Numa
amostragem dos 10 títulos mais
significativos de literatura estrangeira em
língua portuguesa publicados no Brasil no
ano passado, me dou conta de que 6 são
portugueses, 2 moçambicanos, 1 angolano e 1
caboverdiano: ao todo 8 romances e 2 livros
de poemas. Tentando sondar em que critério
se basearam as editoras para a publicação
destas obras no Brasil – e no caso estão
envolvidas a Cia. das Letras, a Alfaguara, a
Escrituras, a Record e a Língua Geral – vou
buscar aproximar tais títulos a ver se colho
alguma evidência a considerar, para além da
óbvia presença do lobbie junto às
casas de publicação e, certamente, da boa
repercussão alcançada por cada um destes em
seu país de origem.
Se considero de maneira global os gêneros
presentes aqui, a porcentagem de 20% de
poesia diante dos 80% de narrativa não causa
estranheza: os leitores brasileiros de
poesia parecem se comprimir de fato nessa
pequena faixa de interesse; resta,
entretanto, conhecer que natureza poética
tal safra ostenta – e é o que veremos.
Assim, no esboço de um perfil que dê alguma
identidade a esta produção literária,
percebo que a interlocução entre tais obras
e a cultura ou a literatura brasileira, se
fica esbatida ou difusa em grande parte
delas (constando apenas de pura menção,
citação ou de epígrafe) - em dois romances
portugueses, pelo menos, ela se asila
diretamente, integrando mesmo a sua temática
central. Refiro-me a Rio das Flores,
de Miguel Sousa Tavares, e a A eternidade
e o desejo, de Inês Pedrosa. Em ambos, o
encontro de uma síntese, ainda que
contraditória, entre as duas culturas, se
sobressai num acordo de mestiçagem que busca
fundir, sem apascentar, harmonias e
dissonâncias entre Portugal e Brasil.
O mesmo ocorre nos dois únicos livros de
poemas desta listagem, em O osso côncavo,
do moçambicano Luís Carlos Patraquim, e em
Lisbon blues, do caboverdiano José
Luiz Tavares. Nestes, poetas brasileiros
como Drummond, Bandeira e João Cabral
comparecem de corpo inteiro e são invocados
para entrar em algum tipo de entendimento
com tais poéticas, transmutados em
releituras, citações ativas e, enfim, em
matéria básica para quaisquer antropofagias
poéticas.
E para já desponta um dado notável
concernente a todos os títulos: tanto a
frisada preocupação de índole social quanto
numa marca de identidade nacional que
transparece e pede espaço dentro dessas
obras - tanto para bem quanto para mal. Me
explico.
No que diz respeito às literaturas africanas
de língua portuguesa, o interlocutor central
é sempre Portugal – sua cultura ou
literatura. Todavia, parece-me digno de nota
que, se para os portugueses Inês Pedrosa e
Miguel Sousa Tavares, o amálgama entre a
cultura brasileira e a portuguesa se
expressa como desejável, para o moçambicano
Mia Couto, entretanto, a fusão cultural
entre Moçambique e Portugal se traduz como
quase impraticável. Já para o angolano
Pepetela, a aliança entre Angola e Portugal
se dá, todavia, pelo lado mais nocivo:
através do aprendizado das mumunhas e das
mutretas herdadas do colonialismo.
Quanto a aproximação cultural e literária
entre Cabo Verde e Portugal (em José Luiz
Tavares) e entre Moçambique e Portugal (em
Patraquim), ela é sempre fundamento
principal e contributo benfazejo para a
prática poética. A poesia parece preferir,
ao contrário do que ocorre com os exemplos
romanescos africanos, uma íntima
miscigenação com os representantes da antiga
metrópole, bem como com seus colegas
brasileiros. Poetas como Camões, Pessoa e
Cesário Verde são referências sem as quais
tais poéticas africanas não sobreviveriam ou
se perfariam de maneira absolutamente
diversa.
Para além destes, cito alguns outros dados
curiosos. Por exemplo, o colonialismo e a
sombra funesta do salazarismo estão
pulsantes, de uma ou outra maneira, em todos
os romances em pauta. Também a parábola,
forma narrativa adaptável, serve de
estrutura ficcional pelo menos para dois dos
romances aqui elencados: A viagem do
elefante, de Saramago, e Aprender a
rezar na era da técnica, de Gonçalo
Tavares. Do mesmo modo, esta obra de
GonçaloTavares e a Predadores, de
Pepetela, narram ambos um mesmo percurso
humano e social por meio de estilos
absolutamente diversos e até conflitantes.
Também a metaficção é o expediente recursivo
no caso de quase todos os títulos, com
exceção talvez do romance de Miguel Sousa
Tavares e daquele de Mia Couto. De um lado
porque o primeiro se auto-intitula “romance
histórico” e, de outro, porque, no segundo,
o próprio viés mágico tende a escamotear,
ocupando, tal recurso literário que, aliás,
se acha um tanto mais ousadamente praticado
em Cemitério de pianos, de José Luís
Peixoto, e em Ontem não te vi em
Babilônia, de António Lobo Antunes.
Bizarra é também a incidência de uma
temática que percorre pelo menos 4 dos 6
romances aqui apresentados, o que pode ser
visto quase como uma tendência deste tipo de
publicação no Brasil do ano 2008. Refiro-me
à preocupação em narrar uma saga familiar,
observada tanto no citado romance de José
Luís Peixoto quanto no de Lobo Antunes, para
além dos de Pepetela e de Miguel Sousa
Tavares.
Dito isto, vou procurar comentar com vocês
cada uma dessas obras, começando pelos
títulos portugueses, os mais numerosos, a
ver se vamos vislumbrando as razões
editoriais brasileiras levadas a efeito para
a eleição deste elenco. E enceto
aleatoriamente por Cemitério de pianos,
de José Luís Peixoto, publicado pela Record.
Aqui, a metáfora do cemitério de pianos,
chão de onde se recolhe uma e outra peça
para recompor outros tantos instrumentos que
dêem continuidade à composição iniciada, à
melodia que não pode cessar - dá o tom a
este romance. Temos, então, uma narrativa de
diferentes vozes de diversas naturezas: a de
um defunto-narrador (semelhante ao nosso
Brás Cubas) que conta a sua história para
acolher o filho que há de nascer e morrer;
uma outra narrativa que é a do filho que
conta a sua própria maratona na medida em
que a disputa, percorrendo-a em busca da
vitória que, entretanto, desemboca na morte;
e a derradeira, que é a do filho deste
corredor que, retomando o facho narrativo do
pai e do avô, prossegue a dinastia de tais
narradores em situação-limite, dando, pois,
continuidade a esta geração - a esta música.
Simultâneos espaços, tempos dessincronizados
e embaralhados vão compondo
fragmentariamente esta gesta familiar onde o
Tempo parece se assentar como a personagem
principal, tratado tanto como mero fluir,
como abstração individual quanto como
dimensão de todo relativa. Os limites
romanescos de Cemitério de pianos
incluem o leitor como interlocutor do
narrador no desenvolvimento da história,
passagens de nível ficcional de personagem,
que entra em estado de diálogo com o
narrador-defunto, a ponto de corrigi-lo, bem
como outros sinais que definem variedades de
uso da metaficção.
Aprender a rezar na era da técnica,
de Gonçalo M. Tavares, publicado pela Cia.
das Letras, se vale de uma narrativa
pseudo-infantilizada, erguida por meio de
especulações que roçam puros sofismas, e de
uma estrutura linear semelhante à da ficção
científica - para contar a ascensão e o
fulminante declínio de um político de perfil
totalitário: em verdade um monstro de
perversão e imoralidade. Como antes
observei, topamos com idêntico personagem em
Pepetela, todavia, completamente
diferenciado.
O sentido da parábola permeia este romance
de índole kafkiana, onde impera uma poética
da crueldade, o cinismo e seus derivados,
uma perversão de valores à maneira de Sade,
o humor negro e a chamada “violência
inteligente” – tudo narrado por meio de um
distanciamento e de uma atitude
imperturbável, extra-humana e neutral. Não
há, pois, nem a presença ou nem vestígios da
presença, em nenhum momento, de uma mente
que sirva de interlocução ou de um esboço de
valores que possam se sugerir como
referência outra ou dialética para a
aferição da história narrada, de maneira que
o leitor se encontra à mercê de si mesmo e
dos seus próprios juízos éticos, sociais,
ideológicos – o que, a meu ver, em vez de
favorecer uma perspectiva crítica, antes a
neutraliza. Posso mesmo sugerir que as
ruminações que, de modo surdamente
aparatoso, digamos assim, pontilham este
romance, acabam premiando o leitor com a
sensação (verdadeira, falsa?) de...
inteligência própria.
Em Rio das Flores, de Miguel Sousa
Tavares, também publicado pela Cia. das
Letras, temos uma obra que traça, com
minúcia, a saga de uma família alentejana,
do começo do século XX ao final da Segunda
Grande Guerra, e que palmilha
simultaneamente a história de Portugal e do
Brasil do período, bem como os laços de
união e discórdia entre ambos.
Escrito à maneira realista, sem
empecilhos de linguagem ou de enredo, muito
fluentemente redigido, dentro, portanto, do
universo de uma narrativa tradicional à Eça
de Queiroz, por exemplo - Rio das Flores
se apresenta, como já adiantei, como
“romance histórico”. A relação entre os
irmãos Diogo e Pedro parece se basear
(apenas para dele divergir) no padrão mítico
de Esaú e Jacó, o que por vezes também se
espraia para as aproximações de igualdade e
dessemelhança entre Portugal e Brasil, a
ponto de permeá-las.
José Saramago, em A viagem do elefante
(também publicado pela Cia. das Letras),
apresenta, numa estratégia ficcional comum a
seus romances anteriores, um narrador
onisciente, onipotente, palrador e
intromissor, agora acondicionado a um tipo
de cronista do século XVI. É em meados de
1550 que se passa a história do elefante
Salomão e das vicissitudes que o rodeiam
enquanto prenda do rei português ao
arquiduque Maximiliano II, genro de Carlos
V, o imperador. O deslocamento do
paquiderme, de Portugal à Áustria, roteiro
que não pode evitar os Alpes e ainda menos a
emulação de Salomão com seus ancestrais
(aqueles do lendário Aníbal), vai
acompanhando, antes, as aventuras das
transformações sociais e (digamos assim)
políticas do seu cornaca que, indiano da Goa
portuguesa, atravessa variados relevos,
aculturações e batismos de fogo – tudo isso
tratado com nomeado humor crítico.
A eternidade e o desejo, de Inês
Pedrosa (publicado pela Alfaguara) tem, por
sua vez, como interlocutor constante os
Sermões de Vieira, relidos, entretanto,
num diapasão pós-moderno. Assim, no entrecho
da cega portuguesa que vem ao nosso país e
que constrói para si mesma, no rastilho de
Vieira e do amante assassinado, uma
identidade mestiça - o Padre comparece como
a mais fértil mixórdia entre ambas as
culturas.
A obra, um punhado de vozes colhidas em
intimidade, se vale dos fragmentos
descontextualizados dos Sermões para
interseccionar e contrapontuar o curso dos
eventos contemporâneos, sugerindo-lhes
dissonantes e surpreendentes saídas. E a
narrativa, lugar de tais confluências, acaba
encontrando na escrita de Vieira o centro da
sua esfera, do seu périplo, de maneira que
não só a eternidade e o desejo passam a ser,
como o quer Vieira, “duas coisas parecidas e
retratadas na mesma figura” do Ó, mas também
e especularmente o próprio romance que,
pouco a pouco, vai desenhando semanticamente
seus próprios OOs. E é então que a ingênua
viagem turística se revela o percurso para
dentro do igual e do dessemelhante, em busca
de uma errática síntese para estas duas
culturas de língua portuguesa.
Já em Ontem não te vi em Babilônia,
de António Lobo Antunes (também publicado
pela Alfaguara), a Babilônia que o título
refere é, deveras, uma Babel narrativa,
composta por monólogos que cruzam diferentes
tempos, espaços, personagens, devaneios,
projeções, acontecimentos - tudo em estado
fragmentário, simultâneo e de repetição
traumática, o que, aliás, confere a esta
escrita uma feição quase esquizofrênica.
Complica propositadamente a decodificação
desta obra um código romanesco móvel,
confirmando a narrativa como um processo
psicanalítico de personagens no limiar de
suas forças, o que torna o enredo um jogo de
adivinhas, um quebra-cabeça.
Através dos índices recursivos, pode-se
tatear tais conjuntos estilhaçados como um
idioleto a identificar um triângulo amoroso
trágico e perverso, que acaba por introduzir
metaficcionalmente o próprio Lobo Antunes
como aquele personagem enigmático, sempre
referido mas nunca comparecido em cena. Este
que, afinal, esteve permanentemente na
coxia, protegido pela penumbra duma noite
interminável, a escrever um romance sobre
personagens insones, desavindos nessa
madrugada, não deixando sequer de narrar um
elenco de crimes e assassinatos políticos do
salazarismo que, espera-se, não despertem
nunca mais com o dia que está por nascer.
A literatura moçambicana apresenta aqui,
como já sugeri, um romance e um livro de
poemas. Venenos de Deus, remédios do
Diabo, de Mia Couto (publicado pela Cia.
das Letras) obtém, já no próprio título, um
efeito poético que, aliás, persiste em toda
a narrativa. Refiro-me aos dois oxímoros
(venenos divinos e remédios diabólicos)
situados em oposição na figura de um quiasmo,
de um quiasmo certamente periclitante, pois
que tanto os venenos podem ser lidos como os
remédios – de maneira que Deus pode ser o
Diabo -, quanto os termos antagonistas podem
ser lidos, de fato, enquanto conflitantes.
Apoiando-se, portanto, num código poético
muito sensível, mas de delicada manutenção,
este romance percorre a linha tênue de uma
dimensão mágica dotada de uma estrutura
fabular que abarca, entretanto, modelos
convencionados e de clichês: o português e o
africano, a autoridade e o subalterno,
antagonismos ainda persistentes em embate
tácito, malgrado a atualidade do entrecho
romanesco. Isso porque as raízes da cultura
moçambicana, na sua ancestral
especificidade, emergem contrapostas às
européias, tanto no passado do velho
Bartolomeu Sozinho (personagem catalisadora
da história), quanto na vida social da vila
africana em que a narrativa transcorre.
A situação que dá partida ao romance serve,
de maneira exemplar, para esclarecer tais
pontos de atrito que, afinal, o alimentam e
justificam seu curso. O Velho, antigo
mecânico naval do tempo colonialista, é hoje
o paciente rebelde do português secretamente
apaixonado por sua filha ausente. Todavia, a
acenada mestiçagem, desenhada como horizonte
possível deste romance, murcha por inteiro,
visto que pouco a pouco o enredo vai
revelando basear-se em suposições que,
afinal, não passam de pura miragem. Nem o
português é médico, nem o Velho é paciente,
nem a moça, alvo da paixão do português, é
filha do Velho, para além de que, sequer,
ainda está viva. Enganos, interpostas
pessoas, dissimulações: impossível o
amálgama entre essas duas culturas. Sozinho,
de seu sobrenome, não diz respeito apenas ao
Velho africano, mas a cada um dos
personagens deste mundo em patética
contradição.
O osso côncavo e outros poemas,
de Luís Carlos Patraquim (publicado pela
Escrituras Editora), a outra obra
moçambicana a que me referi, se apresenta
como um trabalho poético denso ao extremo,
diria, hermético, no qual ressoam camadas e
camadas de outras tantas obras moçambicanas
e africanas, como numa rede de ecos de uma
família literária autóctone - mas não só.
Para além destas, uma verdadeira comunidade
poética internacional, a começar pela
brasileira, insuflam a leitura de Patraquim.
Drummond, Pessoa, Cesário Verde, Rimbaud,
Herberto Helder, Eliot, Silvia Plath e
tantos outros povoam os interstícios destes
versos de maneira a esta obra se permitir
ser lida, digamos assim, através das outras.
Reinscrição, leitura especular e outrada,
vozes sobrepostas - talvez sejam estas as
referências que lhe digam respeito mais de
perto.
Grávida de outras tantas, a linguagem de
Patraquim comporta, sobretudo, perversões,
distorções e uma sintaxe muitas vezes de
penumbra ou de delírio, como é plausível de
acontecer a um feiticeiro que incorpora
espíritos ou... então a um poeta. Neste
caso, porém, a palavra é quem está dentro
das coisas, como a gruta na terra.
Da literatura angolana, que aqui comparece,
encontramos apenas um romance: o
Predadores, de Pepetela, publicado pela
Língua Geral. Caposso é um bem sucedido
engodo total patrocinado pela confusão e
instabilidade política da Angola dos últimos
30 anos. O romance acompanha sua ascensão e
queda no interior de um capitalismo selvagem
possibilitado pelas lutas nem sempre
socialistas posteriores à independência de
Angola.
Ele percorre em detalhe as sutis manobras
imorais de que o aproveitador se vale no
sentido de galgar postos estratégicos e
oportunistas, sempre garantidos pelas
frestas do poder instituído. Criminoso de
colarinho branco, chantagista, aproveitador
inveterado, oportunista, ladrão, assassino,
falsificador e perjuro – eis alguns dos
dotes desta personagem central que, aliás,
se espraiam promissivamente por entre seus
familiares e descendentes.
Este romance também se ocupa de uma saga
familiar, com a diferença de que esta se
encontra ainda em construção, muito embora
não seja difícil supor o seu desdobramento
nefasto. As interferências do narrador-autor
se incumbem de ir tingindo o relato com uma
tonalidade crítica e irônica, tecendo,
muitas vezes, comentários sobre o seu
próprio procedimento ficcional - também este
posto em questão.
Por último, o representante da literatura
caboverdiana, o livro de poemas Lisbon
Blues, de José Luiz Tavares, também
publicado pela Escrituras, compõe o elenco
de que me ocupo. E, neste caso, temos,
declaradamente, a obra de um “pretoguês” ou
seja: de alguém cuja condição é ser de cor e
imigrante num país estrangeiro, o português.
Sabemos, de antemão, que é com olhos
caboverdianos de migrado que este poeta
flana por Lisboa e por outras cidades de
Portugal.
Livro de um verdadeiro “corsário das ilhas”,
estatuto por meio do qual José Luiz Tavares
se dá a conhecer a seu leitor, ele já aponta
para o índice de insurreição em si impresso,
registrando uma dicção acidentada, com
tropeços propositais e inversões sintáticas,
o que confere a esta obra, por vezes, uma
feição um tanto barroca. Todavia, os poemas
amorosos mudam tal cenário, deixando menos
carregado o universo das imagens e das
palavras que nos parecem insólitas. O que
não os impede de conviver tanto com poemas
fesceninos e de baixos temas, quanto com
poemas preciosistas já no limiar de uma
certa erudição de dicionário, cavando
repetidas sabotagens lingüísticas, e
alongando, por exemplo, versos e versos
através de relações subordinadas quase
intermináveis.
Camões, Drummond, Bandeira, João Cabral,
Pessoa, artes plásticas e, sobretudo Cesário
- enquanto descoberta citadina de latências
rurais de Cabo Verde no deambular por Lisboa
- são interlocuções constantes de Tavares.
Mas é na direção dos sonetos para o seu pé
esquerdo, quebrado, manco, aleijado,
engessado, que a poética deste caboverdiano
pode desembocar nos odores e ruídos de
Orpheu. E assim nomeio a teoria poética de
Tavares: segundo nos segreda ele, foi
soltando... um traque que se fez poeta!
Afinal, a crer em Tavares, “toda a arte é
como um pum - / fica apenas este flato, este
zumzum”.
E para encerrar tentando responder à
pergunta frontal, congemino, a partir desta
última evidência, que as obras africanas
aqui presentes ainda tratam de levantar
laivos de insurreição diante da anterior
metrópole, revertendo sua condição de
periferia em bens inestimáveis. A poética de
bricolage de Patraquim, por exemplo, encena
a produção literária africana em livre
comércio com as européias e brasileiras,
tirando partido delas todas para insinuar os
atropelos políticos de Moçambique e
redesenhar uma outra constelação nacional a
partir da revisão de poetas, romancistas e
contistas, que, deste modo, iluminam um novo
fazer histórico.
A consciência da sobra, do lixo, do
descartável e do mal cheiroso, enquanto
antiga pecha colonialista é revertida, por
José Luiz Tavares, em inigualáveis atributos
poéticos que reduzem o estatuto da propalada
“nobreza” poética, de índole européia, a “pó-de-traque”,
extraindo disso a originalidade de uma
dicção literária extremamente criativa e
crítica.
A tópica da saga, presente na maioria dos
romances, remete a questões acerca do ato de
narrar, num tempo de pós-modernidade e de
estilhaços de narrativas. Porque a saga
familiar aponta para a importância de uma
revisão histórica dos anos do colonialismo e
do salazarismo, do problema da construção
dos nacionalismos, dos enganos e da solidão
– portanto, para o conceito de um narrar
enquanto experiência humana na acepação
benjaminiana - ainda que filtrada por meio
de aparatos pós-modernos, como é o caso do
discurso entrecortado e fragmentário, e dos
recursos da metaficção aqui acionados. As
interlocuções entre Portugal e o Brasil e
entre África e Portugal estão por toda a
parte, questionando e revisitando um nó
expressivo: a miscigenação, a mestiçagem –
outra das tópicas constantes deste elenco de
obras. O que me leva a outra evidência: à
importância fundamental do verbo outrar para
esta nova geração de escritores, verbo tão
inesgotavelmente flexionado por Pessoa.
Obrigada. |