“Por
hábil que seja, uma propaganda não pode ter
êxito sem um certo pretexto na realidade.(…)
A meu ver, para que uma mistificação seja
bem sucedida, deve conter pelo menos um
elemento qualquer de verosimilhança.”
Tomás o Cínico, in
“A Escola dos Ditadores”, Ignazio
Silone
1.
Em carta a Oliveira Martins, datada de
Dezembro de 1870, Alexandre Herculano a dado
passo afirmou o seguinte: “Entre os
homens novos parece-me que está em moda
tratar ora com desdém excessivo, ora com
demasiada cólera, o liberalismo.(…)Pelo
menos, um pequeno serviço nos deve, em
Portugal, a geração nova. Foi o
proporcionar-lhe, à custa de torrentes de
sangue, nosso e alheio, a faculdade de
evangelizarem o republicanismo e a
democracia, sem perigo de lhes escapar a
cabeça de cima dos ombros, ou sequer de lhes
adejar em volta do leito do repouso, o medo
dos tiranos.(…) Eu, meu caro democrata e
republicano, nunca fui muito para as ideias
que mais voga têm hoje entre os moços(…)”.(1)
A asserção atrás exposta, por aquilo que
possui de emblemático, parece-me
suficientemente esclarecedora para poder ser
aventada como norteadora do pensamento
político-social de Herculano. Três vectores
fundamentais ressaltam imediatamente da sua
análise: a crença nas virtudes do
Liberalismo, a luta contra o Absolutismo, a
crítica às doutrinas democráticas e
republicanas. Os dois últimos aspectos
acabarão, afinal, por ser uma consequência
do primeiro.(2)
As questões do posicionamento
ideológico e da trajectória política de
Herculano não devem ser consideradas como
tendo uma importância secundária em relação
à temática de estudo que agora nos ocupa, de
maneira a serem trazidas à colação apenas
como meras ilustrações da sua mundividência.
Muito pelo contrário, influíram
decisivamente em toda a sua obra, mesmo na
que se nos afigura como mais exclusivamente
literária, influenciando o seu percurso
enquanto escritor e condicionando, de forma
evidente, a sua intervenção social de
intelectual respeitado.
Herculano iniciara a sua actividade
pró-liberal durante um período especialmente
repressivo do regime miguelista,
amadurecendo aquele ideário com o exílio e
com as lutas civis que se seguiram ao
desembarque do Mindelo. Consumada a
derrocada definitiva da velha ordem
Absolutista com a vitória liberal, esta
última estatuíra uma nova relação de forças
no edifício social português. Embora a
partir de então inserida sobretudo no campo
liberal – o mesmo é dizer, no campo burguês
– a problemática relacionada com a ascensão
da(s) burguesia(s) iria ainda constituir um
implacável foco de conflitos. Até à
definitiva vitória e consequente acomodação
da “aristocracia das riquezas”, para
parafrasear Passos Manuel, a partilha dos
despojos deixados pelo Antigo Regime seria
um terreno particularmente fértil de
dissensões. As elites liberais, e com ela
Herculano, não se eximiram de tomar posição
nesses choques, respondendo de acordo com o
seu sentimento politico-social ou, tantas
outras vezes, consoante os seus interesses
financeiros mais imediatos.
Referindo-se ao posicionamento
sócio-político do autor de Eurico,
escreve Vítor Neto: “Em alternativa ao
jusdivinismo por um lado e à soberania
popular por outro, Herculano exigia como
norma a razão pública transcendente em
relação ao indivíduo e em oposição à teoria
da vontade geral. Assim, a razão pública
fundamentava o domínio político de uma
aristocracia que teria a função de pensar
pela totalidade dos cidadãos”.(3) Esta
sua concepção do liberalismo – já que este
foi revestido, entre nós, de suficiente
latitude para permitir interpretações, por
vezes tão diferenciadas e antagónicas como
as protagonizadas por “setembristas” ou
“cartistas” – se o colocou na facção mais
conservadora e logo anti-democrática,
impôs-lhe igualmente a necessidade de
preparar o povo para um quotidiano burguês.
Obviamente, este “povo” que Herculano tinha
em mente era, senão em exclusivo pelo menos
maioritariamente, aquele que podia
aproveitar as benesses decorrentes da
instituição dos princípios liberais da
liberdade individual e de iniciativa,
possibilitadores quer da dinâmica negocial
quer da actividade eleitoral. Ou seja e por
outras palavras, os portugueses possidentes,
no verdadeiro sentido jurídico deste termo.
Isto não significa que a restante população
não tenha igualmente sido alvo das suas
atenções, mesmo no que se refere às questões
do ensino. Contudo, julgo dever colocar-se
preferencialmente essas suas perspectivas
sob a óptica da satisfação de uma utilidade
pública e social, encarada do ponto de vista
liberal, complemento lógico de uma concepção
harmónica de sociedade que tinha os estratos
superiores como seus destinatários
privilegiados.
Os frutos resultantes da convergência
entre a sua crença no progresso da
civilização e a necessidade que
existiria, em sua opinião, de agir sobre
o presente, transformando-o, seriam
posteriormente colhidos e mal digeridos pela
segunda geração romântica, como terei ainda
oportunidade de explicitar. Entre eles
encontrava-se, com grande poder de atracção,
Eurico o Presbítero.
2.
Independentemente do grau atingido pelo
pedagogismo militante de Herculano nas suas
várias obras literárias, variável devido ao
íntimo entrelaçado que obrigatoriamente
estabeleceu com algo tão marcadamente
individual como sejam, por um lado, a
necessidade vital da criação artística e,
por outro, o desejo de partilha do objecto
criado ao qual pode estar ligado, de forma
mais ou menos evidente, um nunca
negligenciável desejo de permanência, aquele
só poderia obter resultados válidos se da
parte dos receptores houvesse uma
predisposição inicial para a aceitação da
mensagem.
Diz Fernando Marques da Costa: “O
derrube das instituições e ideologias do
Antigo Regime vai ocorrer a par do pleno
desenvolvimento do romantismo, termo que
define não só um estilo literário, mas,
essencialmente, um modo de estar na vida,
uma outra atitude perante o universo, um
outro entendimento das relações entre os
homens, uma outra concepção do papel do
indivíduo na sociedade e mesmo uma outra
moralidade”.(4)
O contexto mental existente aquando da
divulgação dos seus primeiros trabalhos era
de molde a encorajar iniciativas que
contribuíssem para melhor estabelecer o
conjunto das práticas culturais
especificamente burguesas, à imagem daquilo
que do estrangeiro, sobretudo de Inglaterra
e da Alemanha, era possível ver ou na
maioria dos casos, entrever. De igual modo,
foi com prazenteira aquiescência que o
crescente público ledor assistiu às
inovações protagonizadas por Alexandre
Herculano, em grande medida decorrentes de
sugestões hauridas durante o período do
exílio, acabando aquelas por revestir o
carácter de directivas literárias,
esculpindo o rosto do romantismo português e
finalizando este por ser elevado ao estatuto
de símbolo cultural e geracional.
Antecipando as honras do volume, que
ocorreriam em 1844, alguns esboços do
Eurico foram pré-publicados na
Revista Universal Lisbonense dirigida
por António Feliciano de Castilho, e n’O
Panorama, espaços privilegiados de
veiculação da estética literária do
romantismo e da cosmovisão burguesa que
contaram com a profunda adesão das elites
liberais. Sintomaticamente, o primeiro
possuía o sobrenome de “Jornal dos
Interesses Phisicos, Moraes e Intelectuais”,
enquanto a editora do segundo era uma
“Sociedade Propagadora dos Conhecimentos
Úteis”.
O sucesso foi enorme. Iniciada na
cultura literária, admiradora de Walter
Scott, a burguesia – e aqui utilizo
propositadamente o singular – descobriu na
temática histórica difundida por Herculano
diversas razões para a sua anuência: para
alguns, tratava-se de criticar e morigerar
os presentes, fautores de um quotidiano
conturbado, com o exemplo e o culto das
virtudes dos antepassados; para muitos
outros, foi a vontade de reafirmação da sua
apetência pela liderança social, através da
reivindicação de uma identidade assente na
ancestralidade e no nacionalismo;
provavelmente para a maioria, o factor de
aprovação ter-se-á prendido à atracção
sentida pela forte sentimentalidade
difundida pela obra, várias vezes
exacerbada, mas que uma leitura superficial
e mesmo auto-condicionada seleccionou,
instituiu como paradigma e, afinal,
desvirtuou.
3.
A interpretação que Alexandre Herculano
gostaria que fosse feita deste seu trabalho
seria certamente a protagonizada pelo grupo
anteriormente referido em primeiro lugar. Na
verdade, o próprio Herculano já havia
enfatizado, nas suas Cartas sobre a
História de Portugal, que a sua
concepção de História não se atinha em
considerar esta como um “passatempo vão”
para o espírito mas que, muito pelo
contrário, desejava que com ela se tirasse “ensino
e sabedoria para o presente e futuro”
(Carta V).
Parece, pois, pacífico o facto de que
também a História foi considerada pelo
escritor como um campo privilegiado de
aprendizagens e logo de divulgação
obrigatória. A subsequente análise sobre a
forma como essa prática moralizadora de raiz
especificamente historicista se relacionou e
harmonizou com as demais vertentes
pedagógicas (já evidenciadas quando fiz
referência às suas ideias políticas e
estético-literárias) originam uma reflexão
que concluí, no meu caso pessoal, pela
atribuição ao romance histórico
herculaniano do papel de síntese no
que se refere ao seu projecto de intervenção
social.
Devo contudo esclarecer que quando aqui
aludo a síntese, não estou com isto a
significar uma necessária subalternização
dos seus restantes trabalhos, nem sequer a
concluir pelo objectivo de Herculano em
operar nos seus romances históricos uma
deliberada súmula de todos os seus campos de
interesse. O que pretendo evidenciar, isso
sim, é a interessante singularidade que
estas obras revestem, por nelas confluírem
díspares áreas da produção do escritor, em
relação às quais obraram como aglutinantes
tanto a necessidade de doutrinação e de
pedagogia por si sentida quanto, também, o
seu próprio talento.
Se não é tarefa árdua a verificação das
dosagens dos elementos que foram utilizados
por Alexandre Herculano na confecção dos
seus romances históricos, mais difícil se
torna conseguir discernir o peso relativo da
cada um deles na obtenção do resultado
final. Na opinião de Maria Laura Bettencourt
Pires, “(…) para Herculano, um romance
‘histórico’ é principalmente um estudo
histórico a que se faz a concessão de um
enredo, para que ele conquiste assim maior
número de leitores, que não conseguiriam
sentir interesse por um estudo que não fosse
amenizado” (5). Esta é uma
questão central, importante para que
possamos definir as condicionantes genésicas
que determinaram o conteúdo do Eurico.
Em causa estará, assim, nada menos do que a
determinação de uma prevalência, relacionada
com um aparente conflito dicotómico:
observa-se a valorização da teorização
histórica em detrimento da estética, ou
vice-versa? Ou, por outras palavras: nos
seus romances, Herculano foi sobretudo um
historiador ou um escritor ficcional?
A minha opinião não vai no sentido da
que é seguida pela estudiosa anteriormente
citada, embora tal não signifique que tenha
necessariamente que lhe ser antagónica. Na
minha perspectiva, a fronteira que
estabelecerá essa separação é extremamente
ténue. Tal posição poderá parecer um
paradoxo, se não mesmo um ilogismo, se
considerarmos que nos estamos a reportar a
um conflito antitético. Contudo, será talvez
passível de alguma indulgência se eu disser
que considero os romances históricos de
Herculano, entre eles o Eurico, obras
investidas de um certo dicroísmo, de que
alguns críticos se não têm querido furtar
quando operam as suas análises. A obra
Eurico, o Presbítero é um excelente
exemplo para clarificar o que acabo de
afirmar.
Estabelecidas que foram, desta maneira,
algumas referências introdutórias, avançarei
pois para a análise que me propus
construir.
4.
Na Carta V das suas Cartas sobre a
História de Portugal, Herculano alertou
para a conveniência de se estudar
preferencialmente a história medieval, como
modo de obtenção de ensinamentos, pois esse
período seria “o embrião do terceiro
estado, do monarquismo constitucional, da
descentralização municipalista e da
enfiteuse”(6), “época análoga da
contemporânea, porque nela igualmente nova
ordem surgiria da desintegração e da
perturbação(…)”(7).
Como ele próprio refere na nota 30 do
seu Eurico, ao escrever este livro
tivera como objectivo “pintar os homens
da época de transição”, o que
significava que se demarcava conceptual e
metodologicamente da generalidade dos
historiadores portugueses, aos quais
reprovava a pouca profundidade decorrente de
uma errada concepção de História. É que, na
sua opinião, seria necessário efectuar um
percurso global em torno do período que se
pretendia estudar, de maneira a abarcar toda
a complexa rede de relações aí entretecidas
pelo ser humano, não se atendendo apenas aos
aspectos mais directamente institucionais.
Só assim, defendia Herculano, seria possível
integrar os homens na época em que viveram,
por forma a que nem uns nem outra se
enunciassem aos olhos do observador de forma
parcelar e portanto errada. A verificar-se
este erro, o labor de Clio seria mais
pernicioso do que benéfico: a aprendizagem
que dele se poderia extrair estaria,
consequentemente, condicionada pela negativa
e portanto votada à inutilidade.
A escolha do período da dominação
visigótica da Península Ibérica como palco
deste seu romance prendeu-se com razões de
índole afectiva, ligadas a considerações
estético-literárias. Como o próprio escritor
fez ainda questão de salientar na nota a que
anteriormente fiz referência, esse período
era por si considerado como “uma época de
transição, digamos assim, dos tempos
heróicos da história moderna para o período
da cavalaria, brilhante ainda mas já de
dimensões ordinárias”. Já na primeira
nota que apôs a esta obra, Herculano havia
referido que “o período visigótico deve
ser psra nós como os tempos homéricos da
Península”. O clima de virtuoso e
dramático heroísmo que se expressa em todo o
livro está bem de acordo com estas
considerações.
Essa época, no entanto, levantou a
Herculano vários problemas. Ao desejo de a
retratar, nela situando o seu trabalho,
contrapuseram-se várias dúvidas relacionadas
com questões de natureza puramente
cognoscitiva. Será em parte dentro desta
perspectiva que deveremos entender a
indefinição de Herculano em caracterizar o
resultado final da sua labuta. (8).
Se esse resultado não se coadunava com o
que havia produzido Walter Scott, “modelo
e desesperação de todos os romancistas”,
como lhe chamou o escritor português, tal
facto deve-se à diferente condição de que a
História gozou na produção ficcional destes
dois autores. Como tenho feito notar, a
remissão para uma época distante da coetânea
não era, para Alexandre Herculano, um mero
artifício estético-filosófico, pelo que todo
o enquadramento histórico da acção não
poderia no seu caso ser passível de
possibilitar uma leitura aligeirada dos
eventos históricos. Comparando Herculano com
o escritor escocês, escreveu T.F.Earle a
este propósito: “Nos seus romances há
muito material imaginativo, mas quase sempre
ele continua consciente da necessidade de
distinguir esse material da informação
historicamente exacta.(…) Em equilíbrio
entre o real e o irreal, a vida e a morte,
ele expressa o dilema do romancista
histórico que deseja recrear o passado,
embora sabendo que é impossível fazê-lo com
veracidade total”. (9).
Aprofundemos estas afirmações, as quais
me parecem ser portadoras da chave para a
compreensão do lugar que a ciência histórica
ocupou no Eurico.
O misto de maravilha e surpresa com que
os contemporâneos do escritor de Vale de
Lobos receberam as suas ficções históricas,
estará umbilicalmente relacionado com a
capacidade que este demonstrou possuir na
representação de uma época, aptidão essa
alicerçada num grande trabalho de pesquisa
documental. Ao lermos o Eurico,
facilmente nos apercebemos que a economia do
romance depende em grande medida da
reconstrução do contexto histórico (aspecto
manifesto com a análise das notas anexadas
por Herculano) e da fidelidade que o autor
sempre procurou manter nessa exposição.
T.F.Earle teve já oportunidade de analisar,
mesmo que de forma breve, a veracidade de
alguns eventos históricos aí relatados.
(10). Com Lopes de Mendonça, somos assim
impelidos a partilhar da opinião de que o
escritor parece ter acompanhado os actantes
às batalhas, com todo o apreço que uma
afirmação desta natureza comporta. (11).
Contudo, independentemente deste
assentimento, apenas parcialmente
compartilho da ideia de que o objectivo de
Herculano, com a construção de Eurico, o
Presbítero, foi a produção de um
trabalho histórico, tendo-o coadjuvado com
um enredo para melhor atingir os propósitos
pedagógicos que sempre perseguiu. Teremos
igualmente que considerar, no Eurico,
outros aspectos fundacionais desta obra, os
quais, se são a um tempo relativizadores
daquela tese, serão por outro lado
propiciadores de uma melhor compreensão do
romance. Estou a referir-me, mais
concretamente, à profunda relação mantida
pela filosofia política e pelo expediente de
acção social de Herculano com a concepção de
História do escritor; estou a considerar,
igualmente, a estética literária do
Romantismo, por ele recebida, adoptada e
claramente representada nos seus romances
históricos.
O livro está recheado de exemplos deste
dois elementos co-determinantes. No capítulo
IV, ponto 3, Herculano associa o estudo da
História à possibilidade de extracção de
virtuosas lições, quando o presbítero Eurico
numa das suas elegias lamenta o presente do
império godo e teme pelo seu futuro. (12). A
memória, recuperando as “tradições dos
avós”, esquecidas da sociedade pelo
viver dissoluto dos seus maiores, é para o
sacerdote motivo de suave consolo e de
fortalecimento espiritual, tendo uma
importante quota parte de responsabilidade
na sua posterior transfiguração, como
veremos. Além deste aspecto, não deveremos
subalternizar as revelações do
posicionamento político-social de Herculano:
se as elites visigóticas eram dissolutas,
não seria do povo, “prostituído às
paixões dos poderosos” que haveria de
esperar-se a redenção da pátria. Foi esse
mesmo povo, “ignorante e impiamente
crédulo” (Cap. VII, ponto 1), quem
desconfiou das atitudes de Eurico, apenas o
deixando em paz – já que não poderia
compreender a sua “vida de excepção”
– quando se apercebeu que o sacerdote
escrevia poemas e cânticos religiosos bem
aceites pela hierarquia religiosa. O que
aqui refiro retrata perfeitamente a
consideração que merecia a Herculano a
eterna dualidade e o permanente antagonismo
dos princípios da liberdade e da
desigualdade humanas.
Por outro lado, será também incorrecto
relativizarmos o que de mais especificamente
literário o Eurico apresenta.
Poderemos aí discernir todo um programa
estético-filosófico de cariz marcadamente
Romântico. Assim, o sacerdote-poeta numa das
suas reflexões fornece ao leitor algumas
conclusões a que chegou, as quais, por serem
propaladas pelo herói da obra, podem
perfeitamente revestir a forma de preceitos
para uso quotidiano: “É então que para
ele há unicamente uma vida real – a íntima;
unicamente uma linguagem inteligível – a do
bramido do mar e do rugido dos ventos;
unicamente uma convivência não travada de
perfídia – a da solidão” (Cap. IV, ponto
4). Outras características do sentir
Romântico marcam ainda a sua presença: a
infelicidade decorrente do amor; a poesia
como culto, requerendo portanto uma
iniciação; a forte presença do saudosismo e
do fatalismo; a defesa da imaginação e da
fantasia, embora nunca desregradas; a
sublimação da mulher, fruto de uma veemente
paixão; a voluptuosidade da morte.
Se o respeito pela fidelidade histórica
era importante para Herculano, se lhe
repugnavam as concepções de História que não
compreendessem o contemplar de todas as
faces dessa “coluna polígona de mármore”,
se do mesmo modo considerava “um crime”
que quem pudesse exercitar o “magistério
moral” de “recordar o passado”
não o fizesse, de igual forma não sentia
aversão a que, no romance histórico – e
apenas aqui – a imaginação fosse utilizada
para suprir a História, como referiu
na Introdução do Eurico.
Mas atenhamo-nos a isto. A “corrente
eléctrica e misteriosa que, partindo da
imaginação, vai despertar os tempos que
foram do seu calado sepulcro” (Nota 1) é
considerada pelo escritor como forma de
contemplar a História, e não de a
substituir. O Eurico apresenta uma
série de artifícios que claramente o
denunciam. É esta a função dos pequenos
antetextos introdutórios em cada capítulo,
retirados de obras religiosas visigóticas;
da apresentação das elegias do presbítero,
aí relatadas na primeira pessoa; do facto de
Herculano referir, de maneira vaga e
deliberadamente misteriosa, que a elaboração
da obra se deveu ao facto de ter encontrado
num mosteiro minhoto um inspirador
pergaminho; e, muito especialmente, da
apresentação das cartas trocadas por Eurico
e pelo seu amigo Teodemiro, duque de
Córdova, relacionada igualmente com o gosto
romântico da permuta epistolar, obreira de
sociabilidade e de intimidades.
Poderemos compreender, à luz do que
atrás fica exposto, a razão que presidiu à
introdução da cena do mosteiro da Virgem
Dolorosa, já que os eventos aí relatados,
como o seu autor reconheceu, apenas terão
ocorrido posteriormente. Herculano não
recuou ante a possibilidade de apresentar
essa cena, tão cheia de pathos, por
certamente entender que mesmo que esse
episódio não tivesse sucedido, não era
improvável igualmente que algo similar se
tivesse verificado. Ou seja, era um evento
perfeitamente plausível. (13). Tanto
bastou a Herculano. Não penso pois que,
mesmo se historiador empenhado, o autor de
Eurico tenha sentido excessivas
angústias e suportado demasiados dilemas na
construção do contexto histórico desta obra,
relacionados com a problemática da
veracidade científica.
5.
Quem é Eurico? Ou melhor e por outras
palavras, que herói é Eurico e como é que,
ao longo do livro, são expressas as suas
características de Herói?
Se me é permitido parafrasear um poeta
português, obviamente que como herói, Eurico
possui simultaneamente “um ar simples e
no entanto diferente/ e no entanto diferente
do ar do resto da gente”. (14). Simples,
porque o autor no-lo pretende apresentar
como modelo, pelo que as suas
características revestem um cunho de
inevitabilidade, formada e entendida pelo
leitor à medida que este vai avançando na
obra e enquanto vai progredindo a sua adesão
à personagem; diferente, porque ele é a
figura central em função da qual toda a
narrativa se desenvolve e se estrutura e “cuja
intervenção na acção, posicionamento no
espaço e conexões com o tempo contribuem
para revelar a sua centralidade
indiscutível”(15).
Eurico, sintomaticamente, não é uma
personagem oriunda dos extractos baixos da
sociedade. É um nobre mas não da alta
nobreza, o que possibilita a inadequação ao
amor de Hermengarda(16), filha de um rico
governador provincial. É esta
inconvertibilidade social que vai espoletar
a auto-exclusão do gardingo godo,
iniciando-se assim a sua peregrinação.
Esta, tendo como convém uma origem
dolorosa e incorporando valores expiatórios,
determina e facilita a ascensão de Eurico ao
sagrado, um sagrado religioso que é, em
simultâneo, poético (17): Eurico deixa de
ser o soldado atraído pelas festas cortesãs
e pela vontade de evidenciar os seus dotes
guerreiros como forma de obter as atenções
femininas, para passar a ser (para se
iniciar como) o presbítero solitário, autor
de cânticos em louvor de Cristo, da religião
e, afinal, do seu próprio tormento.
O desenvolvimento deste trajecto quase
transforma Eurico num poeta-alquimista, com
o consequente aprofundamento espiritual daí
decorrente, tendo aquele a sua capacidade
poética e de imaginação como athanor
e a própria Natureza como matéria
manipulável. A seguinte passagem parece-me
significativa do que acabo de afirmar: “É
então que ele dá movimento e vida aos
penhascos, voz e entendimento às selvas que
se meneiam e gemem à mercê da brisa
nocturna. É então que ele colige as suas
recordações; em parte, transmuda as imagens
das existências que viu passar ante si e
estampa nas sombras que o rodeiam um
universo transitório, mas para ele real”.(18).
Se já aqui começam a ser expressas
algumas características de heroicidade, é
com a invasão árabe da Península que algumas
daquelas qualificações se vão patentear em
toda a sua plenitude, devido à
redeterminação de inclinações que se
processa: o sacerdote cede lugar ao
guerreiro, o espírito abranda ante o físico,
fornecendo a garantia da necessidade
psicológica de segurança, o eventful-man
renuncia ante o nascente event making-man,
para utilizar a terminologia proposta por
Sidney Hook. (19)
Tendo-se paulatinamente afirmado como
receptáculo das tradições e virtudes dos
antepassados, Eurico encontra-se detentor
dessa força inicial, ainda não abastardada
pela dissolução dos costumes, da qual o
herói não participara. A sua superioridade
física e moral é pois manifesta.
Trajando de negro e montando um cavalo
igualmente negro, a sua aparição na primeira
batalha provoca espanto e curiosidade,
inicialmente, para depois, entre as hostes
árabes, ser motivo de grande temor devido ao
vendaval de destruição e de morte que aí vai
espalhando. Seguramente inspirado na figura
análoga existente no Ivanhoe de
Scott, a personagem do “cavaleiro negro”,
que Herculano assemelhou ao “Anjo do Senhor”
(Cap.XI), é extremamente curiosa: os
adereços negros que rodeiam Eurico mais
acentuam, aos olhos dos demais beligerantes
(todos não-iniciados) a insondável
profundidade da sua personalidade. Por outro
lado, as armas de que se faz acompanhar
parecem evidenciar, pela sua diferença em
relação às dos demais combatentes, que as
suas intenções bélicas e portanto também o
resultado destas, igualmente se dissemelham.
Os resultados da sua liderança e as
características das suas decisões são de
molde a reafirmar a sua condição de herói.
Há no entanto que distinguir duas fases: a
primeira, que finaliza com a derrota cristã;
e a segunda, que se inicia imediatamente
após essa derrota.
Na primeira fase, Eurico é apresentado
como um semi-deus e assim considerado quer
pelos seus, quer pelos inimigos. Na segunda
fase, o semi-deus desapareceu para, em seu
lugar, surgir apenas um homem, apesar de
superiormente dotado. Mediando essas duas
fases, encontra-se o desaire godo junto do
Chrysus. Essa derrota significou a
destruição definitiva da pátria de Eurico,
desvanecendo-se dessa forma o motivo que
originara o seu excepcional recobro: o amor
da pátria, que se havia substituído ao amor
da mulher. Eurico voltar-se-ia ainda, para
este segundo, ao saber da captura de
Hermengarda. Prenúncio daquela nova
transfiguração é o facto de o herói, uma vez
determinada a sorte dessa batalha decisiva,
ter mergulhado nas correntezas ininterruptas
do Chrysus, ou seja, na inelutável
realidade. Contudo, seria igualmente das
águas desse rio andaluz que – qual renovação
baptismal – surgiria o novo tipo heróico, a
partir de então protagonizado por Eurico.
Com doze companheiros como se de
apóstolos se tratassem (20), inicia então
uma nova demanda a qual culminaria com a
obtenção do “seu” Graal: a graça de
Hermengarda, que lhe concede o seu amor.
Eurico, no entanto, não obtém o dom da vida:
tendo atingido o seu Absoluto espiritual,
impossibilitado de responder a esse amor
(21), deixa-se tranquilamente matar, não sem
antes abater dois graúdos traidores da nação
goda. A sua tranquilidade post-mortem
estava pois assegurada.
6.
Conclusão: no romance
histórico Eurico, o Presbítero
confluem três factores germinativos
fundamentais: a concepção de História do seu
autor, a sua adesão à filosofia
estético-literária do Romantismo e o seu
ideário político-social, todos eles parcelas
do seu mais lato, porque globalizante,
projecto de sociedade.
A
segunda geração romântica, profunda
admiradora de Alexandre Herculano e
acomodada com a Regeneração a uma sociedade
assente sobre o rotativismo político e a
especulação financeira, demoraria essa sua
admiração sobretudo nos aspectos mais
directamente assimiláveis da
sentimentalidade romântica, pelos seus
autores imediatamente ampliados, subvertendo
dessa forma o carácter simultaneamente
controvertente, pedagógico e doutrinário
desta obra, chegando Herculano a afirmar,
aquando da tradução castelhana do Eurico,
dois anos antes de falecer, não o supor “inocente
em certas más tendências que às vezes se
revelam no estilo de alguns escritos dos
moços literatos”(22).
Notas
1.
Alexandre Herculano, “A Liberdade Humana,
Sei o Que é: Uma Verdade de Consciência Como
Deus”, in “Liberalismo, Socialismo,
Republicanismo – antologia de pensamento
político português, 2ª ed.(selecção,
introdução e notas de Joel Serrão), Lisboa,
Livros Horizonte, Col. Horizonte
Universitário nº21, p. 279.(Também em
Alexandre Herculano, Cartas).
2.René
Rémond, Introduction à l´histoire de
notre temps 2 – Le XIXe siècle, Paris,
Éditions du Seuil, Col. Points, Série
Histoire, 1974, pp 30-31: “Enquanto o
liberalismo se encontra na oposição,
enquanto deve lutar contra as forças do
Antigo Regime, a monarquia, os extremistas,
os contra-revolucionários, as Igrejas, o
acento é colocado sobre o aspecto subversivo
e combativo. Mas, assim que os liberais
acedem ao poder, é o seu aspecto conservador
que toma a dianteira.(…) O liberalismo é,
assim, uma doutrina ambígua que combate dois
adversários, o passado e o futuro, o Antigo
Regime e a futura democracia”. (tradução
minha)
3.Vítor
Neto, “Herculano: política e sociedade”, in
Revista de História das Ideias, 7,
Coimbra, Instituto de Histórias e Teorias
das Ideias, 1985, p.654. Veja-se também,
sobre este assunto,
Cândido
Beirante, A Ideologia de Herculano: da
teoria do progresso da civilização às
reformas regeneradoras de Portugal,
Santarém, Junta Distrital, 1977;
Alexandre Herculano, Um homem e uma
ideologia na construção de Portugal,
(org., pref. e notas de Cândido Beirante e
J.Custódio), Amadora, Bertrand, 1979;
Joaquim Barradas de Carvalho, As ideias
políticas e sociais de Alexandre Herculano,
2ªed. (1ª ed.: 1949) Lisboa, Seara Nova,
1971; António José Saraiva, Herculano e o
liberalismo em Portugal, Amadora,
Bertrand, 1977; Joaquim Veríssimo Serrão,
Herculano e a consciência do liberalismo
português, Amadora, Bertrand, 1977.
4.
Fernando Marques da Costa, “Transformações
sociais na transição do Antigo Regime”, in
Portugal Contemporâneo, vol. I,
Lisboa, Pub. Alfa, 1990, p.228.
5.Maria
Laura Bettencourt Pires, Walter Scott e o
romantismo português, Lisboa,
U.N.L./F.C.S.H., 1979, p.75
6.
Fernando Catroga, “Ética e Sociocracia, O
exemplo de Herculano na Geração de 70”, in
Estudos Contemporâneos, 4, Porto,
1982, p.31.
7.Albin
Beau, “Os motivos da historiografia de
Alexandre Herculano”, in Estudos,
vol.II, Coimbra, Universidade de Coimbra,
1964, p.143.
8.Na
primeira nota do autor, em grande medida
utilizada também com propósitos de
doutrinação, Herculano refere o seguinte:
“(…) o reproduzir a vida dessa sociedade,
que nos legou tantos monumentos, com as
formas do verdadeiro romance histórico
temo-lo por impossível, ao passo que
representar a existência dos homens do
undécimo ou dos seguintes séculos será para
o que os tiver estudado, não digo fácil,
mas, sem dúvida, possível.(…) É que nós
conhecemos a vida pública dos Visigodos e
não a sua vida íntima, enquanto os séculos
da Espanha restaurada revelam-nos a segunda
com mais individuação e verdade que a
primeira”.
9.T.F.
Earle, “Morte e imaginação no ‘Eurico’ de
Alexandre Hercjulano”, in R.G. Feijó et alli
(eds.), A morte no Portugal
Contemporâneo. Aproximações sociológicas,
literárias e históricas, Lisboa, ed.
Querco, 1985, p.63.
10.
T.F. Earle, ob .cit., pp 58-60.
11.
Maria Laura Bettencourt Pires, ob. Cit.,
p.78
12.“Quem
contará, porém, as vitórias dos nossos avós
durante três séculos de glória? Quem poderá
celebrar o esforço de Eurico, de Teudes, de
Leovigildo; quem saberá todas as virtudes de
Recaredo e de Vamba? Mas em qual coração
resta hoje virtude e esforço, no vasto
império de Espanha?”.
13.“É
que, desde que postos ao serviço da criação
literária, esses acontecimentos históricos
ganham uma nova dimensão: a que os adequa a
servirem de simples pano de fundo (isto é,
de factor de verosimilhança) a uma ficção
que, nem porque amenizada por essa
verosimilhança, deixa de se reclamar dela”.
Carlos Reis, “Herculano e a ficção
romântica”, in Construção da leitura.
Ensaios de metodologia e de crítica
literária, Coimbra, INIC/CLP, 1982,
p.105.
14.Mário
Cesariny, “Herói”, in Poesia
(1944-1955), Lisboa, Delfos, s/d, pp.
42-43.
15.Cf.
Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, rubrica
“Herói”, in Dicionário de Narratologia,
3ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, pp.
187-188.
16.No
capítulo VIII, é referido o amor como “o
mais formoso dos afectos humanos”.
17.
Herculano escreve mesmo no capítulo II, ao
narrar as vicissitudes sofridas por Eurico:
“(…) naturalmente religioso porque poeta(…)”.
18.Cap.
V, ponto 3.
19.Sidney
Hook, Os heróis através da história”,
São Paulo, Editora Universitária Lta., Col.
Biblioteca de Cultura Geral, 7, 1945,
pp.181-182.
20.Lélia
Duarte notou este artifício literário, pleno
de simbolismo: “Seus doze companheiros eram
antes também heróis solitários, o que
equivale a marginais: são também heróis
míticos que se recusam a participar da
entrega da pátria aos conquistadores e
pretendem fundar nela um novo reino”. Lélia
Duarte, “Mito e Ideologia em Eurico, o
Presbítero”, in Boletim, I, Belo
Horizonte, CESP, 1979, p. 15.
21.A
introdução nesta obra da questão do celibato
sacerdotal, parece à primeira vista dever
limitar-se ao facto de esta ter revestido um
mero pretexto para justificar a
impossibilidade do amor final. No entanto,
penso dever considerar-se como explicações
igualmente válidas os posicionamentos
político e religioso de Herculano, assentes
no liberalismo e na concepção pré-tridentina
do catolicismo.
22.Citado
por Alberto Ferreira, Perspectivas do
romantismo português, Lisboa, Litexa,
s/d, p. 92.
João Francisco Venâncio
Garção (1968, Portalegre,
Portugal). Poeta, pintor, ensaísta,
desportista e professor. Foi
guarda-redes profissional na
Académica de Coimbra. Licenciado em
História da Arte e Mestre em
História Contemporânea de Portugal
pela Universidade coimbrã, foi
depois presidente da Direcção e é
actualmente professor do Instituto
Superior de Ciências Educativas de
Felgueiras. Representado em
diversas antologias
poéticas/plásticas, proferiu
palestras e publicou artigos sobre
Educação, Arte, Ética e Política em
jornais e revistas da especialidade
no país e no estrangeiro.
Especialista em teoria artística e
arte aplicada. Vive em Guimarães.
Contacto: jfvgarcao@gmail.com