pintura em sua João
Pessoa, na Paraíba, até as experiências
acumuladas com exposições e premiações no
Brasil e no exterior, o artista percorreria
as trilhas naturais de sua afirmação
criativa. |
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Durante todo esse tempo, conheceu
pessoas, compartilhou saberes com
outros artistas e se alimentou
daquilo que, podemos suspeitar, seja
o maior propósito de seu trabalho: o
mergulho na essência das coisas.
Santos, anjos, profetas, musas,
deuses e paisagens, dentre outros
temas, unem-se em esforços que
estreitam a relação dos homens com
seus mais antigos mistérios. Nesse
ponto, a obra de Sérgio nos oferta a
unidade existencial, a comunhão
entre o sagrado e o profano. Homens
e deuses são um único ser e o
conceito de divindade é cultuado no
mais nobre altar da igualdade, algo
que pode até nos remeter ao Uno de
Plotino. Em meio a tais epifanias,
Sérgio Lucena nos concede uma
entrevista cujo ponto alto
concentra-se nas suas sensíveis
impressões em torno do fazer
artístico. Nela, o artista
desnuda-se e nos revela quão valiosa
é a celebração de nossa humana
idade. [FB] |
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FB | Suas
primeiras visões vêm das reminiscências
povoadas pelo vasto e mítico imaginário
nordestino. Como foi que tais olhares se
fortaleceram em seu íntimo a ponto de
motivar a sua arte?
SL | Minha infância foi marcada pelo sertão,
o centro do meu universo, a fazenda de gado
e algodão do meu avô materno onde
experimentei o real, o leito rochoso onde
firmei os pés. Lá existe uma pedra, um
imenso granito solitário com aproximadamente
trezentos metros de altura. Costumava subir
esta pedra para olhar o mundo do alto, para
mim aquela visão era, e continua sendo, o
lugar sem engano.
O sertão nordestino com seus silêncios, sua
alma arcaica, consubstancia uma realidade
sem dúvidas. “Viver é muito perigoso”, diz
Guimarães, como a dizer que a vida só é
possível com princípios, com dignidade,
valor seminal. Toda a alta cultura
nordestina não é outra coisa que a
preservação de códigos de conduta.
Estruturas essenciais que permitem a vida e
criam espaço para o sonho realizador.
O que vi sem que me mostrassem, o que ouvi
sem que me dissessem, o que senti sem
demonstrar (a metodologia sertaneja de
transmissão do que importa), tudo calou
fundo em mim até estar pronto para vir à
tona.
Sou hoje a pedra da minha infância, a
vastidão, o mistério, o arcaico, o espaço
cósmico infinito, o não saber, o aceitar.
Minha pintura atende unicamente à vida, sua
demanda... Minha motivação é estar à altura
disto.
FB | Certa feita você afirmou que vida e
arte são dois elementos indissociáveis. Por
vezes, somos um tanto utópicos quando
recriamos nossas existências através dos
impulsos artísticos. Essa ideia da
reinvenção da vida pode nos afastar ou
aproximar da essência das coisas?
SL | “A vida imita a arte”, disse o Oscar
Wilde. Eu concordo com esta afirmação. A meu
ver, não recriamos nossa existência por meio
da arte, entendo que a criamos.
A arte formaliza o real, de maneira que a
vida que se manifesta foi antes criada num
espaço sutil. A nova realidade consciente se
dá pelo fato de ter sido antes elaborada em
forma de linguagem, uma estrutura capaz de
acessar a percepção e o entendimento
humanos. Isto é alta magia.
Neste sentido nos aproximamos da essência
das coisas, pois é de nós mesmos que nos
aproximamos. A utopia é o contrário disto, e
se reflete claramente na alienação, na
dissociação do indivíduo de si mesmo.
Também é do Oscar Wilde o pensamento de que
o mistério maior está no que vemos e não no
invisível. Todo artista que pode ser chamado
grande, o é por sua obra realizada, nunca
por suas subjetividades ou idiossincrasias.
O embate do artista é com a esmagadora força
de acomodação e alienação exercida pelo
mundo contingente, e é a percepção intuitiva
em busca dos meios de elaboração e expressão
do que é intuído que cria a tensão
necessária para a realização da obra.
É natural que o artista conviva com o abutre
prometéico, que lhe come o fígado
diariamente, mas é o fogo roubado aos Deuses
o que interessa de fato. De maneira que a
realização objetiva da obra é o meio de
passagem da situação utópica para a
realidade concreta.
A obra realizada é o portal de acesso à nova
consciência. A realidade da obra, portanto
estabelece o novo olhar, a nova percepção.
Assim, cria-se a vida.
Para mim, certamente, a arte como linguagem
é a melhor expressão do essencial, trata-se
da linguagem da alma, imediata, completa,
pura e espiritual.
Para concluir, digo que a vida não se
inventa tampouco se reinventa, a vida se
revela ao passo que se nos desvelamos. |
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FB | Como é
que você avalia o papel da crítica de arte
feita no Brasil?
SL | A crítica de arte no Brasil, no âmbito
das artes visuais, já há mais de década foi
expulsa de seu espaço: os veículos de
comunicação. Hoje temos apenas anúncios de
eventos e, quando muito, meras opiniões.
Um fato lamentável, causador de imensurável
prejuízo ao avanço da reflexão, do
aprofundamento das questões da arte e,
consequentemente, da diluição do pensamento.
Toda história da arte está respaldada no
diálogo artístico, a ausência disto em nosso
país é um atraso para a sedimentação da
cultura, uma forma espúria de fragilizar
nossa identidade.
Curioso é que os próprios artistas
participaram deste movimento de extinção da
crítica, com uma postura no mínimo leniente,
para não dizer subserviente aos interesses
do mercado.
Fato é que sem crítica de arte não existe
arte. O interlocutor é fundamental para o
artista.
FB | O pintor suíço Paul Klee dizia que o
papel do artista era o de convencer os
outros da veracidade de suas mentiras. De
que modo você percebe tal ideia?
SL | Paul Klee foi um sol radiante, sua luz
permanece como um farol de lucidez. Ele não
diz, ele sugere, aponta... A única forma de
falar do indescritível.
Entendo que esta citação do Klee corresponde
ao que tratávamos na segunda pergunta, que
vida e arte são indissociáveis.
A arte não se vale da lógica cartesiana, da
constatação científica, da confirmação
empírica para afirmar seu valor. Logo, para
nossos arcaicos padrões de valoração, a arte
é uma grande ilusão, uma baita mentira cujo
único mérito seria nos distrair, afinal não
é fácil lidar ininterruptamente com as
coisas “sérias, verídicas e importantes” da
vida. Há de haver um tempo para o descanso.
Entretanto, é justo neste espaço de tempo em
que a guarda está baixa, visto ser hora de
relaxar, que se dá o inimaginável. O sujeito
senta-se diante de um quadro e o contempla,
ou fecha os olhos e escuta uma música, ou lê
um poema e, sem que se dê conta, a arte atua
no indivíduo carente de significados,
acalenta-o, o faz sentir-se humano, e o
mundo, então, surpreendentemente, faz
sentido.
Aquela mentira o salvou da pior das
verdades, a grande alienação do homem em
relação a si mesmo e, consequentemente, ao
próximo e a tudo.
É isso o que me parece querer dizer o mestre
Paul Klee.
FB | A Série Deuses é, sem dúvida alguma, um
dos pontos marcantes de sua obra. Nela, é
possível apreender um estreitar de laços
entre o humano e o divino. Em que medida as
inquietudes da alma ali aparecem diluídas?
SL | A série Deuses, que se divide em dois
momentos, Deuses da Terra e Deuses do Céu,
foi um divisor de águas. Em verdade, este
foi o tempo apaziguador das inquietudes de
minha alma.
Com os Deuses da Terra, pude me reconciliar
com os meus medos, reconhecer neles meus
mestres e aliados. O próprio título da série
vem deste apaziguamento. Os animais remontam
minha pintura anterior, ligada ao burlesco,
ao anedótico, ao satírico, quando a pintura
tinha forte caráter narrativo e era
concebida como alegoria fantástica.
Entretanto, agora, eles já não mais
compunham o cenário como personagens
coadjuvantes, eles foram alçados a
protagonistas, únicos, dignos e solitários.
Tratei de vesti-los com a mais fina
joalheria, peles bordadas a ouro e platina,
dei a cada um deles o seu lugar divino e
merecido. Cada ser revelado em um Deus, um
aspecto inconsciente de mim mesmo que,
quando reconhecido na sua natureza e
magnificência, abriu a porta de seu universo
e permitiu que eu avançasse, integrando sua
força ao propósito que nos une. Cada ser é
um portal.
Esta experiência levou alguns anos, três,
para ser mais exato, durante os quais tudo
em mim e à minha volta se transformou. Veio
assim à aceitação e o apaziguamento,
situações que permitiram o novo momento da
série: Deuses do Céu.
Enriquecido pelo mundo subterrâneo,
alimentado de humos, tornei-me apto a,
novamente e pela primeira vez, escalar a
pedra da minha infância. Vi outra vez o que
ainda não tinha visto: a vastidão, o
horizonte indefinido. Minha pintura adentra
um campo simultaneamente familiar e
desconhecido… Deuses do Céu.
FB | Algumas de suas pinturas remontam ao
realismo-fantástico e, nesse aspecto,
poderíamos mencionar, por exemplo, os signos
presentes em O Livro dos Seres Imaginários,
de Jorge Luís Borges. Nessa comunhão entre
texto e imagem, o que mais lhe chama
atenção?
SL | Todo pensamento tem sua imagem
correspondente. A pintura abstrata, por
exemplo, é a forma elaborada de um estado
psíquico, emocional e de percepção da
realidade. Lembro-me de Mark Rothko, grande
pintor russo-americano, que não aceitava a
alcunha de pintor abstrato, pois afirmava
que sua pintura tratava do que havia de mais
concreto: as emoções humanas básicas. Sobre
a pintura que hoje faço, que não se presta a
uma descrição narrativa, muito já se falou.
Ou seja, o texto e a imagem são uma e mesma
coisa. Um texto suscita uma imagem, uma
imagem suscita um texto, são duas faces da
mesma moeda. O que é preciso estar atento, e
isto é muito importante, é que nem o texto
existe para explicar a imagem nem a imagem
existe para ilustrar o texto. Se tal
situação ocorre, e sabemos que ocorre
bastante, não estamos falando de arte.
FB | Você se utiliza do sagrado como uma
forma de evocar um entendimento mais sublime
sobre a condição humana?
SL | A condição humana é sublime, logo, toda
miséria, todo o horror que assistimos
diariamente não é outra coisa senão a
ignorância deste fato: a condição humana é
sublime.
O crítico de arte Jacob Klintowitz formulou
o primeiro pensamento em nossa época, de que
tenho conhecimento, relativo a esta questão.
A este conceito chamou de “A Ressacralização
da Arte”. O retorno em nossa época do
princípio sacro da Arte que, assim como fora
nos primórdios de nossa espécie, não se
vincula a instituições religiosas, antes
aponta para a comunicação direta do homem
com o divino, o homem íntegro e integrado.
“Toda Arte que se pretende digna deste nome
é religiosa”, disse Matisse, um artista
superior. Naturalmente, aqui ele não estava
referindo-se às religiões ou dogmas, mas ao
sentido etimológico da palavra religião:
religare – ligar novamente, a grande arte
religa o homem a sua natureza, sua sublime
condição: O Deus Homem.
FB | O homem e a retomada de seu centro.
Ainda estamos muito distantes desse
propósito?
SL | De minha parte, considero que não se
trata de uma questão coletiva, mas
individual. Cada um deve buscar o seu
próprio centro, o encontro é individual e
único. |
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Fabrício Brandão (Brasil, 1974).
Poeta e editor. Inédito em livro.
Dirige, juntamente com Leila
Andrade, a revista eletrônica
Diversos Afins, em cuja edição # 35
se publicou originalmente a presente
entrevista. Contato: diversosafins@gmail.com |
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