“Uma
verdade contada pela metade é pior
do que qualquer mentira que se possa
inventar”, diz Gustavo Flávio, no
final de Bufo & Spallanzane
(Fonseca 1993 [1986]: 233). Mas como
é que se pode contar certas verdade
senão inventando? Atenção,
entretanto. Não se trata de simples
invenção ou deliberada mentira.
Desmentindo,
ele mente: o escritor relata
incidentes que não presencia e
desvenda sentimentos que podem até
ser teoricamente secretos mas que
são também tão óbvios que qualquer
pessoa poderia imaginá-los sem
precisar dispor da visão onisciente
do ficcionista. Como é bela a
natureza! Escrever é muito fácil.
Mentindo, diz a verdade: a mente de
um escritor era uma coisa difícil de
penetrar. O que ele diz é aquilo que
não é dito. Ele sabe que aquilo que
diz é aquilo que não é. E para um
escritor a palavra escrita é a
realidade, inimiga do caos e também
da ordem, para além da utilidade ou
nocividade, e até mesmo da
compreensibilidade:
—
Bati com a picareta, com toda a
força, em sua cabeça. Ela caiu no
chão com o rosto cheio de sangue.
Quelle
lourde machine à construire...
(fragmentário
e pernóstico = prognóstico, que
indica alguma coisa)
Assim escreveu
Tolstoi, em Guerra e Paz
(Segundo Epílogo, Capítulo VIII): “A
pior forma de autoridade, a mais
arrogante e dissimulada, é a do
artista. A difusão de material
impresso, a mais poderosa arma da
ignorância”. Mas quero mantê-lo
vivo, em meu coração e em minha
mente, e por isso agora inscrevo
seus três primeiros romances num
processo narrativo de disjunção
lógica:
Vilela/ Paul
Morel
Mandrake/Lima
Prado
Guedes/ Gustavo
Flávio
No
primeiro caso, a função de autoria é
distribuída entre Vilela e Paul
Morel (1). Diferentemente, no
segundo caso, ela é assumida
explicitamente por Mandrake, embora
somente mais para o final da
narrativa (Fonseca, 1983: 311). No
terceiro caso, ela será assumida
explicitamente por Gustavo Flávio,
já desde o início. De qualquer
forma, nos três casos, é impossível
inferir da narrativa uma univocidade
de sentido, e até mesmo uma unidade
formal, porque ela precisa ser como
que distribuída entre elementos
heterogêneos, esquizofrênicos. No
caso em que se poderia atribuí-la a
um único autor, a onisciência desse
narrador/autor em contrapartida
cresce, de forma a tornar-se o
próprio índice do seu possível
delírio e alucinação. Como é que ele
poderia saber tão bem o que se passa
na cabeça dos outros, o que fazem
sem ninguém ver, o que ocorre em
locais em que nenhum outro esteve?
Não que não haja limite para o
delírio. Por exemplo, o capanga de
Lima Prado não tem mãe, enquanto que
Paul Morel ou Gustavo Flávio nem
capangas têm. Paul Morel,
entretanto, é obrigado a admitir:
— À medida que
chego perto vai ficando mais
difícil. Pensei que poderia escrever
sobre as coisas que aconteceram
comigo, mas agora, chegando perto...
Na minha cabeça, como num filme em
câmera lenta, eu chutava o rosto
dela.
— Me mostra que
você está aqui do meu lado. Eu me
sinto morta, mas se você me matar eu
estou viva. Anda, vem. Me
arrebenta...
Falei em
esquizofrenia. Fala-se com
freqüência de espelhamento de uma
realidade social. Mas a violência
tem importância, sobretudo, como
algo que atravessa personagens
(incluindo narradores/autores) a
ponto de preservá-los, para além do
que eles são, naquilo mesmo que os
destrói. Nesse sentido, trata-se de
uma paz colossal, cosmológica, e não
de fenômeno psicossociológico. Tudo
que se escreve, escreveu ou
escreverá era para chegar aqui,
neste parágrafo.
Por isso, o
verdadeiro escritor nada tem a
dizer.
Tem uma maneira
de dizer nada.
Nada temos a
temer.
Exceto as Palavras.
A
crítica de arte é tão supérflua
quanto a própria arte. E a virtude
maior de um ser humano é ter
consciência da própria crueldade
(Fonseca, 2000: 35). Por isso quero
mantê-lo vivo, em meu coração e em
minha mente. Continuo:
Vastas
emoções e pensamentos imperfeitos
ousou expor a escrita numa espécie
de nudez essencial, sem imagem nem
som. O resultado foi o de que as
palavras constituíam cenários,
possivelmente todos falsos,
desconexos, de sonhos.
Se
tais cenários desaparecessem, agora
tudo se teria a temer. É o que
finalmente ocorre em agosto — mês
dos espíritos baixarem — quando o
narrador aplaina, do início ao fim
do livro, em terceira pessoa.
Impressionista, as coisas todas se
tornam o que elas são, sua essência
colapsa na superfície: diretamente,
o pesadelo, de que nunca são como
são, mas sendo. O automatismo
insistente do disco na vitrola,
indiferente à morte do que o escuta.
Mattos, versão mais sombria do
antigo Vilela, trazia guardado no
bolso o dente de ouro de Morel
(Fonseca, 2006 [1990]: 106; cf.
Fonseca, 1995 [1973]: 42).
“Não
sei como me tornei um escritor de
contos e não um cineasta”, disse meu
irmão em uma entrevista (Fonseca,
1990 [1988]: 39). Depois daquele mês
maldito, virá ainda a escrever um
texto básico, um roteiro. Torna-se
definitivamente aquilo que não era,
quer dizer, sobrevive inteiramente
na voz própria delirante — falar a
milhões, sem os enganar, quer dizer,
agradando-os.
Ser
sério: quelle lourde machine à
construire...
Não se
trata de simples mentira (ver o que
diz Verdi sobre o Guaraní, e é
melhor ser escravo do que mendigo:
Fonseca, 1994: 74, 169). Parte do
rosto da mulher começa a aparecer.
Lança sangue pela boca, sem parar, e
diz:
—
Foi Maneco Músico, teu pai.
Estava com muito ódio.
—
Parecia um sonho... Fechei os
olhos, não ia acordar nunca
mais. Como era bom dormir. Sou
um marquês de ilustre estirpe,
da melhor nobreza, mas não sou
escritor, apenas um leitor
constante de bons autores.
Sai
Nicolas-Gabriel de La Reynie.
Entra
o diplomata Aires.
No
Uruguai, ao descobrir seus papéis,
meu irmão em princípio o achou
diferente de si. A escrita de Aires
era transparentemente lúcida, como a
linha invisível que equilibra todas
as divergências, de Esaú a Jacó.
Justamente, mas assim esvaziava de
conteúdo, desaparecia,
aproximando-se da de meu irmão. Além
disso, sabemos que a escrita é de
Aires (2), mas ela se desdobra para
além dele, como espelho, que o reduz
a personagem de si. Foi quando no
ápice da história de perder o
fôlego, não se disse:
—
Levantei a ponta do véu e quase
me entrei na alma, mais fundo
que ela própria.
— Foi a realidade... Abri os
olhos, não quis fechá-los mais.
Como era bom entender. Tudo
serão modas neste mundo, exceto
as estrelas e eu. Perdono a
tutti.
É como
se pode contar a contradição. A
frivolidade do memorial — “nem
pachorra nem habilidade”, “dizer o
que se pensa e o que se vê, quando
se não vê nem pensa nada” (Assis,
1952b: 7, 102) — entregando seu
despropósito comum. Do meu irmão, a
ele. Ser real, mas não sendo, o
narrar pelo narrar, mesmo
despreocupado da trama, mas atento à
delícia do fel (“o amargo do mel”,
Assis, 1952b: 220-1).
Estava
eu diante da pessoa futura, e era a
pessoa extinta, uma só criatura.
Ele
acabou pedindo, de pessoa estranha,
o abraço.
Dei-lho apertado. |