|
Editorial |
|
Leitura de Herberto Helder na
óptica da ótica
Maria Estela Guedes |
Último capítulo do
livro Herberto Helder ao rubro |
|
Coisas
cantantes e suas vocalizações |
Gaude, Virgo mater Christi
Quae per aurem concepisti
Missal de Salzburgo
fiat cantus! e faça-se o canto esdrúxulo
que regula a terra,
o canto comum-de-dois,
o inexaurível,
Herberto Helder, Ofício Cantante, p.
540 |
|
Os Alertas
do Google trazem de tudo sobre Herberto
Helder, por isso também piadas como a do
desconhecido que posta, no seu blogue:
Aproveito esta onda de veracidade para dizer
que hoje de manhã falei cerca de quarenta minutos ao telefone
com Herberto Helder
que, curiosamente, não poupou elogios sobre
o meu talento musical.
(1)
Trata-se
evidentemente de uma falsa informação, que
transcrevo por assinalar, além do impacto do
autor nos leitores, a mais forte dominante
da sua obra: a música, o ritmo e o som, e,
em paralelo, o privilegiado instrumento que
os produz, a voz. Photomaton & Vox,
intitula o poeta um dos seus livros mais
autobiográficos. Retrato vocal e não só
visual, retrato do poeta enquanto cantor – o
aedo que, em tempos antigos, viajava pela
Grécia, detendo-se nos palácios a cantar
poemas heróicos, acompanhado pela música da
lira. Seus sucessores foram na Idade Média
os jograis e os trovadores, que na Primavera
viajavam de castelo em castelo, acompanhados
por saltimbancos e bailadeiras, a apresentar
as suas novidades artísticas. Persiste a
tradição desta itinerância e interacção, nos
nossos dias, caso evidente da Incomunidade
(2),
criada por Alberto A. Miranda. No seu espaço
virtual, congrega artistas das várias
modalidades que realizam encontros em
diversas partes do mundo, com mais
frequência em Portugal e Espanha. São os
filo-cafés, conhecidos familiarmente por «filós».
Quanto a Herberto Helder, da arte de bem
trovar há vestígios diversos no Ofício
Cantante, v.g. em «A faca não
corta o fogo», e da itinerância já tivemos
oportunidade de falar, como outros, a
exemplo de Marco Silva, que, ao analisar a
colectânea de contos Os Passos em Volta,
mergulhou na principal fonte desta temática
de cariz autobiográfico.
O apego ao
canto, muitíssimo óbvio em toda a obra,
passa facilmente para o público,
relacionando de imediato o poeta com o que é
do domínio da acústica. O interesse
patenteia-se em títulos, como Ofício
Cantante, e no corpo dos textos, como
temática e mito pessoal. Manifesta-se no
ritmo e na harmonia musical dos poemas, na
presença de efeitos sonoros vários,
onomatopeias, sequências linguísticas em
línguas desconhecidas ou imaginárias, no
recurso a estruturas repetitivas, à maneira
de refrão, e mais notoriamente na oralidade.
A oralidade
está sempre presente, às vezes manifesta no
discurso directo, fusão que leva o poema a
migrar para o interior do teatro. E migra
também para o mundo antigo, primordial, em
que não existia escrita ainda. Faz parte da
oralidade quer o tom pomposo, do discurso
próprio do púlpito e da cátedra, quer o
baixo, dado pela presença dos vocábulos
licenciosos, no último livro, A Faca não
Corta o Fogo. A acentuação errada, nesse
livro e na edição que utilizo do Ofício
Cantante, faz parte ainda da oralidade,
e só se justifica a meus olhos como gesto de
desagrado face à má pronúncia dos termos em
declamações alheias. É assim que Herberto
escreve o comparativo «cômo», entre exemplos
vários, decerto para contrariar a tendência
de quem diz «còmo» e «cumo». De qualquer modo,
trata-se de uma atitude forçada, pouco
inteligível, mesmo a título de contestação
seja lá do que for.
Que o poema
é canto, ou que o ofício de poeta estabelece
estreita cooperação com a música, além de
ficar expresso de inúmeras maneiras nos
textos, a primeira delas através da
metapoesia, pois um dos temas privilegiados
dos poemas é o poema, e neste falar do poema
é de canto e ritmo que se fala em primeira
mão, revela-o um aspecto que vale a pena
aflorar, uma vez que demonstra a riqueza e
diversidade dos campos lexicais envolvidos
na obra toda. É o dos instrumentos de
música, e de coisas, seres e situações
cantantes. Além do aparelho vocal, aparecem
numerosos instrumentos musicais: cítaras,
alaúdes, violinos, guitarras, tambores,
sinos, clavicórdios, liras, um instrumento
natural e não fruto de tecnologia, o búzio,
e um termo que, na sua ambiguidade, umas
vezes se integra no âmbito da fisiologia e
da anatomia, e outras alude ao instrumento
tão caro a Herberto Helder, por
simultaneamente se ligar à música barroca e
à música sacra, o órgão. Sino é metáfora de
cabeça e, no texto 1 de «Poemacto», o poeta
imagina o seu corpo uma colina,
escada de estrela, nata,
flecha. Para chegarmos ao ponto
que mais importa, é por fim objecto
cantante.
Já o
sabíamos: a metáfora herbertiana hibrida
tudo, não espantando assim que qualquer
objecto se torne um instrumento produtor de
sons, o que sugere a ideia de a principal
acção do poema ser o canto. Acto de resto
radical, quando se diz: «A morte canta-me ao
fundo. / É um canto absoluto.».
Transcrevamos os primeiros versos de «Poemacto»,
livro em que bastante aparece o canto, por
se tratar de textos metapoéticos, para
vermos agora algumas inusitadas coisas
cantantes com as suas ainda mais inusitadas
vocalizações:
Deito-me, levanto-me, penso que é enorme
cantar.
Uma vara canta branco.
Uma cidade canta luzes.
[…]
Canto na solidão.
O amor obsessivo.
A obsessiva solidão cantante.
Ofício Cantante,
p. 105
«Poemacto» é
um filão sonoro, dionisíaco na produção de
imagens acústicas. É o vinho que alimenta
esta sequência: «Eu vivo / cantando as
mulheres incendiárias / e a imensa solidão /
verídica de um copo. / Porque um copo canta
na minha boca./ Canta a bebida em mim. /
Veridicamente, eu canto no mundo.».
Herberto
Helder, em tempos longínquos, trabalhou na
rádio, o que pode ter alimentado nele a
vocação da música, ou pode tê-lo tornado
mais consciente das suas próprias tendências
e potencialidades. Hoje continua a ouvir
rádio, nítida sendo a sua paixão pelo que
ouve:
e lixo e pinto e nimbo e ponho sob a mão
atenta
esquerda
e as frias forças da vista a crua
artesania, e ouço agora na rádio Bach, meu
Deus, e Haendel, e peço:
leiam-me dos livros
o curso de sôbolos rios que vão, ou
Lucrécio:
que
o mundo é um caos sumptuoso — este é o
segredo:
música, e eu estou bêbado, e é tão amargo o
tempo,
tão irrevocável, quero eu dizer: doce é
ouvir o que se ouve muito junto ao
ouvido,
enquanto se responde ao movimento dos dedos,
(3) |
Tal
como acontece com os perfumes, a
música coloca-nos muito alto, por
muito que tanta dela tenda para o
baixo, para a invocação dos poderes
do maligno, quando o ritmo estimula
o bater dos pés no chão. A música é
dionisíaca, embebeda e contagia.
Isso acontece, diz o poeta a
propósito do «Grupo 5», então
apodado de o melhor conjunto pop
português, porque o segredo de
certa música é o de não se dirigir
ao ouvido, sim ao corpo, à mind
– termo inglês que usa para apontar
espírito e cabeça. E traça ali uma
linha que põe em correlação a música
pop e o teatro da crueldade
de Antonin Artaud, para assentar a
sua ideia num teatro acústico
físico, que atinge os nervos, e
entra para dentro dos pulmões. (4)
«Grupo 5», em «Música corpo a corpo» |
|
|
A veemência
com que se fala do assunto acha o seu
espelho na veemência com que a música entra
então no corpo. Um estranho exemplo disso
ocorre no poema I de «Tríptico», que
desenvolve o mote «Transforma-se o amador na
coisa amada», quando ouvimos um martelo a
bater e depois é o próprio amador que entra
pelos ouvidos, feito sonoridade:
O amador é um martelo que esmaga.
Que transforma a coisa amada.
Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher
que escuta
fica com aquele grito para sempre na cabeça
É assim que o som se torna biológico no
Ofício Cantante, de uma oralidade ou
visceralidade que recorda em nós o facto de
que a música pode ter realmente origem
biológica, à maneira dos animais que
produzem sons que não servem só para
comunicar ou para se eco-localizarem,
julgando-se que tenham também função de
convívio social, o que nos leva a considerar
que outros animais, além de nós, são dotados
de capacidades artísticas. |
|
Ouves o
grito dos mortos? |
É preciso
criar palavras, sons, palavras vivas
obscuras, terríveis.
- Ouves o grito dos mortos?
Herberto Helder, Húmus
Nous avons un organe qui répond à l’ouïe,
savoir,
celui de la voix ; nous n’en avons pas de
même qui réponde à la vue,
et nous ne rendons pas les couleurs comme
les sons.
Jean-Jacques Rousseau, Émile |
|
O Ofício
Cantante está repleto de sons, porém é
raro o poeta dar a entender que ouve ou
definir o que o ouvido identifica. A maior
massa de notações no campo semântico do
ouvido não diz respeito à percepção
sensorial, sim ao que lhe responde, para
retomar a epígrafe de Rousseau: ao ouvido
responde a produção de sons. O poema é uma
voz, o poema canta-se a si mesmo, o poema
pode até ser cosmogónico, dando vida ao
mundo. Para isso aparecem a boca, a garganta
e os pulmões, aquilo que se situa do lado do
emissor e não tanto do lado da recepção.
Importa mais ao poeta a criação, a
potencialidade demiúrgica e transformadora
da voz.
É raro então
sabermos o que ouve o poeta, para além de
ser muito patente em toda a obra que as
palavras do poema ressoam na sua cabeça.
Porém um texto em especial existe a
contar-se no número das excepções, «Húmus».
Pode ser que a excepcionalidade se deva à
circunstância de Húmus, na origem,
ser uma obra de Raul Brandão, de cujas
«palavras, frases, fragmentos, imagens,
metáforas», Herberto se apropriou como
material, ou húmus, na criação de um
poema próprio. Esse foi igualmente o
procedimento de Joëlle Ghazarian, em
Cântico do Crime, livro «escrito em
uníssono com Herberto Helder». Uníssono, um
único som, a questão é portanto a do ouvido
e não a da vista, ligada esta à escrita.
Recuamos, com esta espécie de aprendizagem
praticada pelos dois escritores, ao tempo
dos mestres, o da oralidade. No seu universo
imaginário, eles não lêem os mestres,
ouvem-nos, segundo o procedimento iniciático
de passagem de testemunho «de boca a
orelha».
Temos então
as palavras que se ouvem, entre dois
extremos, os mais patentes no Ofício
Cantante: grito e silêncio. A palavra
rompe o silêncio entre o poeta e o mundo,
instaurando assim a oralidade. E com isto
Herberto tenta levar até aos limites da
ruptura o mundo da escrituralidade que é o
seu, gritando. Ora é o grito, e a
circunstância de os mortos estarem vivos nos
poemas, o mais forte traço de união entre a
poética herbertiana e a de Raul Brandão. Por
isso, o que mais chama a atenção, em
«Húmus», é o grito dos mortos. Entidades
disseminadas na bruma, os revenants,
esses mortos-vivos que regressam dos confins
da memória, de qualquer interior de palavra
se fazem ouvir:
É preciso criar palavras, sons, palavras vivas, obscuras, terríveis.
Uma candeia vem de mão de mulher
em mão de mulher, debruça-se
sobre uma grandeza.
Aumenta.
— Quem grita?
Só a água fala nos buracos.
Tocamo-nos todos como as árvores de uma floresta
no interior da terra. Somos
um reflexo dos mortos, o mundo
não é real. Para poder com isto e não morrer
de espanto
— as palavras, palavras.
A lua
de coral sobe
no silêncio, por trás
da montanha em osso. É o silêncio.
O silêncio e o que se cria no silêncio.
E o que remexe no silêncio.
É uma voz.
A morte.
Tudo produz
som, não só em «Húmus» como em toda a obra.
Neste caso, chegam aos ouvidos a conversa da
água, a dor das árvores, o silêncio, e o
seu próprio som, visto que o silêncio é audível.
O discurso directo, por sua vez, intensifica
a ideia de que o poema viajou para um espaço
privilegiado da oralidade, o palco.
Em «Húmus»
temos a oportunidade de testar mais um
aspeto característico da personalidade
poética de Herberto, a intensificação, ou
arte levada ao rubro, no caso vertente
inserida no sentido do ouvido e
vocalizações. Não é só a questão de os
mortos gritarem, possibilidade tão remota
que nem os morcegos os ouviriam, sim a de se
propor uma audição tão perfeita como a
destes animais que se deslocam no escuro
orientando-se pelo ouvido, e mediante este
fenómeno da eco-localização também conseguem
detetar a presença de presas minúsculas como
insetos e aranhas a tecerem a sua teia:
Chegava
a ouvir o contacto das aranhas devorando-se
no fundo.
Mais
adiante, imaginando os mortos nas suas
criptas, de novo o sentido do ouvido se
intensifica para perceber o que seria
inaudível a humanos, «o lento trabalho / das
aranhas no fundo». No extremo, idêntica a
impossibilidade à de orelhas humanas
captarem o ruído das aranhas e o grito dos
mortos, a notação da interioridade do canto,
da presença de vozes interiores e da
circunstância de o poeta se cantar a si
mesmo, ao escrever estes versos
extraordinários:
-
Sentiste
o teu pensamento avançar
mais um
passo
no silêncio?
Sentiste-o avançar no
silêncio?
O ouvido de
Herberto Helder, como se vai notando, revela
enorme amplitude, percebe desde o grito ao
silêncio, e abre-se, culturalmente, desde os
Concertos Brandeburgueses de Bach até
ao apreço pelo swing de uma
passageira Gabriela Schaff pelo panorama da
música portuguesa dos anos oitenta. Ele
mesmo, dotado de bela voz, a usou
esporadicamente, quando, nos tempos de
juventude, vagabundeou pelas nubladas
cidades portuárias do Norte da Europa,
fazendo escala como cantor de tango em bares
de marinheiros. |
|
Herberto Helder gravou um disco a
dizer poemas seus: Num tempo
sentado, título retirado do primeiro
verso do longo poema «Num tempo
sentado em seda, uma mulher imersa /
cantava o paraíso» - atentemos em
que no segundo verso da citação o
poeta eleva a beleza do canto à sublimidade do jardim do Éden.
Desdobrável que acompanha o single
«Num tempo sentado», de Herberto
Helder, com a impressão integral do
poema que lhe dá título. |
|
|
Canto por
necessidade |
eles dizem que a beleza perdeu a aura, e eu não percebo, creio
que é um tema geral da crítica académica: dessacralização, etc., mas
tenho tão pouco tempo, eis o que penso:
Herberto Helder, Ofício Cantante, p.
549 |
|
Na Internet,
além dos poemas escritos, circulam também os
do disco «Num tempo sentado», editado na
Valentim de Carvalho, com os poemas
ditos por Herberto Helder, na sua
característica voz marcada por um resíduo de
pronúncia madeirense. Lê-se na obra de Maria
de Fátima Marinho que se editaram dois
singles do poeta em 1968, mas não os
conheço. Tenho apenas o desdobrável que faz
parte de «Num tempo sentado», com o poema
homónimo. Para contributo biográfico,
informo que um poema dito pelo autor em um
dos dois discos mencionados, «Minha cabeça
estremece», posto em linha no TriploV (5), ocupa
desde há muito tempo o número 1 no top da
tabela de audiência. Hoje, dia 19 de
Novembro de 2009, 22:24h em Portugal (16:25h
locais, em Houston, Texas), a página vai em
8626 visionamentos
(programa Awstats).
Em Outubro
passado, registou
15785.
Deve
atingir em média 14 a 15 mil
visionamentos/audições por mês.
No YouTube
aparecem alguns trabalhos sobre textos de
Herberto Helder. Entre eles, menciono um
vídeo-poema baseado no livro Os Passos em
Volta, texto-base da performance de
Sílvia C. Silva no filo-café de Lamego,
realizado a 2 de Outubro de 2009. Selecciono
este trabalho e não outros, por ter sido
coordenado por mim o filó, para criar o
espaço-tempo de apresentação do meu livro
«Geisers», publicado na Incomunidade. Já o
vídeo-poema foi editado na Pulga Estúdios.
Decorreu no Teatro Ribeiro Conceição o
espectáculo, que contou com a presença de
outros herbertianos, caso de Rui Mendes,
além de Sílvia C. Silva, e só não recebeu
colaboração de Joëlle Ghazarian por esta
escritora de origem arménia não poder actuar
à sexta-feira, dia santo em que
caiu o filo-café.
Nos anos 70,
a abertura à música por parte da geração
mais culta tinha limitações de perfil
político. Se Herberto Helder era capaz de
simpatizar com Gabriela Schaff, já o mesmo
não acontecia com outros cantores
portugueses. É com ironia que fala das
voltas dadas ao chapelinho de João Maria
Tudela, e recorre, para dar força à posição,
a um comentário acerbo de Fernando Lopes
Graça na Seara Nova, a mandar passear
a «nova música portuguesa». Seguindo, nessa
extraordinária entrevista a Carlos do Carmo
em que a bem dizer não houve entrevista
nenhuma, publicada no Notícia sob o
título «Canto por necessidade», refere-se a
uma sacramental pergunta de José Nuno
Martins aos cantores que ia revelando a um
público de olhos cravados no pequeno
écran, no programa Zip-Zip.
Abro um
parêntesis por duas razões, ambas
engraçadas. A primeira por precisar de
corrigir o título da entrevista a Carlos do
Carmo de que me estou a servir como fonte de
informação. De facto, foi dado à luz o
texto, com o título «Canto por necessidade»,
a 17 de Julho de 1971, assinado por Luís
Bernardes e com fotos de Joaquim Cabral.
Porém a entrevista saiu da tipografia com as
linhas e parágrafos trocados. Por isso, na
semana seguinte, a 24 de Julho, foi
publicado o mesmo texto, já escorreito e
conforme com o original saído das mãos de
Luís Bernardes/Herberto Helder, desta feita
com o título «Vê o que eles fizeram da minha
canção, mãe...». A Mélanie a explicar o
incidente, o que traz para cima da mesa mais
um exemplo da música popular que nesses idos
de setenta agradavam ao poeta. A minha fonte
é a segunda versão da entrevista.
Segundo
motivo para este excurso, lembrar que o
rapaz mencionado na citação que segue, com
voz de trombone e dobradiças nas partes mais
inusitadas do corpo, José Nuno Martins,
homem da rádio, da televisão, e de mais
«Loucuras», escrevia, tal como Herberto
Helder, no Notícia, de Luanda.
Colaborador ocasional, as suas reportagens
não incidiam na música popular brasileira,
de que tem sido divulgador enorme, sim em
corridas de automóveis em que participava.
Creio não me enganar ao recordar tê-lo visto
a assinar uma sobre um Paris-Dakar.
É um
curioso retrato, do impacto do Zip-Zip,
programa muito inovador na época, no estrato
mais popular da gente lisboeta, e também
nele, Herberto Helder, que mais uma vez
verificamos ser pessoa aberta às mais
diversas tendências e origens da arte, e é
sobretudo um curioso retrato do
rapaz-trombone com as suas dobradiças:
Às segundas-feiras, toda a gente se coçava
para ver o Zip-Zip na televisão. Eu também.
Costumava intrometer-me num bar rasteiro e
bom, habitado por «chauffeurs» de táxi,
camionistas e pessoal das oficinas de
automóveis.
Eram umas noites bacanas — com cervejas,
tremoços e Zip-Zip. Um rapaz altíssimo, com
voz de trombone e dobradiças nas partes mais
inesperadas do corpo, apresentava os
trovadores. A seguir, eles cantavam. O
trombone-dobradiças perguntava porque era
que eles cantavam. Eles diziam.
A meu lado, um camionista buzinou: «Sabe o
que é que o gajo vai dizer? Vai dizer que
canta para comunicar com os outros». E não é
que o anjo da anunciação responde ao
trombone-dobradiças: «Para comunicar com os
outros» —?!
Raposas espertas, estes malandros do povo,
com uma cerveja na frente e uma saborosa
malícia dentro da cabeça e para fora da
boca. Enquanto os anjos expelem a
demagogiazinha. Afinal tão ingénua, meninos,
tão angélica!
Tudo isto me ocorreu antes de meter conversa
com Carlos do Carmo, que nunca ouvi cantar,
mas que me dizem andar também às voltas com
o António Gedeão. Peçonha. Como se vê, sou
uma pessoa de espírito corrupto. Pois foi
com este espírito corrupto que avancei pelas
palavras fora. A minha ideia era
perguntar-lhe logo porque cantava ele.
Esperava que me dissesse ser «para comunicar
com os outros». |
|
Não, Carlos do Carmo não era um
baladeiro nem um badaleiro, e ainda
menos um «anjo da anunciação». Por
isso surpreendeu o desconfiado
jornalista, que teve de se render ao
cantor, ao responder aquilo que o
poeta Herberto Helder podia
responder também: «Canto por
necessidade».
Herberto Helder entrevista o cantor Carlos do Carmo,
em «Canto por necessidade». Foto:
Joaquim Cabral
|
|
Para
encerrar este sonoro capítulo, o que se
ouve, ao bom estilo de um poeta ao rubro,
estabelece um gradiente que vai do grito dos
mortos ao ruído cósmico, enfim, vai do
extremo audível ao inaudível, porque o poeta
escreve para o silêncio (6),
e porque a sua posição no mundo é a da
«solidão cantante». É a grande cerimónia do
silêncio, antecessor da grande revelação, e
grande revelação, para Herberto Helder e na
sua obra, é aquilo que lhe dá sentido, e a
única coisa que tem sentido para ele é a
beleza.
eu que nunca te falei da falta de sentido,
porque o único sentido, digo-to agora, é a
beleza mesmo,
Herberto Helder, Ofício Cantante, p.
549 |
|
(6) «Escreve-se para o silêncio», diz Herberto
Helder em Photomaton & Vox, p. 27. |
|
Britiande,
20.11.09 |
|
MARIA ESTELA
GUEDES (Britiande, Portugal, 1947)
Escritora, editora, agente cultural.
Alguns livros publicados:
Herberto Helder, Poeta Obscuro
(Lisboa, Moraes Editores);
Ernesto de Sousa - Itinerário dos
itinerários (Lisboa, ed. Museu
Nacional de Arte Antiga);
Tríptico a Solo (São Paulo,
Editora Escrituras); Chão de
Papel (Lisboa, Apenas Livros);
Geisers (Bembibre, ed.
Incomunidade). Obras levadas à cena:
O Lagarto do Âmbar (ACARTE);
A Boba (teatro Experimental
de Cascais).
Currículo em:
http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
Proprietária do TriploV.
CONTATO:
estela@triplov.com
FLORIANO
MARTINS (Fortaleza, Brasil, 1957)
Poeta, ensaísta,
tradutor, editor e artista plástico.
Participou de várias mostras
coletivas:
“O surrealismo”
(Escritório de Arte Renato Magalhães
Gouvêa, São Paulo, 1992),
“Lateinamerika und der Surrealismus”
(Museo Bochum, Köln, 1993), “I
Muestra Internacional de Poesía
Visual y Experimental” (Escuela de
Artes Plásticas Armando Reverón,
Caracas, 2009), entre outras. Em
maio de 2000 realizou o espetáculo
Altares do Caos, no Museu de
Arte Contemporânea do Panamá. Em
2006, a mostra Teatro Impossível,
reuniu leitura de poemas, canções,
colagens e fotografias (Centro
Cultural Banco do Nordeste,
Fortaleza). Coordena a coleção
“Ponte Velha”, de autores
portugueses, da Escrituras Editora.
Em 2009, publicou os seguintes
livros:
A alma desfeita em
corpo
(poemas,
Lisboa), Fuego en
las cartas (antologia poética,
Espanha),
A inocência de Pensar
(ensaios, Brasil) e
Escritura
conquistada.
Conversaciones con
poetas de Latinoamérica.
2 tomos
(entrevistas, Venezuela).
CONTATO: floriano.agulha@gmail.com |
|
|