Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

PÁGINA INDEX Número 03|Janeiro de 2010
 

NÚMERO 03

Janeiro de 2010

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Autores

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Editorial
 
Leitura de Herberto Helder na óptica da ótica
Maria Estela Guedes
Último capítulo do livro Herberto Helder ao rubro

Coisas cantantes e suas vocalizações

Gaude, Virgo mater Christi
Quae per aurem concepisti

Missal de Salzburgo

 

fiat cantus! e faça-se o canto esdrúxulo que regula a terra,
o canto comum-de-dois,
o inexaurível,

Herberto Helder, Ofício Cantante, p. 540

Os Alertas do Google trazem de tudo sobre Herberto Helder, por isso também piadas como a do desconhecido que posta, no seu blogue:

Aproveito esta onda de veracidade para dizer que hoje de manhã falei cerca de quarenta minutos ao telefone com Herberto Helder que, curiosamente, não poupou elogios sobre o meu talento musical. (1) 

Trata-se evidentemente de uma falsa informação, que transcrevo por assinalar, além do impacto do autor nos leitores, a mais forte dominante da sua obra: a música, o ritmo e o som, e, em paralelo, o privilegiado instrumento que os produz, a voz. Photomaton & Vox, intitula o poeta um dos seus livros mais autobiográficos. Retrato vocal e não só visual, retrato do poeta enquanto cantor – o aedo que, em tempos antigos, viajava pela Grécia, detendo-se nos palácios a cantar poemas heróicos, acompanhado pela música da lira. Seus sucessores foram na Idade Média os jograis e os trovadores, que na Primavera viajavam de castelo em castelo, acompanhados por saltimbancos e bailadeiras, a apresentar as suas novidades artísticas. Persiste a tradição desta itinerância e interacção, nos nossos dias, caso evidente da Incomunidade (2), criada por Alberto A. Miranda. No seu espaço virtual, congrega artistas das várias modalidades que realizam encontros em diversas partes do mundo, com mais frequência em Portugal e Espanha. São os filo-cafés, conhecidos familiarmente por «filós». Quanto a Herberto Helder, da arte de bem trovar há vestígios diversos no Ofício Cantante, v.g. em «A faca não corta o fogo», e da itinerância já tivemos oportunidade de falar, como outros, a exemplo de Marco Silva, que, ao analisar a colectânea de contos Os Passos em Volta, mergulhou na principal fonte desta temática de cariz autobiográfico.

O apego ao canto, muitíssimo óbvio em toda a obra, passa facilmente para o público, relacionando de imediato o poeta com o que é do domínio da acústica. O interesse patenteia-se em títulos, como Ofício Cantante, e no corpo dos textos, como temática e mito pessoal. Manifesta-se no ritmo e na harmonia musical dos poemas, na presença de efeitos sonoros vários, onomatopeias, sequências linguísticas em línguas desconhecidas ou imaginárias, no recurso a estruturas repetitivas, à maneira de refrão, e mais notoriamente na oralidade.

A oralidade está sempre presente, às vezes manifesta no discurso directo, fusão que leva o poema a migrar para o interior do teatro. E migra também para o mundo antigo, primordial, em que não existia escrita ainda. Faz parte da oralidade quer o tom pomposo,  do discurso próprio do púlpito e da cátedra, quer o baixo, dado pela presença dos vocábulos licenciosos, no último livro, A Faca não Corta o Fogo. A acentuação errada, nesse livro e na edição que utilizo do Ofício Cantante, faz parte ainda da oralidade, e só se justifica a meus olhos como gesto de desagrado face à má pronúncia dos termos em declamações alheias. É assim que Herberto escreve o comparativo «cômo», entre exemplos vários, decerto para contrariar a tendência de quem diz «còmo» e «cumo». De qualquer modo, trata-se de uma atitude forçada, pouco inteligível, mesmo a título de contestação seja lá do que for.

Que o poema é canto, ou que o ofício de poeta estabelece estreita cooperação com a música, além de ficar expresso de inúmeras maneiras nos textos, a primeira delas através da metapoesia, pois um dos temas privilegiados dos poemas é o poema, e neste falar do poema é de canto e ritmo que se fala em primeira mão, revela-o um aspecto que vale a pena aflorar, uma vez que demonstra a riqueza e diversidade dos campos lexicais envolvidos na obra toda. É o dos instrumentos de música, e de coisas, seres e situações cantantes. Além do aparelho vocal, aparecem numerosos instrumentos musicais: cítaras, alaúdes, violinos, guitarras, tambores, sinos, clavicórdios, liras, um instrumento natural e não fruto de tecnologia, o búzio, e um termo que, na sua ambiguidade, umas vezes se integra no âmbito da fisiologia e da anatomia, e outras alude ao instrumento tão caro a Herberto Helder, por simultaneamente se ligar à música barroca e à música sacra, o órgão. Sino é metáfora de cabeça e, no texto 1 de «Poemacto», o poeta imagina o seu corpo uma colina, escada de estrela, nata, flecha. Para chegarmos ao ponto que mais importa, é por fim objecto cantante.

Já o sabíamos: a metáfora herbertiana hibrida tudo, não espantando assim que qualquer objecto se torne um instrumento produtor de sons, o que sugere a ideia de a principal acção do poema ser o canto. Acto de resto radical, quando se diz: «A morte canta-me ao fundo. / É um canto absoluto.».

Transcrevamos os primeiros versos de «Poemacto», livro em que bastante aparece o canto, por se tratar de textos metapoéticos, para vermos agora algumas inusitadas coisas cantantes com as suas ainda mais inusitadas vocalizações:

Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar.

Uma vara canta branco.

Uma cidade canta luzes.

[…]

Canto na solidão.

O amor obsessivo.

A obsessiva solidão cantante.

Ofício Cantante, p. 105

 

«Poemacto» é um filão sonoro, dionisíaco na produção de imagens acústicas. É o vinho que alimenta esta sequência: «Eu vivo / cantando as mulheres incendiárias / e a imensa solidão / verídica de um copo. / Porque um copo canta na minha boca./ Canta a bebida em mim. / Veridicamente, eu canto no mundo.».

Herberto Helder, em tempos longínquos, trabalhou na rádio, o que pode ter alimentado nele a vocação da música, ou pode tê-lo tornado mais consciente das suas próprias tendências e potencialidades. Hoje continua a ouvir rádio, nítida sendo a sua paixão pelo que ouve:

e lixo e pinto e nimbo e ponho sob a mão atenta

esquerda

e as frias forças da vista a crua

artesania, e ouço agora na rádio Bach, meu Deus, e Haendel, e peço:

leiam-me dos livros

o curso de sôbolos rios que vão, ou Lucrécio:

que

o mundo é um caos sumptuoso — este é o segredo:

música, e eu estou bêbado, e é tão amargo o tempo,

tão irrevocável, quero eu dizer: doce é ouvir o que se ouve muito junto ao

ouvido,

enquanto se responde ao movimento dos dedos, (3)

Tal como acontece com os perfumes, a música coloca-nos muito alto, por muito que tanta dela tenda para o baixo, para a invocação dos poderes do maligno, quando o ritmo estimula o bater dos pés no chão. A música é dionisíaca, embebeda e contagia. Isso acontece, diz o poeta a propósito do «Grupo 5», então apodado de o melhor conjunto pop português, porque o segredo de certa música é o de não se dirigir ao ouvido, sim ao corpo, à mind – termo inglês que usa para apontar espírito e cabeça. E traça ali uma linha que põe em correlação a música pop e o teatro da crueldade de Antonin Artaud, para assentar a sua ideia num teatro acústico físico, que atinge os nervos, e entra para dentro dos pulmões. (4)

 

 

 

«Grupo 5», em «Música corpo a corpo»

A veemência com que se fala do assunto acha o seu espelho na veemência com que a música entra então no corpo. Um estranho exemplo disso ocorre no poema I de «Tríptico», que desenvolve o mote «Transforma-se o amador na coisa amada», quando ouvimos um martelo a bater e depois é o próprio amador que entra pelos ouvidos, feito sonoridade:

O amador é um martelo que esmaga.

Que transforma a coisa amada.

Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher

que escuta

fica com aquele grito para sempre na cabeça

 

É assim que o som se torna biológico no Ofício Cantante, de uma oralidade ou visceralidade que recorda em nós o facto de que a música pode ter realmente origem biológica, à maneira dos animais que produzem sons que não servem só para comunicar ou para se eco-localizarem, julgando-se que tenham também função de convívio social, o que nos leva a considerar que outros animais, além de nós, são dotados de capacidades artísticas.

Ouves o grito dos mortos?

É preciso
criar palavras, sons, palavras vivas
obscuras, terríveis.

- Ouves o grito dos mortos?

Herberto Helder, Húmus

 

Nous avons un organe qui répond à l’ouïe, savoir,
celui de la voix ; nous n’en avons pas de même qui réponde à la vue,
 et nous ne rendons pas les couleurs comme les sons.
Jean-Jacques Rousseau, Émile

O Ofício Cantante está repleto de sons, porém é raro o poeta dar a entender que ouve ou definir o que o ouvido identifica. A maior massa de notações no campo semântico do ouvido não diz respeito à percepção sensorial, sim ao que lhe responde, para retomar a epígrafe de Rousseau: ao ouvido responde a produção de sons. O poema é uma voz, o poema canta-se a si mesmo, o poema pode até ser cosmogónico, dando vida ao mundo. Para isso aparecem a boca, a garganta e os pulmões, aquilo que se situa do lado do emissor e não tanto do lado da recepção. Importa mais ao poeta a criação, a potencialidade demiúrgica e transformadora da voz.

É raro então sabermos o que ouve o poeta, para além de ser muito patente em toda a obra que as palavras do poema ressoam na sua cabeça. Porém um texto em especial existe a contar-se no número das excepções, «Húmus». Pode ser que a excepcionalidade se deva à circunstância de Húmus, na origem, ser uma obra de Raul Brandão, de cujas «palavras, frases, fragmentos, imagens, metáforas», Herberto se apropriou como material, ou húmus, na criação de um poema próprio. Esse foi igualmente o procedimento de Joëlle Ghazarian, em Cântico do Crime, livro «escrito em uníssono com Herberto Helder». Uníssono, um único som, a questão é portanto a do ouvido e não a da vista, ligada esta à escrita. Recuamos, com esta espécie de aprendizagem praticada pelos dois escritores, ao tempo dos mestres, o da oralidade. No seu universo imaginário, eles não lêem os mestres, ouvem-nos, segundo o procedimento iniciático de passagem de testemunho «de boca a orelha».

Temos então as palavras que se ouvem, entre dois extremos, os mais patentes no Ofício Cantante: grito e silêncio. A palavra rompe o silêncio entre o poeta e o mundo, instaurando assim a oralidade. E com isto Herberto tenta levar até aos limites da ruptura o mundo da escrituralidade que é o seu, gritando. Ora é o grito, e a circunstância de os mortos estarem vivos nos poemas, o mais forte traço de união entre a poética herbertiana e a de Raul Brandão. Por isso, o que mais chama a atenção, em «Húmus», é o grito dos mortos. Entidades disseminadas na bruma, os revenants, esses mortos-vivos que regressam dos confins da memória, de qualquer interior de palavra se fazem ouvir:

 É preciso criar palavras, sons, palavras vivas, obscuras, terríveis.

Uma candeia vem de mão de mulher

em mão de mulher, debruça-se

sobre uma grandeza.

                                  Aumenta.

                                                  — Quem grita?

Só a água fala nos buracos.

 

Tocamo-nos todos como as árvores de uma floresta

no interior da terra. Somos

um reflexo dos mortos, o mundo

não é real. Para poder com isto e não morrer de espanto

— as palavras, palavras.

 

                                      A lua de coral sobe

no silêncio, por trás

da montanha em osso. É o silêncio.

O silêncio e o que se cria no silêncio.

E o que remexe no silêncio.

                                            É uma voz.

A morte.

 

Tudo produz som, não só em «Húmus» como em toda a obra. Neste caso, chegam aos ouvidos a conversa da água, a dor das árvores, o silêncio,  e o seu próprio som, visto que o silêncio é audível. O discurso directo, por sua vez, intensifica a ideia de que o poema viajou para um espaço privilegiado da oralidade, o palco.

Em «Húmus» temos a oportunidade de testar mais um aspeto característico da personalidade poética de Herberto, a intensificação, ou arte levada ao rubro, no caso vertente inserida no sentido do ouvido e vocalizações. Não é só a questão de os mortos gritarem, possibilidade tão remota que nem os morcegos os ouviriam, sim a de se propor uma audição tão perfeita como a destes animais que se deslocam no escuro orientando-se pelo ouvido, e mediante este fenómeno da eco-localização também conseguem detetar a presença de presas minúsculas como insetos e aranhas a tecerem a sua teia:

                                                        Chegava

a ouvir o contacto das aranhas devorando-se

no fundo.

 

Mais adiante, imaginando os mortos nas suas criptas, de novo o sentido do ouvido se intensifica para perceber o que seria inaudível a humanos, «o lento trabalho / das aranhas no fundo». No extremo, idêntica a impossibilidade à de orelhas humanas captarem o ruído das aranhas e o grito dos mortos, a notação da interioridade do canto, da presença de vozes interiores e da circunstância de o poeta se cantar a si mesmo, ao escrever estes versos extraordinários:

                                    - Sentiste

o teu pensamento avançar

                                     mais um passo

no silêncio?

                 Sentiste-o avançar no silêncio?

 

O ouvido de Herberto Helder, como se vai notando, revela enorme amplitude, percebe desde o grito ao silêncio, e abre-se, culturalmente, desde os Concertos Brandeburgueses de Bach até ao apreço pelo swing de uma passageira Gabriela Schaff pelo panorama da música portuguesa dos anos oitenta. Ele mesmo, dotado de bela voz, a usou esporadicamente, quando, nos tempos de juventude, vagabundeou pelas nubladas cidades portuárias do Norte da Europa, fazendo escala como cantor de tango em bares de marinheiros.

Herberto Helder gravou um disco a dizer poemas seus: Num tempo sentado, título retirado do primeiro verso do longo poema «Num tempo sentado em seda, uma mulher imersa / cantava o paraíso» - atentemos em que no segundo verso da citação o poeta eleva a beleza do canto à sublimidade do jardim do Éden.
 

 



Desdobrável que acompanha o single «Num tempo sentado», de Herberto Helder, com a impressão integral do poema que lhe dá título.

Canto por necessidade

eles dizem que a beleza perdeu a aura, e eu não percebo, creio

que é um tema geral da crítica académica: dessacralização, etc., mas

tenho tão pouco tempo, eis o que penso:

Herberto Helder, Ofício Cantante, p. 549

Na Internet, além dos poemas escritos, circulam também os do disco «Num tempo sentado», editado na Valentim de Carvalho, com os poemas ditos por Herberto Helder, na sua característica voz marcada por um resíduo de pronúncia madeirense. Lê-se na obra de Maria de Fátima Marinho que se editaram dois singles do poeta em 1968, mas não os conheço. Tenho apenas o desdobrável que faz parte de «Num tempo sentado», com o poema homónimo. Para contributo biográfico, informo que um poema dito pelo autor em um dos dois discos mencionados, «Minha cabeça estremece», posto em linha no TriploV (5), ocupa desde há muito tempo o número 1 no top da tabela de audiência. Hoje, dia 19 de Novembro de 2009, 22:24h em Portugal (16:25h locais, em Houston, Texas), a página vai em 8626 visionamentos (programa Awstats). Em Outubro passado, registou 15785. Deve atingir em média 14 a 15 mil visionamentos/audições por mês.

No YouTube aparecem alguns trabalhos sobre textos de Herberto Helder. Entre eles, menciono um vídeo-poema baseado no livro Os Passos em Volta, texto-base da performance de Sílvia C. Silva no filo-café de Lamego, realizado a 2 de Outubro de 2009. Selecciono este trabalho e não outros, por ter sido coordenado por mim o filó, para criar o espaço-tempo de apresentação do meu livro «Geisers», publicado na Incomunidade. Já o vídeo-poema foi editado na Pulga Estúdios. Decorreu no Teatro Ribeiro Conceição o espectáculo, que contou com a presença de outros herbertianos, caso de Rui Mendes, além de Sílvia C. Silva, e só não recebeu colaboração de Joëlle Ghazarian por esta escritora de origem arménia não poder actuar à sexta-feira, dia santo em que caiu o filo-café.

Nos anos 70, a abertura à música por parte da geração mais culta tinha limitações de perfil político. Se Herberto Helder era capaz de simpatizar com Gabriela Schaff, já o mesmo não acontecia com outros cantores portugueses. É com ironia que fala das voltas dadas ao chapelinho de João Maria Tudela, e recorre, para dar força à posição, a um comentário acerbo de Fernando Lopes Graça na Seara Nova, a mandar passear a «nova música portuguesa». Seguindo, nessa extraordinária entrevista a Carlos do Carmo em que a bem dizer não houve entrevista nenhuma, publicada no Notícia sob o título «Canto por necessidade», refere-se a uma sacramental pergunta de José Nuno Martins aos cantores que ia revelando a um público de olhos cravados no pequeno écran, no programa Zip-Zip.

Abro um parêntesis por duas razões, ambas engraçadas. A primeira por precisar de corrigir o título da entrevista a Carlos do Carmo de que me estou a servir como fonte de informação. De facto, foi dado à luz o texto, com o título «Canto por necessidade», a 17 de Julho de 1971, assinado por Luís Bernardes e com fotos de Joaquim Cabral. Porém a entrevista saiu da tipografia com as linhas e parágrafos trocados. Por isso, na semana seguinte, a 24 de Julho, foi publicado o mesmo texto, já escorreito e conforme com o original saído das mãos de Luís Bernardes/Herberto Helder, desta feita com o título «Vê o que eles fizeram da minha canção, mãe...». A Mélanie a explicar o incidente, o que traz para cima da mesa mais um exemplo da música popular que nesses idos de setenta agradavam ao poeta. A minha fonte é a segunda versão da entrevista.

Segundo motivo para este excurso, lembrar que o rapaz mencionado na citação que segue, com voz de trombone e dobradiças nas partes mais inusitadas do corpo, José Nuno Martins, homem da rádio, da televisão, e de mais «Loucuras», escrevia, tal como Herberto Helder, no Notícia, de Luanda. Colaborador ocasional, as suas reportagens não incidiam na música popular brasileira, de que tem sido divulgador enorme, sim em corridas de automóveis em que participava. Creio não me enganar ao recordar tê-lo visto a assinar uma sobre um Paris-Dakar.

 É um curioso retrato, do impacto do Zip-Zip, programa muito inovador na época, no estrato mais popular da gente lisboeta, e também nele, Herberto Helder, que mais uma vez verificamos ser pessoa aberta às mais diversas tendências e origens da arte, e é sobretudo um curioso retrato do rapaz-trombone com as suas dobradiças:

Às segundas-feiras, toda a gente se coçava para ver o Zip-Zip na televisão. Eu também. Costumava intrometer-me num bar rasteiro e bom, habitado por «chauffeurs» de táxi, camionistas e pessoal das oficinas de automóveis.

Eram umas noites bacanas — com cervejas, tremoços e Zip-Zip. Um rapaz altíssimo, com voz de trombone e dobradiças nas partes mais inesperadas do corpo, apresentava os trovadores. A seguir, eles cantavam. O trombone-dobradiças perguntava porque era que eles cantavam. Eles diziam.

A meu lado, um camionista buzinou: «Sabe o que é que o gajo vai dizer? Vai dizer que canta para comunicar com os outros». E não é que o anjo da anunciação responde ao trombone-dobradiças: «Para comunicar com os outros» —?!

Raposas espertas, estes malandros do povo, com uma cerveja na frente e  uma saborosa malícia dentro da cabeça e para fora da boca. Enquanto os anjos expelem a demagogiazinha. Afinal tão ingénua, meninos, tão angélica!

Tudo isto me ocorreu antes de meter conversa com Carlos do Carmo, que nunca ouvi cantar, mas que me dizem andar também às voltas com o António Gedeão. Peçonha. Como se vê, sou uma pessoa de espírito corrupto. Pois foi com este espírito corrupto que avancei pelas palavras fora. A minha ideia era perguntar-lhe logo porque cantava ele. Esperava que me dissesse ser «para comunicar com os outros».

Não, Carlos do Carmo não era um baladeiro nem um badaleiro, e ainda menos um «anjo da anunciação». Por isso surpreendeu o desconfiado jornalista, que teve de se render ao cantor, ao responder aquilo que o poeta Herberto Helder podia responder também: «Canto por necessidade».

 

 

 

 

 

 

Herberto Helder entrevista o cantor Carlos do Carmo, em «Canto por necessidade». Foto: Joaquim Cabral

Para encerrar este sonoro capítulo, o que se ouve, ao bom estilo de um poeta ao rubro, estabelece um gradiente que vai do grito dos mortos ao ruído cósmico, enfim, vai do extremo audível ao inaudível, porque o poeta escreve para o silêncio (6), e porque a sua posição no mundo é a da «solidão cantante». É a grande cerimónia do silêncio, antecessor da grande revelação, e grande revelação, para Herberto Helder e na sua obra, é aquilo que lhe dá sentido, e a única coisa que tem sentido para ele é a beleza.

 

 

eu que nunca te falei da falta de sentido,
porque o único sentido, digo-to agora, é a beleza mesmo,

Herberto Helder, Ofício Cantante, p. 549

(1) http://mascarachicote.blogspot.com/2009/11/aos-66-anos-lili-canecas-faz-furor-ate.html

(2) http://incomunidade.blogspot.com/

(3) Ofício Cantante, p. 570

(4) «Música corpo a corpo». Notícia, Luanda, 11 de Setembro de 1971.

(5) http://www.triplov.com/herberto_helder/Minha-cabeca-estremece/index.htm

(6) «Escreve-se para o silêncio», diz Herberto Helder em Photomaton & Vox, p. 27.

Britiande, 20.11.09

MARIA ESTELA GUEDES (Britiande, Portugal, 1947)
Escritora, editora, agente cultural. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro (Lisboa, Moraes Editores); Ernesto de Sousa - Itinerário dos itinerários (Lisboa, ed. Museu Nacional de Arte Antiga); Tríptico a Solo (São Paulo, Editora Escrituras); Chão de Papel (Lisboa, Apenas Livros); Geisers (Bembibre, ed. Incomunidade). Obras levadas à cena: O Lagarto do Âmbar (ACARTE); A Boba (teatro Experimental de Cascais).
Currículo em:  http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
 Proprietária do TriploV.
CONTATO: estela@triplov.com

FLORIANO MARTINS (Fortaleza, Brasil, 1957)
Poeta, ensaísta, tradutor, editor e artista plástico. Participou de várias mostras coletivas:
“O surrealismo” (Escritório de Arte Renato Magalhães Gouvêa, São Paulo, 1992), “Lateinamerika und der Surrealismus” (Museo Bochum, Köln, 1993), “I Muestra Internacional de Poesía Visual y Experimental” (Escuela de Artes Plásticas Armando Reverón, Caracas, 2009), entre outras. Em maio de 2000 realizou o espetáculo Altares do Caos, no Museu de Arte Contemporânea do Panamá. Em 2006, a mostra Teatro Impossível, reuniu leitura de poemas, canções, colagens e fotografias (Centro Cultural Banco do Nordeste, Fortaleza). Coordena a coleção “Ponte Velha”, de autores portugueses, da Escrituras Editora. Em 2009, publicou os seguintes livros: A alma desfeita em corpo (poemas, Lisboa), Fuego en las cartas (antologia poética, Espanha), A inocência de Pensar (ensaios, Brasil) e Escritura conquistada. Conversaciones con poetas de Latinoamérica. 2 tomos
(entrevistas, Venezuela).

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