Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

PÁGINA INDEX Número 03|Janeiro de 2010

 

NÚMERO 03

JANEIRO 2010

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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JOÃO GARÇÃO

A  representação do herói

e o discurso da História em

Eurico, o Presbítero

“Por hábil que seja, uma propaganda não pode ter êxito sem um certo pretexto na realidade.(…) A meu ver, para que uma mistificação seja bem sucedida, deve conter pelo menos um elemento qualquer de verosimilhança.”
Tomás o Cínico
, in “A Escola dos Ditadores”, Ignazio Silone

      1.  

Em carta a Oliveira Martins, datada de Dezembro de 1870, Alexandre Herculano a dado passo afirmou o seguinte: “Entre os homens novos parece-me que está em moda tratar ora com desdém excessivo, ora com demasiada cólera, o liberalismo.(…)Pelo menos, um pequeno serviço nos deve, em Portugal, a geração nova. Foi o proporcionar-lhe, à custa de torrentes de sangue, nosso e alheio, a faculdade de evangelizarem o republicanismo e a democracia, sem perigo de lhes escapar a cabeça de cima dos ombros, ou sequer de lhes adejar em volta do leito do repouso, o medo dos tiranos.(…) Eu, meu caro democrata e republicano, nunca fui muito para as ideias que mais voga têm hoje entre os moços(…)”.(1) A asserção atrás exposta, por aquilo que possui de emblemático, parece-me suficientemente esclarecedora para poder ser aventada como norteadora do pensamento político-social de Herculano. Três vectores fundamentais ressaltam imediatamente da sua análise: a crença nas virtudes do Liberalismo, a luta contra o Absolutismo, a crítica às doutrinas democráticas e republicanas. Os dois últimos aspectos acabarão, afinal, por ser uma consequência do primeiro.(2)

        As questões do posicionamento ideológico e da trajectória política de Herculano não devem ser consideradas como tendo uma importância secundária em relação à temática de estudo que agora nos ocupa, de maneira a serem trazidas à colação apenas como meras ilustrações da sua mundividência. Muito pelo contrário, influíram decisivamente em toda a sua obra, mesmo na que se nos afigura como mais exclusivamente literária, influenciando o seu percurso enquanto escritor e condicionando, de forma evidente, a sua intervenção social de intelectual respeitado.

        Herculano iniciara a sua actividade pró-liberal durante um período especialmente repressivo do regime miguelista, amadurecendo aquele ideário com o exílio e com as lutas civis que se seguiram ao desembarque do Mindelo. Consumada a derrocada definitiva da velha ordem Absolutista com a vitória liberal, esta última estatuíra uma nova relação de forças no edifício social português. Embora a partir de então inserida sobretudo no campo liberal – o mesmo é dizer, no campo burguês – a problemática relacionada com a ascensão da(s) burguesia(s) iria ainda constituir um implacável foco de conflitos. Até à definitiva vitória e consequente acomodação da “aristocracia das riquezas”, para parafrasear Passos Manuel, a partilha dos despojos deixados pelo Antigo Regime seria um terreno particularmente fértil de dissensões. As elites liberais, e com ela Herculano,  não se eximiram de tomar posição nesses choques, respondendo de acordo com o seu sentimento politico-social ou, tantas outras vezes, consoante os seus interesses financeiros mais imediatos.

      Referindo-se ao posicionamento sócio-político do autor de Eurico, escreve Vítor Neto: “Em alternativa ao jusdivinismo por um lado e à soberania popular por outro, Herculano exigia como norma a razão pública transcendente em relação ao indivíduo e em oposição à teoria da vontade geral. Assim, a razão pública fundamentava o domínio político de uma aristocracia que teria a função de pensar pela totalidade dos cidadãos”.(3) Esta sua concepção do liberalismo – já que este foi revestido, entre nós, de suficiente latitude para permitir interpretações, por vezes tão diferenciadas e antagónicas como as protagonizadas por “setembristas” ou “cartistas” – se o colocou na facção mais conservadora e logo anti-democrática, impôs-lhe igualmente a necessidade de preparar o povo para um quotidiano burguês. Obviamente, este “povo” que Herculano tinha em mente era, senão em exclusivo pelo menos maioritariamente, aquele que podia aproveitar as benesses decorrentes da instituição dos princípios liberais da liberdade individual e de iniciativa, possibilitadores quer da dinâmica negocial quer da actividade eleitoral. Ou seja e por outras palavras, os portugueses possidentes, no verdadeiro sentido jurídico deste termo. Isto não significa que a restante população não tenha igualmente sido alvo das suas atenções, mesmo no que se refere às questões do ensino. Contudo, julgo dever colocar-se preferencialmente essas suas perspectivas sob a óptica da satisfação de uma utilidade pública e social, encarada do ponto de vista liberal, complemento lógico de uma concepção harmónica de sociedade que tinha os estratos superiores como seus destinatários privilegiados.

      Os frutos resultantes da convergência entre a sua crença no progresso da civilização e a necessidade que existiria, em sua opinião, de agir sobre o presente, transformando-o, seriam posteriormente colhidos e mal digeridos pela segunda geração romântica, como terei ainda oportunidade de explicitar. Entre eles encontrava-se, com grande poder de atracção, Eurico o Presbítero.

2.   

Independentemente do grau atingido pelo pedagogismo militante de Herculano nas suas várias obras literárias, variável devido ao íntimo entrelaçado que obrigatoriamente estabeleceu com algo tão marcadamente individual como sejam, por um lado, a necessidade vital da criação artística e, por outro, o desejo de partilha do objecto criado ao qual pode estar ligado, de forma mais ou menos evidente, um nunca negligenciável desejo de permanência, aquele só poderia obter resultados válidos se da parte dos receptores houvesse uma predisposição inicial para a aceitação da mensagem.  

      Diz Fernando Marques da Costa: “O derrube das instituições e ideologias do Antigo Regime vai ocorrer a par do pleno desenvolvimento do romantismo, termo que define não só um estilo literário, mas, essencialmente, um modo de estar na vida, uma outra atitude perante o universo, um outro entendimento das relações entre os homens, uma outra concepção do papel do indivíduo na sociedade e mesmo uma outra moralidade”.(4)

   O contexto mental existente aquando da divulgação dos seus primeiros trabalhos era de molde a encorajar iniciativas que contribuíssem para melhor estabelecer o conjunto das práticas culturais especificamente burguesas, à imagem daquilo que do estrangeiro, sobretudo de Inglaterra e da Alemanha, era possível ver ou na maioria dos casos, entrever. De igual modo, foi com prazenteira aquiescência que o crescente público ledor assistiu às inovações protagonizadas por Alexandre Herculano, em grande medida decorrentes de sugestões hauridas durante o período do exílio, acabando aquelas por revestir o carácter de directivas literárias, esculpindo o rosto do romantismo português e finalizando este por ser elevado ao estatuto de símbolo cultural e geracional.

    Antecipando as honras do volume, que ocorreriam em 1844, alguns esboços do Eurico foram pré-publicados na Revista Universal Lisbonense dirigida por António Feliciano de Castilho, e n’O Panorama, espaços privilegiados de veiculação da estética literária do romantismo e da cosmovisão burguesa que contaram com a profunda adesão das elites liberais. Sintomaticamente, o primeiro possuía o sobrenome de “Jornal dos Interesses Phisicos, Moraes e Intelectuais”, enquanto a editora do segundo era uma “Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis”.

    O sucesso foi enorme. Iniciada na cultura literária, admiradora de Walter Scott, a burguesia – e aqui utilizo propositadamente o singular – descobriu na temática histórica difundida por Herculano diversas razões para a sua anuência: para alguns, tratava-se de criticar e morigerar os presentes, fautores de um quotidiano conturbado, com o exemplo e o culto das virtudes dos antepassados; para muitos outros, foi a vontade de reafirmação da sua apetência pela liderança social, através da reivindicação de uma identidade assente na ancestralidade e no nacionalismo; provavelmente para a maioria, o factor de aprovação ter-se-á prendido à atracção sentida pela forte sentimentalidade difundida pela obra, várias vezes exacerbada, mas que uma leitura superficial e mesmo auto-condicionada seleccionou, instituiu como paradigma e, afinal, desvirtuou.

3.

A interpretação que Alexandre Herculano gostaria que fosse feita deste seu trabalho seria certamente a protagonizada pelo grupo anteriormente referido em primeiro lugar. Na verdade, o próprio Herculano já havia enfatizado, nas suas Cartas sobre a História de Portugal, que a sua concepção de História não se atinha em considerar esta como um “passatempo vão” para o espírito mas que, muito pelo contrário, desejava que com ela se tirasse “ensino e sabedoria para o presente e futuro” (Carta V).

    Parece, pois, pacífico o facto de que também a História foi considerada pelo escritor como um campo privilegiado de aprendizagens e logo de divulgação obrigatória. A subsequente análise sobre a forma como essa prática moralizadora de raiz especificamente historicista se relacionou e harmonizou com as demais vertentes pedagógicas (já evidenciadas quando fiz referência às suas ideias políticas e estético-literárias) originam uma reflexão que concluí, no meu caso pessoal, pela atribuição ao romance histórico herculaniano do papel de síntese no que se refere ao seu projecto de intervenção social.

    Devo contudo esclarecer que quando aqui aludo a síntese, não estou com isto a significar uma necessária subalternização dos seus restantes trabalhos, nem sequer a concluir pelo objectivo de Herculano em operar nos seus romances históricos uma deliberada súmula de todos os seus campos de interesse. O que pretendo evidenciar, isso sim, é a interessante singularidade que estas obras revestem, por nelas confluírem díspares áreas da produção do escritor, em relação às quais obraram como aglutinantes tanto a necessidade de doutrinação e de pedagogia por si sentida quanto, também, o seu próprio talento.

    Se não é tarefa árdua a verificação das dosagens dos elementos que foram utilizados por Alexandre Herculano na confecção dos seus romances históricos, mais difícil se torna conseguir discernir o peso relativo da cada um deles na obtenção do resultado final. Na opinião de Maria Laura Bettencourt Pires, “(…) para Herculano, um romance ‘histórico’ é principalmente um estudo histórico a que se faz a concessão de um enredo, para que ele conquiste assim maior número de leitores, que não conseguiriam sentir interesse por um estudo que não fosse amenizado” (5) . Esta é uma questão central, importante para que possamos definir as condicionantes genésicas que determinaram o conteúdo do Eurico. Em causa estará, assim, nada menos do que a determinação de uma prevalência, relacionada com um aparente conflito dicotómico: observa-se a valorização da teorização histórica em detrimento da estética, ou vice-versa? Ou, por outras palavras: nos seus romances, Herculano foi sobretudo um historiador ou um escritor ficcional?

    A minha opinião não vai no sentido da que é seguida pela estudiosa anteriormente citada, embora tal não signifique que tenha necessariamente que lhe ser antagónica. Na minha perspectiva, a fronteira que estabelecerá essa separação é extremamente ténue. Tal posição poderá parecer um paradoxo, se não mesmo um ilogismo, se considerarmos que nos estamos a reportar a um conflito antitético. Contudo, será talvez passível de alguma indulgência se eu disser que considero os romances históricos de Herculano, entre eles o Eurico, obras investidas de um certo dicroísmo, de que alguns críticos se não têm querido furtar quando operam as suas análises. A obra Eurico, o Presbítero é um excelente exemplo para clarificar o que acabo de afirmar.

     Estabelecidas que foram, desta maneira, algumas referências introdutórias, avançarei pois para a análise que me propus construir. 

4

Na Carta V das suas Cartas sobre a História de Portugal, Herculano alertou para a conveniência de se estudar preferencialmente a história medieval, como modo de obtenção de ensinamentos, pois esse período seria “o embrião do terceiro estado, do monarquismo constitucional, da descentralização municipalista e da enfiteuse”(6), “época análoga da contemporânea, porque nela igualmente nova ordem surgiria da desintegração e da perturbação(…)”(7).

     Como ele próprio refere na nota 30 do seu Eurico, ao escrever este livro tivera como objectivo “pintar os homens da época de transição”, o que significava que se demarcava conceptual e metodologicamente da generalidade dos historiadores portugueses, aos quais reprovava a pouca profundidade decorrente de uma errada concepção de História. É que, na sua opinião, seria necessário efectuar um percurso global em torno do período que se pretendia estudar, de maneira a abarcar toda a complexa rede de relações aí entretecidas pelo ser humano, não se atendendo apenas aos aspectos mais directamente institucionais. Só assim, defendia Herculano, seria possível integrar os homens na época em que viveram, por forma a que nem uns nem outra se enunciassem aos olhos do observador de forma parcelar e portanto errada. A verificar-se este erro, o labor de Clio seria mais pernicioso do que benéfico: a aprendizagem que dele se poderia extrair estaria, consequentemente, condicionada pela negativa e portanto votada à inutilidade.

   A escolha do período da dominação visigótica da Península Ibérica como palco deste seu romance prendeu-se com razões de índole afectiva, ligadas a considerações estético-literárias. Como o próprio escritor fez ainda questão de salientar na nota a que anteriormente fiz referência, esse período era por si considerado como “uma época de transição, digamos assim, dos tempos heróicos da história moderna para o período da cavalaria, brilhante ainda mas já de dimensões ordinárias”. Já na primeira nota que apôs a esta obra, Herculano havia referido que “o período visigótico deve ser psra nós como os tempos homéricos da Península”. O clima de virtuoso e dramático heroísmo que se expressa em todo o livro está bem de acordo com estas considerações.

    Essa época, no entanto, levantou a Herculano vários problemas. Ao desejo de a retratar, nela situando o seu trabalho, contrapuseram-se várias dúvidas relacionadas com questões de natureza puramente cognoscitiva. Será em parte dentro desta perspectiva que deveremos entender a indefinição de Herculano em caracterizar o resultado final da sua labuta. (8).

    Se esse resultado não se coadunava com o que havia produzido Walter Scott, “modelo e desesperação de todos os romancistas”, como lhe chamou o escritor português, tal facto deve-se à diferente condição de que a História gozou na produção ficcional destes dois autores. Como tenho feito notar, a remissão para uma época distante da coetânea não era, para Alexandre Herculano, um mero artifício estético-filosófico, pelo que todo o enquadramento histórico da acção não poderia no seu caso  ser passível de possibilitar uma leitura aligeirada dos eventos históricos. Comparando Herculano com o escritor escocês, escreveu T.F.Earle a este propósito: “Nos seus romances há muito material imaginativo, mas quase sempre ele continua consciente da necessidade de distinguir esse material da informação historicamente exacta.(…) Em equilíbrio entre o real e o irreal, a vida e a morte, ele expressa o dilema do romancista histórico que deseja recrear o passado, embora sabendo que é impossível fazê-lo com veracidade total”. (9).

    Aprofundemos estas afirmações, as quais me parecem ser portadoras da chave para a compreensão do lugar que a ciência histórica ocupou no Eurico.

    O misto de maravilha e surpresa com que os contemporâneos do escritor de Vale de Lobos receberam as suas ficções históricas, estará umbilicalmente relacionado com a capacidade que este demonstrou possuir na representação de uma época, aptidão essa alicerçada num grande trabalho de pesquisa documental. Ao lermos o Eurico, facilmente nos apercebemos que a economia do romance depende em grande medida da reconstrução do contexto histórico (aspecto manifesto com a análise das notas anexadas por Herculano) e da fidelidade que o autor sempre procurou manter nessa exposição.  T.F.Earle teve já oportunidade de analisar, mesmo que de forma breve, a veracidade de alguns eventos históricos aí relatados. (10). Com Lopes de Mendonça, somos assim impelidos a partilhar da opinião de que o escritor parece ter acompanhado os actantes às batalhas, com todo o apreço que uma afirmação desta natureza comporta. (11).

    Contudo, independentemente deste assentimento, apenas parcialmente compartilho da ideia de que o objectivo de Herculano, com a construção de Eurico, o Presbítero, foi a produção de um trabalho histórico, tendo-o coadjuvado com um enredo para melhor atingir os propósitos pedagógicos que sempre perseguiu. Teremos igualmente que considerar, no Eurico, outros aspectos fundacionais desta obra, os quais, se são a um tempo relativizadores daquela tese, serão por outro lado propiciadores de uma melhor compreensão do romance. Estou a referir-me, mais concretamente, à profunda relação mantida pela filosofia política e pelo expediente de acção social de Herculano com a concepção de História do escritor; estou a considerar, igualmente, a estética literária do Romantismo, por ele recebida, adoptada e claramente representada nos seus romances históricos.

    O livro está recheado de exemplos deste dois elementos co-determinantes. No capítulo IV, ponto 3, Herculano associa o estudo da História à possibilidade de extracção de virtuosas lições, quando o presbítero Eurico numa das suas elegias lamenta o presente do império godo e teme pelo seu futuro. (12). A memória, recuperando as “tradições dos avós”, esquecidas da sociedade pelo viver dissoluto dos seus maiores, é para o sacerdote motivo de suave consolo e de fortalecimento espiritual, tendo uma importante quota parte de responsabilidade na sua posterior transfiguração, como veremos. Além deste aspecto, não deveremos subalternizar as revelações do posicionamento político-social de Herculano: se as elites visigóticas eram dissolutas, não seria do povo, “prostituído às paixões dos poderosos” que haveria de esperar-se a redenção da pátria. Foi esse mesmo povo, “ignorante e impiamente crédulo” (Cap. VII, ponto 1), quem desconfiou das atitudes de Eurico, apenas o deixando em paz – já que não poderia compreender a sua “vida de excepção” – quando se apercebeu que o sacerdote escrevia poemas e cânticos religiosos bem aceites pela hierarquia religiosa. O que aqui refiro retrata perfeitamente a consideração que merecia a Herculano a eterna dualidade e o permanente antagonismo dos princípios da liberdade e da desigualdade humanas.

   Por outro lado, será também incorrecto relativizarmos o que de mais especificamente literário o Eurico apresenta. Poderemos aí discernir todo um programa estético-filosófico de cariz marcadamente Romântico. Assim, o sacerdote-poeta numa das suas reflexões fornece ao leitor algumas conclusões a que chegou, as quais, por serem propaladas pelo herói da obra, podem perfeitamente revestir a forma de preceitos para uso quotidiano: “É então que para ele há unicamente uma vida real – a íntima; unicamente uma linguagem inteligível – a do bramido do mar e do rugido dos ventos; unicamente uma convivência não travada de perfídia – a da solidão” (Cap. IV, ponto 4). Outras características do sentir Romântico marcam ainda a sua presença: a infelicidade decorrente do amor; a poesia como culto, requerendo portanto uma iniciação; a forte presença do saudosismo e do fatalismo; a defesa da imaginação e da fantasia, embora nunca desregradas; a sublimação da mulher, fruto de uma veemente paixão; a voluptuosidade da morte.

    Se o respeito pela fidelidade histórica era importante para Herculano, se lhe repugnavam as concepções de História que não compreendessem o contemplar de todas as faces dessa “coluna polígona de mármore”, se do mesmo modo considerava “um crime” que quem pudesse exercitar o “magistério moral” de “recordar o passado” não o fizesse, de igual forma não sentia aversão a que, no romance histórico – e apenas aqui – a imaginação fosse utilizada para suprir a História, como referiu na Introdução do Eurico.

    Mas atenhamo-nos a isto. A “corrente eléctrica e misteriosa que, partindo da imaginação, vai despertar os tempos que foram do seu calado sepulcro” (Nota 1) é considerada pelo escritor como forma de contemplar a História, e não de a substituir. O Eurico apresenta uma série de artifícios que claramente o denunciam. É esta a função dos pequenos antetextos introdutórios em cada capítulo, retirados de obras religiosas visigóticas; da apresentação das elegias do presbítero, aí relatadas na primeira pessoa; do facto de Herculano referir, de maneira vaga e deliberadamente misteriosa, que a elaboração da obra se deveu ao facto de ter encontrado num mosteiro minhoto um inspirador pergaminho; e, muito especialmente, da apresentação das cartas trocadas por Eurico e pelo seu amigo Teodemiro, duque de Córdova, relacionada igualmente com o gosto romântico da permuta epistolar, obreira de sociabilidade e de intimidades.

     Poderemos compreender, à luz do que atrás fica exposto, a razão que presidiu à introdução da cena do mosteiro da Virgem Dolorosa, já que os eventos aí relatados, como o seu autor reconheceu, apenas terão ocorrido posteriormente. Herculano não recuou ante a possibilidade de apresentar essa cena, tão cheia de pathos, por certamente entender que mesmo que esse episódio não tivesse sucedido, não era improvável igualmente que algo similar se tivesse verificado. Ou seja, era um evento perfeitamente plausível. (13). Tanto bastou a Herculano. Não penso pois que, mesmo se historiador empenhado, o autor de Eurico tenha sentido excessivas angústias e suportado demasiados dilemas na construção do contexto histórico desta obra, relacionados com a problemática da veracidade científica. 

5.  

Quem é Eurico? Ou melhor e por outras palavras, que herói é Eurico e como é que, ao longo do livro, são expressas as suas características de Herói?

   Se me é permitido parafrasear um poeta português, obviamente que como herói, Eurico possui simultaneamente “um ar simples e no entanto diferente/ e no entanto diferente do ar do resto da gente”. (14). Simples, porque o autor no-lo pretende apresentar como modelo, pelo que as suas características revestem um cunho de inevitabilidade, formada e entendida pelo leitor à medida que este vai avançando na obra e enquanto vai progredindo a sua adesão à personagem; diferente, porque ele é a figura central em função da qual toda a narrativa se desenvolve e se estrutura e “cuja intervenção na acção, posicionamento no espaço e conexões com o tempo contribuem para revelar a sua centralidade indiscutível”(15).

     Eurico, sintomaticamente, não é uma personagem oriunda dos extractos baixos da sociedade. É um nobre mas não da alta nobreza, o que possibilita a inadequação ao amor de Hermengarda(16), filha de um rico governador provincial. É esta inconvertibilidade social que vai espoletar a auto-exclusão do gardingo godo, iniciando-se assim a sua peregrinação.

    Esta, tendo como convém uma origem dolorosa e incorporando valores expiatórios, determina e facilita a ascensão de Eurico ao sagrado, um sagrado religioso que é, em simultâneo, poético (17): Eurico deixa de ser o soldado atraído pelas festas cortesãs e pela vontade de evidenciar os seus dotes guerreiros como forma de obter as atenções femininas, para passar a ser (para se iniciar como) o presbítero solitário, autor de cânticos em louvor de Cristo, da religião e, afinal, do seu próprio tormento.

    O desenvolvimento deste trajecto quase transforma Eurico num poeta-alquimista, com o consequente aprofundamento espiritual daí decorrente, tendo aquele a sua capacidade poética e de imaginação como athanor e a própria Natureza como matéria manipulável. A seguinte passagem parece-me significativa do que acabo de afirmar: “É então que ele dá movimento e vida aos penhascos, voz e entendimento às selvas que se meneiam e gemem à mercê da brisa nocturna. É então que ele colige as suas recordações; em parte, transmuda as imagens das existências que viu passar ante si e estampa nas sombras que o rodeiam um universo transitório, mas para ele real”.(18).

    Se já aqui começam a ser expressas algumas características de heroicidade, é com a invasão árabe da Península que algumas daquelas qualificações se vão patentear em toda a sua plenitude, devido à redeterminação de inclinações que se processa: o sacerdote cede lugar ao guerreiro, o espírito abranda ante o físico, fornecendo a garantia da necessidade psicológica de segurança, o eventful-man renuncia ante o nascente event making-man, para utilizar a terminologia proposta por Sidney Hook. (19)

    Tendo-se paulatinamente afirmado como receptáculo das tradições e virtudes dos antepassados, Eurico encontra-se detentor dessa força inicial, ainda não abastardada pela dissolução dos costumes, da qual o herói não participara. A sua superioridade física e moral é pois manifesta.

    Trajando de negro e montando um cavalo igualmente negro, a sua aparição na primeira batalha provoca espanto e curiosidade, inicialmente, para depois, entre as hostes árabes, ser motivo de grande temor devido ao vendaval de destruição e de morte que aí vai espalhando. Seguramente inspirado na figura análoga existente no Ivanhoe de Scott, a personagem do “cavaleiro negro”, que Herculano assemelhou ao “Anjo do Senhor” (Cap.XI), é extremamente curiosa: os adereços negros que rodeiam Eurico mais acentuam, aos olhos dos demais beligerantes (todos não-iniciados) a insondável profundidade da sua personalidade. Por outro lado, as armas de que se faz acompanhar parecem evidenciar, pela sua diferença em relação às dos demais combatentes, que as suas intenções bélicas e portanto também o resultado destas, igualmente se dissemelham.

   Os resultados da sua liderança e as características das suas decisões são de molde a reafirmar a sua condição de herói. Há no entanto que distinguir duas fases: a primeira, que finaliza com a derrota cristã; e a segunda, que se inicia imediatamente após essa derrota.

   Na primeira fase, Eurico é apresentado como um semi-deus e assim considerado quer pelos seus, quer pelos inimigos. Na segunda fase, o semi-deus desapareceu para, em seu lugar, surgir apenas um homem, apesar de superiormente dotado. Mediando essas duas  fases, encontra-se o desaire godo junto do Chrysus. Essa derrota significou a destruição definitiva da pátria de Eurico, desvanecendo-se dessa forma o motivo que originara o seu excepcional recobro: o amor da pátria, que se havia substituído ao amor da mulher. Eurico voltar-se-ia ainda, para este segundo, ao saber da captura de Hermengarda. Prenúncio daquela nova transfiguração é o facto de o herói, uma vez determinada a sorte dessa batalha decisiva, ter mergulhado nas correntezas ininterruptas do Chrysus, ou seja, na inelutável realidade. Contudo, seria igualmente das águas desse rio andaluz que – qual renovação baptismal – surgiria o novo tipo heróico, a partir de então protagonizado por Eurico.

    Com doze companheiros como se de apóstolos se tratassem (20), inicia então uma nova demanda a qual culminaria com a obtenção do “seu” Graal: a graça de Hermengarda, que lhe concede o seu amor. Eurico, no entanto, não obtém o dom da vida: tendo atingido o seu Absoluto espiritual, impossibilitado de responder a esse amor (21), deixa-se tranquilamente matar, não sem antes abater dois graúdos traidores da nação goda. A sua tranquilidade post-mortem estava pois assegurada. 

6.

Conclusão: no romance histórico Eurico, o Presbítero confluem três factores germinativos fundamentais: a concepção de História do seu autor, a sua adesão à filosofia estético-literária do Romantismo e o seu ideário político-social, todos eles parcelas do seu mais lato, porque globalizante, projecto de sociedade.

     A segunda geração romântica, profunda admiradora de Alexandre Herculano e acomodada com a Regeneração a uma sociedade assente sobre o rotativismo político e a especulação financeira, demoraria essa sua admiração sobretudo nos aspectos mais directamente assimiláveis da sentimentalidade romântica, pelos seus autores imediatamente ampliados, subvertendo dessa forma o carácter simultaneamente controvertente, pedagógico e doutrinário desta obra, chegando Herculano a afirmar, aquando da tradução castelhana do Eurico, dois anos antes de falecer, não o supor “inocente em certas más tendências que às vezes se revelam no estilo de alguns escritos dos moços literatos”(22).

  Notas    

1.      Alexandre Herculano, “A Liberdade Humana, Sei o Que é: Uma Verdade de Consciência Como Deus”, in “Liberalismo, Socialismo, Republicanismo – antologia de pensamento político português, 2ª ed.(selecção, introdução e notas de Joel Serrão), Lisboa, Livros Horizonte, Col. Horizonte Universitário nº21, p. 279.(Também em Alexandre Herculano, Cartas).

2.      René Rémond, Introduction à l´histoire de notre temps 2 – Le XIXe siècle, Paris, Éditions du Seuil, Col. Points, Série Histoire, 1974, pp 30-31: “Enquanto o liberalismo se encontra na oposição, enquanto deve lutar contra as forças do Antigo Regime, a monarquia, os extremistas, os contra-revolucionários, as Igrejas, o acento é colocado sobre o aspecto subversivo e combativo. Mas, assim que os liberais acedem ao poder, é o seu aspecto conservador que toma a dianteira.(…) O liberalismo é, assim, uma doutrina ambígua que combate dois adversários, o passado e o futuro, o Antigo Regime e a futura democracia”. (tradução minha)

3.      Vítor Neto, “Herculano: política e sociedade”, in Revista de História das Ideias, 7, Coimbra, Instituto de Histórias e Teorias das Ideias, 1985, p.654. Veja-se também, sobre este assunto, Cândido Beirante, A Ideologia de Herculano: da teoria do progresso da civilização às reformas regeneradoras de Portugal, Santarém, Junta Distrital, 1977; Alexandre Herculano, Um homem e uma ideologia na construção de Portugal, (org., pref. e notas de Cândido Beirante e J.Custódio), Amadora, Bertrand, 1979; Joaquim Barradas de Carvalho, As ideias políticas e sociais de Alexandre Herculano, 2ªed. (1ª ed.: 1949) Lisboa, Seara Nova, 1971; António José Saraiva, Herculano e o liberalismo em Portugal, Amadora, Bertrand, 1977; Joaquim Veríssimo Serrão, Herculano e a consciência do liberalismo português, Amadora, Bertrand, 1977.

4.      Fernando Marques da Costa, “Transformações sociais na transição do Antigo Regime”, in Portugal Contemporâneo, vol. I, Lisboa, Pub. Alfa, 1990, p.228.

5.      Maria Laura Bettencourt Pires, Walter Scott e o romantismo português, Lisboa, U.N.L./F.C.S.H., 1979, p.75

6.      Fernando Catroga, “Ética e Sociocracia, O exemplo de Herculano na Geração de 70”, in Estudos Contemporâneos, 4, Porto, 1982, p.31.

7.      Albin Beau, “Os motivos da historiografia de Alexandre Herculano”, in Estudos, vol.II, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1964, p.143.

8.      Na primeira nota do autor, em grande medida utilizada também com propósitos de doutrinação, Herculano refere o seguinte: “(…) o reproduzir a vida dessa sociedade, que nos legou tantos monumentos, com as formas do verdadeiro romance histórico temo-lo por impossível, ao passo que representar a existência dos homens do undécimo ou dos seguintes séculos será para o que os tiver estudado, não digo fácil, mas, sem dúvida, possível.(…) É que nós conhecemos a vida pública dos Visigodos e não a sua vida íntima, enquanto os séculos da Espanha restaurada revelam-nos a segunda com mais individuação e verdade que a primeira”.

9.      T.F. Earle, “Morte e imaginação no ‘Eurico’ de Alexandre Hercjulano”, in R.G. Feijó et alli (eds.), A morte no Portugal Contemporâneo. Aproximações sociológicas, literárias e históricas, Lisboa, ed. Querco, 1985, p.63.

10.  T.F. Earle, ob .cit., pp 58-60.

11.  Maria Laura Bettencourt Pires, ob. Cit., p.78

12.  “Quem contará, porém, as vitórias dos nossos avós durante três séculos de glória? Quem poderá celebrar o esforço de Eurico, de Teudes, de Leovigildo; quem saberá todas as virtudes de Recaredo e de Vamba? Mas em qual coração resta hoje virtude e esforço, no vasto império de Espanha?”.

13.  “É que, desde que postos ao serviço da criação literária, esses acontecimentos históricos ganham uma nova dimensão: a que os adequa a servirem de simples pano de fundo (isto é, de factor de verosimilhança) a uma ficção que, nem porque amenizada por essa verosimilhança, deixa de se reclamar dela”. Carlos Reis, “Herculano e a ficção romântica”, in Construção da leitura. Ensaios de metodologia e de crítica literária, Coimbra, INIC/CLP, 1982, p.105.

14.  Mário Cesariny, “Herói”, in Poesia (1944-1955), Lisboa, Delfos, s/d, pp. 42-43.

15.  Cf. Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, rubrica “Herói”, in Dicionário de Narratologia, 3ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, pp. 187-188.

16.  No capítulo VIII, é referido o amor como “o mais formoso dos afectos humanos”.

17.  Herculano escreve mesmo no capítulo II, ao narrar as vicissitudes sofridas por Eurico: “(…) naturalmente religioso porque poeta(…)”.

18.  Cap. V, ponto 3.

19.  Sidney Hook, Os heróis através da história”, São Paulo, Editora Universitária Lta., Col. Biblioteca de Cultura Geral, 7, 1945, pp.181-182.

20.  Lélia Duarte notou este artifício literário, pleno de simbolismo: “Seus doze companheiros eram antes também heróis solitários, o que equivale a marginais: são também heróis míticos que se recusam a participar da entrega da pátria aos conquistadores e pretendem fundar nela um novo reino”. Lélia Duarte, “Mito e Ideologia em Eurico, o Presbítero”, in Boletim, I, Belo Horizonte, CESP, 1979, p. 15.

21.  A introdução nesta obra da questão do celibato sacerdotal, parece à primeira vista dever limitar-se ao facto de esta ter revestido um mero pretexto para justificar a impossibilidade do amor final. No entanto, penso dever considerar-se como explicações igualmente válidas os posicionamentos político e religioso de Herculano, assentes no liberalismo e na concepção pré-tridentina do catolicismo.

22.  Citado por Alberto Ferreira, Perspectivas do romantismo português, Lisboa, Litexa, s/d, p. 92.

 

 João Francisco Venâncio Garção  (1968, Portalegre, Portugal).
Poeta, pintor, ensaísta, desportista e professor. Foi guarda-redes profissional na Académica de Coimbra. Licenciado em História da Arte e Mestre em História Contemporânea de Portugal pela Universidade coimbrã, foi depois presidente da Direcção e é actualmente professor do Instituto Superior de Ciências Educativas de Felgueiras.  Representado em diversas antologias poéticas/plásticas, proferiu palestras e publicou artigos sobre Educação, Arte, Ética e Política em jornais e revistas da especialidade no país e no estrangeiro.
  Especialista em teoria artística e arte aplicada. Vive em Guimarães.
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