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LISBON BLUES,
DE JOSÉ LUIZ TAVARES – A PROPÓSITO
Nuno Rebocho |
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Com
Cesário e Camões, Bocage, O’Neill ou Cabral
de Melo Neto dissolvidos na saliva,
deglutidos, assimilados nas partículas do
citoplasma, José Luiz Tavares faz-se às ruas
de Lisboa que, todavia, são apenas algumas
outras artérias da enormíssima megapolis do
País Real deste autor que emergiu de uma
aparente ruralidade original para, nas
travessas da Diáspora, também ele se irmanar
nos obras de construção onde patrícios
vendem a força de trabalho. Aí, os tijolos
de José Luiz Tavares são palavras, as
paredes erguidas são versos, os patamares
são estrofes, os edifícios são poemas.
Chama-se Poesia o País Real de José Luiz
Tavares. Por isso é que o poeta de Txon Bon,
transportando-se a outras paragens, nunca se
expatriou. Sempre permaneceu no seu espaço
pátrio. Será esta a razão da
transnacionalidade - uma oceânica
transnacionalidade sobre cuja superfície
circulam vocábulos de diferentes
proveniências e que são a substância, a
matéria da sua oficina.
Muito se tem falado do vocabulário, da
linguagem de Tavares. Eu, que não sou
exegeta, prefiro falar da sua ressonância.
Explico-me.
Para o poeta-construtor, entendo eu, as
palavras são o seu próprio mistério e ousar
penetrar nele é como querer entrar no centro
do furacão, correndo o risco de naufragar ou
ser arrastado pelos turbilhões. Reparai que
as palavras, quando fixadas no texto,
cristalizam e tornam-se imorredoiras: porque
se estão nos textos, sobrevivem com eles e,
por isso, tornam-se nossas conviventes:
existem, desde que nós existamos onde as
palavras estão, são coniventes com a cultura
de cada qual – são parte dessa “agreste
matéria mundo” que faz a identidade da
Pátria Poesia. O sabor medievo ou
renascentista de alguns vocábulos usados por
Tavares, tal como as formas/fórmulas
adotadas, é mera incidência, tal como a sua
crioulidade ou portugalidade ou qualquer
alieniginidade (recusando eu observar
aqui o fundo português do crioulo).
Acrescem a estas, outras incidências. A
saber: o poeta-construtor pode, se o quiser,
dar aos vocábulos significados divergentes
daqueles que os dicionaristas codificam –
não são os dicionaristas que condicionam os
poetas; são os poetas que desafiam os
dicionaristas, até porque aos poetas
pertence subverter a ordem. A Poesia é a
Liberdade, é a Revolução, é a Subversão.
E, não menos importante: sentindo disso
necessidade, o poeta inventa, cria de raiz
com a matéria-prima que lhe aprouver.
Tomemos um exemplo francês: o bourassassa
de Trintan Tzara é tão consistente como a
palavra solitude. Ao fim e ao cabo, a
regra é esta: d’abord la musique.
Quero com isto dizer que importa menos, na
Poesia, validar fonemas e sintagmas pelo
rigor dos significados, do que tomá-los pelo
sentimento/ressentimento dos significantes.
E estes transmitem-se mais pelas cadências,
pelos ritmos, pela sonoridade e pela
ambiência. Atente-se num belo exemplo – pag
98, poema 12 (sobre uma fotografia de
Bernard Plossu):
“Seguem, dolentes e negros, à sombra// das
viageiras nuvens. Tristes e três// sob o
ferrete de um irresoluto combate.// O
pacificado céu guarda-lhes os rostos//
Negros, como negros são os cisnes// que a
insónia pastoreia.”
Notem o que aqui vai de aliterações, de
ressonâncias, de vibrações, de ritmos
internos a cada verso. Na descrição de uma
foto, mais do que a leitura daquilo que os
olhos vêem, fica (pela ambiência criada pelo
poeta) a leitura do que a alma sente e
pressente. E notem como isto muito pouco ou
nada se submete às camisas de força dos
dicionários, às suas regras de trânsito. Por
isto, tanto se diz que é terrivelmente
difícil traduzir poesia de um idioma para
outro.
Para entender bem Lisbon Blues, de José Luiz
Tavares, convirá ler e reler este livro: em
voz baixa, cada leitor de si para si, e em
voz alta, ouvindo-se. Saborear os sons,
descortinar o que eles despertam na pele e
na mente, pressentir os sentimentos nele
encerrados e prontos a estoirar, a
soltarem-se, porque incontíveis se acharmos,
por esta via, a ponta da agulha capaz de
rebentar o balão. Essa é a nossa
complementaridade: o poeta-construtor
esmerou-se, à laia do que quis, em torturar
o seu universo ao rigor do verso e
encafuou-se nele. Mas deixou, no exterior da
forma, os albacadrabas para abrir os
desafiantes sésamos.
É evidente que ajuda conhecer os itinerários
de José Luiz Tavares. Não será determinante,
mas é prestimoso bordão para a caminhada do
leitor. Disso se encarrega, e bem, José Luís
Hopffer Almada num texto integrado em Lisbon
Blues. Sob o título “José Luiz Tavares: um
percurso fecundo e luminoso na novíssima
poesia cabo-verdiana”, Hopffer leva-nos à
errância do autor que hoje aqui nos cabe
também apresentar. Felizmente que Hopffer o
faz num posfácio. Libertou (assim) o leitor
para uma primeira leitura, não encarreirada,
não condicionada – se se quiser: não
manipulada - , para que ele pudesse
esbracejar sozinho nas suas próprias
interrogações e perplexidades. No fim,
atirou-lhe a bóia para a eventualidade de
algum perigo de afundamento ou afogamento.
Louvo o método, até porque, chamando a
posteriori a atenção do leitor para alguns
aspectos do texto, apela também à releitura
e à redescoberta. |
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Confesso devorador de paisagens, desde
“Paraíso Apagado por um Trovão” (a sua
anterior poesia não a conheço), José Luiz
Tavares devassa o seu actual habitat –
Lisboa. Contrariamente a outro cantor da
cidade das sete colinas, Miguel Barbosa,
Tavares escapa aos ritmos e às cores do
fado. Opta pelo compasso sincopado e por
vezes a-sincrónico (diacrónico) do blue,
como que a dizer-nos que nele há tanto de
afro-europeu como de afro-americano, que
esta “Lisboa que eu amo” é tanto afro como
New Orleans ou Saint Louis. É afro
verdadeiramente. Tão realmente quanto moura,
safardita, galega ou saloia. O alfacinha é,
queira-o ou não, crioulo… à sua maneira. |
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Eis como Lisboa se faz outra “matéria
agreste”: de braço dado com Cesário e regido
também por outros manes, o poeta de Txon Bon
calcorreia a Estrela, o Alto de Santa
Catarina, as ruelas de Alfama, espreita
Campo de Ourique, embrenha-se no Intendente
e no Cais do Sodré, respira fundo no
Castelo, repousa no jardim do Tourel,
madruga no Chiado, desembarca no Rossio,
percorre o Bairro Alto, sobe o elevador de
Santa Justa, embebeda-se das ondas sagradas
do Tejo (que já foi de B.leza) e das
memórias que ainda discorrem no aqueduto das
Águas Livres dos crimes de João Diogo. |
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É a Lisboa dele. É, diga-se, também a minha
Lisboa.
Nisto, o poeta funciona como amiba: tudo
envolve, tudo cerca, absorve, integra - o
sol e o céu, os tapumes, a chuva, a luz, o
fumo, as janelas de Maluda, os semáforos, as
tintas, as cores, as neblinas, o frio e o
calor. E até os cus – isso mesmo, os cus.
Tavares vagamunda por Lisboa que hoje apenas
é os restos mortais, as cinzas, do império
ainda testemunhados pelos negros que a
habitam, afinal tão lisboetas como os
brancos, os pardos, os chineses ou os
indianos. Uma Lisboa talvez bela, mas também
sofrida e sofredora, por onde deslizam copos
de cerveja e de vinho tinto… e os carros
eléctricos de José Gomes Ferreira.
Tavares raspa a caliça das paredes
fantasmáticas. E descobrindo a vetustez e a
modernidade, o poeta descobre-se,
redescobre-se, questiona-se sobre si próprio
e sobre o ofício de poetar. Trata-se de
poesia e de meta-poesia. No nocturno das
vielas tantas vezes, Tavares não teme o
sarro da língua e as camas de ocasião. Sem
tabus.
“Mar e margem amparam o fragor// que leva o
desalinho às vísceras.// Na máquina do
poema// é lenta a combustão que devolve// o
tejo ao afago que tantas metáforas//
sussurrou aos zelosos funcionários das
musas. //// Não há, porém, métrica que
cinja// a voz de um rio quando suspira nas
entranhas// avivando um passado que é cisco
na memória”
- lê-se na pag 59 (O rio enquanto anti-lira).
Também ele, José Luiz Tavares, é (palavras
suas, bocagianas) “funcionário das musas”. À
beira-Tejo hoje plantado se exerce. Também
eu, hoje do Tejo apartado, me confesso aqui
funcionário das musas. Como José Luís
Hopffer, que posfacia este livro. Todos, em
comum ou separadamente, saberemos a
fatualidade um dia poetada pelo português
Fernando Grade: “não há tusa// para tanta
musa”. É verdade, sim senhores. Mas não há
desistências.
Assumo: adoro este Lisbon Blues. |
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Nuno
Rebocho (Portugal, 1945).
Escritor e
jornalista. Foi redactor da Grande
Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, das
revistas O Tempo e O Modo e Vida
Mundial, em diferentes diários e
semanários, e é chefe de redacção da Antena
2 da RDP. Colaborador de Acontece em
Sorocaba (Brasil) e Liberal (Cabo
Verde). Comissariou a Bienal do
Mediterrâneo, Dubrovnik (Croácia), em 1999.
Texto lido na apresentação do livro na
Cidade da Praia, 8 Agosto 2009/Tarrafal de
Santiago.
Contacto:
ferreirarebocho@hotmail.com. |
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