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NICOLAU SAIÃO
DOIS VIVOS E UM MORTO (VIVO) |
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1. Henrik
Edstrom e a reconversão do universo |
Todo o
verdadeiro pintor é de facto um
demiurgo. E, como referiu Pablo
Picasso, “mais que o inspirado é
aquele que inspira”. Que inspira o
desejo de uma nova visão, de uma
nova formulação e, ao mesmo tempo,
fornece as faculdades interiores
para que tal seja não só possível
como concretizável.
Mediante as cores e as formas com
que se erguem os sinais dos três
reinos da natureza, o que este
pintor lírico e surrealista visa é
transfigurar a existência em algo de
significativo e de salubre, indo
para além das condicionantes sociais
e humanas. Uma vez que a pintura
autêntica é uma alquimia espiritual,
que transforma e que faz permanecer
na existência quotidiana os signos
que a sustentam e através dela
permanecem no mundo. |
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Sendo um filho
da Europa do Norte, Henrik Edstrom. aprendeu
bem cedo as lendas dessas terras onde os
gnomos e as fadas dos bosques vivem
paredes-meias com os habitantes dos jardins,
onde os turbilhões de neve nos deixam
adivinhar figuras mágicas ao crepúsculo das
povoações. Onde as cores e os traços, por
seu turno, nas tardes de sol e de bom tempo
possuem uma exactidão precisa e luminosa.
Porque dá mais
facilidade de manejo, sendo mais libertador
do gesto uma vez que confere mais rapidez à
execução, o pintor utiliza preferentemente o
guache e a aguarela, como nas obras (uma
série de 24 pinturas encantadoras e plenas
de frescura) com que ilustrou os poemas do
grande poeta húngaro Attila Joszef.
Henrik Edstrom,
através da sua paleta tão sabedora e livre
como o coração duma criança, viaja pelos
mundos onde dá gosto viver, mas com o
conhecimento que de tal pode ter um animal
quotidiano ou fabuloso entre os bosques e
jardins dos nossos afectos vitais.
Nele habitam o
poeta e o artista - que as cores e seus
prestígios revelam como num encantamento que
a todos é, afinal, íntimo e comunicativo.
Tive o gosto
de o conhecer na biblioteca municipal, em
Portalegre, onde veio há um par de anos
expôr uma surpreendente série de 46 óleos,
guaches, aguarelas e colagens. Eu cumpria
ali os meus últimos dias de funcionário.
Durante duas
horas, na sua voz suavizada pela idade, mas
firme e sugestiva como os versos do
Kalevaala que aliás teve o ensejo de
ilustrar, falou-me de lendas da sua terra,
de projectos e de maneiras de pintar – pois
este pintor-poeta é de igual modo um fabro,
um hacedor no plano das matérias, da forma
concreta pela qual se exerce a arte de
efectivar uma obra que haverá de andar nos
dois planos do tempo: a que se palpa com os
olhos e a que se observa com os dedos das
mãos. Adicionalmente, a que – como a ars
magna, a opus primae – reside e se reconhece
no plano da alma, como nos disse Eyrinée
Philalète. |
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Dias
depois – já ele voava de regresso a
Anneberg, onde nasceu em 1937 - sem
que para tal eu houvesse feito algo
de assinalável vieram trazer-me ao
gabinete um embrulho relativamente
volumoso. Abri-o com expectativa.
Continha dois quadros belíssimos e,
num bilhetinho, vinham os seguintes
dizeres: “Para o amigo NS
intitular como achar melhor”. |
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Estão hoje na
sala da minha casa de Portalegre. Chamam-se,
com efeito, “A partida para a ilha” e “O
príncipe colhendo a estrela” e epigrafam
duas passagens do Kalevaala.
Foi a fórmula
mais adequada que encontrei para lhe
agradecer. |
2. Hélio Rola e os dragões do mar |
Um mundo
feérico, alucinante e encantado de faunas
diversas, de monstros e de meninos, de
bichos que assumem a sua condição de santos
civis e quotidianos visitados pela amargura
e a mais devastadora felicidade. Coisas do
mar, coisas da terra. A preto e branco e a
cores. Olhos que se viram na direcção do
horizonte. Ali no Brasil. Ou seja: ali ao pé
da esquina, ao virar da página e da avenida:
no teu largo, na tua rua, no teu quintal.
Dentro do Brasil e fora do Brasil – no
coração duma floresta da Europa onde se
acocoram os mal-nascidos.
Entre dentes e
entre linhas. Entre deambulações. Entre o
grito e o soluço. Para levar para casa como
recordação intempestiva, para levar a todo o
lado como uma minúscula assombração. Uma
gargalhada louca correndo nos ares como o
trilo duma flauta numa viela onde jazem
carros esventrados, sacos velhos e dejectos
de um mundo supranumerário. E também muitos
lugares de serena contemplação. A tua, a
minha, a alegria dos outros, de todos os que
ainda não se desvaneceram. O adeus que não
cessa, a melancolia de cidades ao alvorecer.
A lua, o sol, um bocejo sonolento no meio da
madrugada. |
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Ao bom calor
do Brasil - aqui mesmo no Alentejo, junto ao
lago dos patos no Palácio de Cristal, numa
simpática tasquinha de Borba. Em Coimbra,
nas terras da Amazónia. Como se o tempo e os
seus contrastes fosse não mais que uns olhos
ouvindo atentamente, orelhas a captarem
todas as cores, a boca e a mão esvoaçantes
que traçam os seus sinais sobre um cantinho
do universo.
Como se tudo e
ainda bem não passasse de um desenho a
tinta-da-china ou então um volteio de guache
enfeitiçado. |
3. Lovecraft e a lua negra |
Em fins de 1979 a revista
norte-americana “Cultural Correspondence”
deu a lume um número duplo (10/11)
intitulado “O surrealismo e os seus
cúmplices populares” mediante o qual foi
pela primeira vez posto em relevo o
importante papel desempenhado na cultura
estadunidense e mundial por determinados
autores e certas manifestações artísticas
consideradas menores pela inteligentsia
académica.
Figuras e personagens dos
comics e dos pulps, do cinema e
da rádio – como O Sombra e Bugs Bunny, Dick
Tracy e Mandrake, autores como Edward
Bellamy e Frank Belknap Long, artistas como
Mel Blanc e Ernie Kovacs - eram ali
destacadamente epigrafados, dando-se notícia
de que era por eles que sem quaisquer
dúvidas passava a imaginação em liberdade
forjando novos lugares de maravilhamento e
lucidez.
Naturalmente que HPL não
podia ficar de fora. E, assim, textos de
Robert Benayoun e Gérard Legrand entre
outros debruçavam-se sobre o grande escritor
e, como corolário, era dada a público um
excerto apropriado da última carta do autor
de
“O que
sussurra na escuridão”.
É precisamente esse pequeno acervo que agora
aqui se apresenta, extraído daquela revista
que me foi oferecida, em 1982, por Mário
Cesariny – grande apreciador de Lovecraft. |
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«Recuando um
pouco no tempo, notar-se-á que antes ainda
de Arthur Machen e Algernon Blackwood, na
sombra gigantesca de Arthur Gordon Pym e
Waldemar, figura Howard Philips Lovecraft
(1890-1937).
Este recluso
de Providence, Rhode Island, não se
contentou apenas com o destilar da polpa dos
pesadelos – aquele horror do tempo e do
espaço assinalado por De Quincey e evocado
por Benjamin Paul Blood em “Pluriverse”.
Engolfado nas
águas das praias de Mu, Lovecraft – na sua
prosa deslocada, forjada nos fornos da
Alquimia, que ele venerava – anunciou o
regresso oculto dos Grandes Antigos.
Faz parte da
essência de tais fantasias o serem estas
propagadas como que através de vibrações
inscritas no próprio coração dos seus
trabalhos posteriores.
Tal facto tem
sido amplamente demonstrado pelo Círculo de
Sauk City – representado entre outros por
August Derleth, Robert Bloch, Hazel Head e
Robert E. Howard, que perpetuaram a lenda
negra de Cthulhu.» - Robert Benayoun
«A grandeza de
Lovecraft reside em nada menos que na
criação de uma mitologia própria que
ridiculariza a “história moderna”.
Difundida, até
à sua morte, através das páginas de revistas
diversas, essa mitologia reflecte um
conhecimento autêntico do oculto, tratado
com inteira liberdade.
Vindos de
planetas desconhecidos desceram à Terra,
muito antes do Homem, fundadores de
religiões cujos vestígios ainda nos rodeiam.
É interessante
verificar que este ponto de partida ilumina
trabalhos certamente desconhecidos de
Lovecraft, tais como a cosmologia glacial de
Horbiger e certos desenvolvimentos patentes
na arqueologia sul-americana (cf. Dennis
Saurat “A Atlântida e o reino dos
gigantes” – Nouvelle Revue Française,
Agosto 1953).
Prevendo - e
depois analisando - uma literatura
pré-diluviana sob parâmetros por si
dirigidos, este escritor irrepreensível e o
seu Círculo proporcionaram-se o luxo de
efectuarem uma verificação pessoal da
mitologia correspondente.
Raramente tem
um tal rigor servido assim para a evocação
das indecifráveis profundezas.» -
Gérard Legrand
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A última
carta de HPL
(fragmento) |
No
decorrer destes últimos tempos, muitos
dos meus correspondentes nesta zona
pestífera têm-me escrito dando-me conta
da Exposição de pinturas fantásticas e
surrealistas que tem estado patente no
Museu de Arte Moderna. Espero que na sua
digressão seja incluída a velha
Providence.
O
acervo de manifestações de outrora –
fantasistas pictóricos tão antigos como
El Greco e o Bosch do fogo do Inferno –
decerto me iria fascinar... Receio,
contudo, que estes lugares não sejam
incluídos no seu rescaldo migratório.
No
geral, não sou todavia um entusiasta por
aí além do surrealismo, visto pensar que
os praticantes dessa escola dão as suas
impressões sub-conscientes através dum
automatismo um pouco leve. Não que as
impressões a que aludo não sejam
potencialmente valiosas, mas a meu ver
tendem para se tornar triviais e com um
significado restrito, excepto nos casos
em que são adequadamente guiadas por um
conceito imaginativo eficaz. Uma obra de
Dali, com o apelido humorístico de “Os
relógios moles” tende a transformar-se
numa redução por absurdo do princípio
fantástico e a exemplificar a decadência
estética manifestada em diversas fases
da nossa era moribunda e, socialmente,
de transição.
Compreendo, no entanto, que esta forma
de expressão seja bem aceite pelos
conhecedores, já que muitas das suas
produções possuem indubitavelmente uma
poderosa frescura e um marcado alcance
imaginativo; tal como o Movimento no seu
todo poderá de facto contribuir com
obras importantes e revivificadoras para
a corrente da Arte.
Não
pode traçar-se uma barreira entre a
chamada fantasia que vem da linha
tradicional e a que se reclama do
denominado surrealismo; nenhumas dúvidas
tenho de que as paisagens de pesadelo de
alguns dos seus cultores correspondem,
como o fazem tantas outras criações
actuais, aos horrores iconográficos
atribuídos por diversos escritores de
ficção a artistas alucinados ou
perseguidos pelos seus demónios. Se
fossem reais um Richard Upton Pickman ou
um Félix Ebbonly (*) estou certo de que
teriam criado grande número de
inquietantes e blasfemas telas a óleo
para a recente Exposição(...)
(*)
Artistas fictícios de contos de HPL |
ALGUNS POEMAS DE
LOVECRAFT |
A KLARKASH-TON, SENHOR DE AVEROIGNE |
Dentre
farrapos de nuvens negra torre se destaca;
Ao redor, um
imaculado e opressivo bosque.
Sombras que
pairam e o silencio, mofo e putrefacção
E uma mortalha
cinzenta sobre velhas lápides
Há muito tempo
desmoronadas.
Nenhum pé fez
restolhar, nenhum pio de ave quebrou
A mortal
solidão desta alongada noite
Mas às vezes o
ar freme com um breve estremecer
Quando na
torre brilha um mortiço luzeiro.
Aqui, na
solidão, mora aquele cujas mãos
Traçaram
estranhas obras por que o Mundo se amedronta
E que em
indecifráveis hieroglifos revelou
O que palpita
além dos mundos estelares.
Sombrio Senhor
de Averoigne, tuas janelas abrem-se
A visões de
sonho que outros não podem acolher.
Nota
– Homenagem a Clark
Ashton Smith - evidência que, por cabala
fonética,
se transfigura no título – é o derradeiro
poema de HPL, que o enviou a E.Hoffman Price
dois meses antes de falecer. |
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AO PEQUENO SAM PERKINS |
No velho
jardim nocturno
Uma profunda
pena vai caindo
Como se o peso
do silencio e da sombra
No ar voassem.
Com oculto
pesar se inclina a erva
Incapaz de
esquecer o dia de ontem
Em que umas
leves patas a tocavam
E já são só
lembrança.
Nota
– Sam Perkins era
um gatito de HPL, cuja morte causou
a este fundo desgosto. |
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À DONA SOFIA SIMPLE, RAINHA DO CINEMA |
Esse mutável
rosto, em frente ao nosso olhar
De alegrias e
tristezas vai desvendando um mar
E o trejeito
risonho assombra-nos deveras.
Mas duma vez
por todas, aprende a actuar!
Teus olhos
brilham mais do que as estrelas
E a tua boca é
como o arco de Cupido.
Bem rosadas e
firmes tens as maçãs do rosto.
Então porque
serás tão docemente estúpida?
O herói só de
ver-te fica mais do que rendido
E já só quer
apod’rar-se da tua mãozinha bela.
Ah! o pobre
palerma, que lástima nos causa,
Esta vítima
mais do teu riso de tôla!
E sendo assim,
porque choramos nós
Ao ver o
trágico destino que te cabe?
No fundo é
natural – por um mísero tostão
Alguma
maravilha queríamos ver então?!!
Nota
– Incursão nada
habitual de HPL pelos domínios da sátira
aplicada a um facto do
mundo
quotidiano. Lovecraft - como se referiu na
Introdução
– gostava muito
de cinema,
dos “serials” aos depois tidos como
clássicos. |
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A UM SONHADOR |
Observo o teu
rosto pálido e tranquilo
Junto à luz
solitária de uma vela;
A borda escura
das pálpebras, sob a qual
O olho dorme,
alheio a este mundo.
E, olhando-te,
quisera conhecer
As veredas por
onde o sonho te conduz.
As fantasmais
regiões que com olhos velados
Nem tu nem eu,
de aqui, podemos ver
Pois também
eu, dormindo, contemplei
Coisas que
agora só a memória guarda;
Nesta
semiconsciência anseio olhar de novo
Os cenários
que a ti apenas se desvendam.
Também eu
conheci os altos cimos de Thock;
E os vales de
Pnath, de oníricas formas cheios;
E as
catacumbas de Zinn... Por isso entendo bem
Porque desejas
tu que a vela fique acesa.
Mas...que
coisa é essa que subtilmente corre
Sobre o teu
rosto e os teus barbados lábios?
Que medo te
perturba o coração e a mente
Que até a tua
fronte já de suores se perla?
Velhas visões
despertam... E os teus olhos abertos
Brilham,
negros de nuvens de outros firmamentos;
E como se o
fizera por demoníaca mirada
Vejo-me a
esvoaçar através da noite encantada.
Nota – Este
poema, extraído do acervo de poemas
fantásticos, tem o tom de relatos como “Os
demónios de Randolph Carter” ou de “A
música de Erich Zann”, seus parentes
directos na geografia e na encenação.
Textos e traduções de NS |
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Nicolau Saião:
«Homenagem a Lovecraft» |
NICOLAU
SAIÃO [FRANCISCO GARÇÃO]
[Monforte do
Alentejo,1949, Portugal]
Poeta,
publicista, actor-declamador e
artista plástico. Efectuou palestras
e participou em mostras de Mail Art
e exposições em diversos países.
Livros: “Os objectos inquietantes”,
“Flauta de Pan”, “Os olhares
perdidos”, “Passagem de nível”, “O
armário de Midas”, “Escrita e o seu
contrário” (a publicar). Tem
colaboração dispersa por jornais e
revistas nacionais e estrangeiros
(Brasil, França, E.U.A. Argentina,
Cabo Verde...).
CONTATO: nicolau49@yahoo.com |
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