Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

PÁGINA INDEX Número 04|Março de 2010

NÚMERO 04

Março de 2010

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Alessandro Zir

 

Do mais lúcido irmão

que não me conhecia — a ele (II)

“Uma verdade contada pela metade é pior do que qualquer mentira que se possa inventar”, diz Gustavo Flávio, no final de Bufo & Spallanzane (Fonseca 1993 [1986]: 233). Mas como é que se pode contar certas verdade senão inventando? Atenção, entretanto. Não se trata de simples invenção ou deliberada mentira.

Desmentindo, ele mente: o escritor relata incidentes que não presencia e desvenda sentimentos que podem até ser teoricamente secretos mas que são também tão óbvios que qualquer pessoa poderia imaginá-los sem precisar dispor da visão onisciente do ficcionista. Como é bela a natureza! Escrever é muito fácil. Mentindo, diz a verdade: a mente de um escritor era uma coisa difícil de penetrar. O que ele diz é aquilo que não é dito. Ele sabe que aquilo que diz é aquilo que não é. E para um escritor a palavra escrita é a realidade, inimiga do caos e também da ordem, para além da utilidade ou nocividade, e até mesmo da compreensibilidade:

— Bati com a picareta, com toda a força, em sua cabeça. Ela caiu no chão com o rosto cheio de sangue.

Quelle lourde machine à construire...

(fragmentário e pernóstico = prognóstico, que indica alguma coisa)

Assim escreveu Tolstoi, em Guerra e Paz (Segundo Epílogo, Capítulo VIII): “A pior forma de autoridade, a mais arrogante e dissimulada, é a do artista. A difusão de material impresso, a mais poderosa arma da ignorância”. Mas quero mantê-lo vivo, em meu coração e em minha mente, e por isso agora inscrevo seus três primeiros romances num processo narrativo de disjunção lógica:

Vilela/ Paul Morel

Mandrake/Lima Prado

Guedes/ Gustavo Flávio

No primeiro caso, a função de autoria é distribuída entre Vilela e Paul Morel (1). Diferentemente, no segundo caso, ela é assumida explicitamente por Mandrake, embora somente mais para o final da narrativa (Fonseca, 1983: 311). No terceiro caso, ela será assumida explicitamente por Gustavo Flávio, já desde o início. De qualquer forma, nos três casos, é impossível inferir da narrativa uma univocidade de sentido, e até mesmo uma unidade formal, porque ela precisa ser como que distribuída entre elementos heterogêneos, esquizofrênicos. No caso em que se poderia atribuí-la a um único autor, a onisciência desse narrador/autor em contrapartida cresce, de forma a tornar-se o próprio índice do seu possível delírio e alucinação. Como é que ele poderia saber tão bem o que se passa na cabeça dos outros, o que fazem sem ninguém ver, o que ocorre em locais em que nenhum outro esteve? Não que não haja limite para o delírio. Por exemplo, o capanga de Lima Prado não tem mãe, enquanto que Paul Morel ou Gustavo Flávio nem capangas têm. Paul Morel, entretanto, é obrigado a admitir:

— À medida que chego perto vai ficando mais difícil. Pensei que poderia escrever sobre as coisas que aconteceram comigo, mas agora, chegando perto... Na minha cabeça, como num filme em câmera lenta, eu chutava o rosto dela.

— Me mostra que você está aqui do meu lado. Eu me sinto morta, mas se você me matar eu estou viva. Anda, vem. Me arrebenta...

Falei em esquizofrenia. Fala-se com freqüência de espelhamento de uma realidade social. Mas a violência tem importância, sobretudo, como algo que atravessa personagens (incluindo narradores/autores) a ponto de preservá-los, para além do que eles são, naquilo mesmo que os destrói. Nesse sentido, trata-se de uma paz colossal, cosmológica, e não de fenômeno psicossociológico. Tudo que se escreve, escreveu ou escreverá era para chegar aqui, neste parágrafo.

Por isso, o verdadeiro escritor nada tem a dizer.

Tem uma maneira de dizer nada.

Nada temos a temer.

Exceto as Palavras.

A crítica de arte é tão supérflua quanto a própria arte. E a virtude maior de um ser humano é ter consciência da própria crueldade (Fonseca, 2000: 35). Por isso quero mantê-lo vivo, em meu coração e em minha mente. Continuo:

Vastas emoções e pensamentos imperfeitos ousou expor a escrita numa espécie de nudez essencial, sem imagem nem som. O resultado foi o de que as palavras constituíam cenários, possivelmente todos falsos, desconexos, de sonhos.

Se tais cenários desaparecessem, agora tudo se teria a temer. É o que finalmente ocorre em agosto — mês dos espíritos baixarem — quando o narrador aplaina, do início ao fim do livro, em terceira pessoa. Impressionista, as coisas todas se tornam o que elas são, sua essência colapsa na superfície: diretamente, o pesadelo, de que nunca são como são, mas sendo. O automatismo insistente do disco na vitrola, indiferente à morte do que o escuta. Mattos, versão mais sombria do antigo Vilela, trazia guardado no bolso o dente de ouro de Morel (Fonseca, 2006 [1990]: 106; cf. Fonseca, 1995 [1973]: 42).

“Não sei como me tornei um escritor de contos e não um cineasta”, disse meu irmão em uma entrevista (Fonseca, 1990 [1988]: 39). Depois daquele mês maldito, virá ainda a escrever um texto básico, um roteiro. Torna-se definitivamente aquilo que não era, quer dizer, sobrevive inteiramente na voz própria delirante — falar a milhões, sem os enganar, quer dizer, agradando-os.

Ser sério: quelle lourde machine à construire...

Não se trata de simples mentira (ver o que diz Verdi sobre o Guaraní, e é melhor ser escravo do que mendigo: Fonseca, 1994: 74, 169). Parte do rosto da mulher começa a aparecer. Lança sangue pela boca, sem parar, e diz:

— Foi Maneco Músico, teu pai. Estava com muito ódio.

— Parecia um sonho... Fechei os olhos, não ia acordar nunca mais. Como era bom dormir. Sou um marquês de ilustre estirpe, da melhor nobreza, mas não sou escritor, apenas um leitor constante de bons autores.

Sai Nicolas-Gabriel de La Reynie.

Entra o diplomata Aires.

No Uruguai, ao descobrir seus papéis, meu irmão em princípio o achou diferente de si. A escrita de Aires era transparentemente lúcida, como a linha invisível que equilibra todas as divergências, de Esaú a Jacó. Justamente, mas assim esvaziava de conteúdo, desaparecia, aproximando-se da de meu irmão. Além disso, sabemos que a escrita é de Aires (2), mas ela se desdobra para além dele, como espelho, que o reduz a personagem de si. Foi quando no ápice da história de perder o fôlego, não se disse:

— Levantei a ponta do véu e quase me entrei na alma, mais fundo que ela própria.
— Foi a realidade... Abri os olhos, não quis fechá-los mais. Como era bom entender. Tudo serão modas neste mundo, exceto as estrelas e eu. Perdono a tutti.

É como se pode contar a contradição. A frivolidade do memorial — “nem pachorra nem habilidade”, “dizer o que se pensa e o que se vê, quando se não vê nem pensa nada” (Assis, 1952b: 7, 102) — entregando seu despropósito comum. Do meu irmão, a ele. Ser real, mas não sendo, o narrar pelo narrar, mesmo despreocupado da trama, mas atento à delícia do fel (“o amargo do mel”, Assis, 1952b: 220-1).

Estava eu diante da pessoa futura, e era a pessoa extinta, uma só criatura.

Ele acabou pedindo, de pessoa estranha, o abraço.

Dei-lho apertado. 

Assis, M. de. Esaú e Jacó. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc., 1952a
Assis, M. de. Memorial de Aires. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc., 1952b
Fonseca, R. O Caso Morel. São Paulo: Companhia das Letras, 1995 [1973]
Fonseca, R. A Grande Arte. São Paulo: Círculo do Livro, 1983
Fonseca, R. Buffo & Spallanzane. São Paulo: Companhia das Letras, 1993 [1986]
Fonseca, R. Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos. São Paulo: Círculo do Livro, 1990 [1988]
Fonseca, R. Agosto. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 [1990]
Fonseca, R. O Selvagem da Ópera. São Paulo: Companhia das Letras, 1994
Fonseca, R. O Doente Molière. São Paulo: Editora Schwarcz, 2000

(1) Isso é um pouco mais complexo, na verdade, porque Vilela não narra na primeira pessoa.

(2) Ora, meu irmão mesmo o diz: “era o ultimo dos sete cadernos (de Aires), com a particularidade de ser o mais grosso” (Assis, 1952: 5). E o próprio Aires se revela, escorrendo pela pena: “Foi por achá-lo em mim que lhe dei crédito... Ninguém me constrangia. Todos os temperamentos iam comigo; poucas divergências tive, e perdi só uma ou duas amizades, tão pacificamente aliás, que os amigos perdidos não deixaram de me tirar o chapéu. Um deles pediu-me perdão no testamento” (Assis, 1952: 417).

Alessandro Zir (Porto Alegre, Brasil).
Escritor e professor universitário. Doutorado pelo Interdisciplinary Program da Dalhousie University (Halifax, Canada).
E-mail: azir@dal.ca

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