Editores
da Revista TriploV de Artes,
Religiões e Ciências iniciaram
2010 indo aos Estados Unidos. Maria
Estela Guedes flanou pelas ruas de
New York, fotografando e visitando
maravilhas. Tão logo retornou a
Portugal tratou de dar uma
conferência no “Encontro
Internacional sobre Realismos
Antigos e Novos”, no Instituto
Científico Bento da Rocha Cabral
(Lisboa, fevereiro de 2010). O
texto, intitulado Realismos em
Nova Iorque, encontra-se
publicado no presente número, e
trata com fascinante pluma de
estabelecer um parâmetro entre arte
e realismo, pontuando eventos
artísticos em cartaz em New York, em
uma leitura algo polêmica e que pode
ser entendida como contraponto ao
trabalho que foi realizar no mesmo
país o outro editor de nossa
revista. Este, Floriano Martins, por
sua vez, ainda se encontra por lá,
precisamente em Ohio, como professor
visitante da Universidade de
Cincinnati, convidado para dar o
seminário “Correntes de vanguarda na
América Latina”. A estrutura do
seminário toma por base três livros
seus: Un nuevo continente,
antologia do surrealismo em todo o
continente americano que foi
publicada na Costa Rica (Andromeda,
2004), tendo uma nova edição
bastante ampliada na Venezuela
(Monte Avila, 2007); o volume duplo
Escritura Conquistada, cuja
edição espanhola acaba de sair pelo
Fondo Editorial El Perro y la Rana,
na Venezuela; e um volume inédito de
ensaios, Um pouco de surrealismo
não causará
dano algum à realidade,
com expectativa de publicação para
este ano. Ao tratar essencialmente
do surrealismo, o seminário o faz
revendo precursores, comentando as
diversas vanguardas européias e os
movimentos ligados à contracultura
na América dos anos 60 do século
passado. Destinado a um curso de
doutoramento, coordenado pelo poeta
e ensaísta Armando Romero, o
conteúdo do seminário, que se
distribui por 30 horas ao longo de
10 semanas, inclui material
previamente distribuído aos alunos
para diálogo em classe, apresentação
de documentários e audiovisuais,
oficina de colagens, jogos, enquetes
etc., concluindo-se com a entrega de
resenhas sobre diversos livros
indicados aos alunos no início do
curso. São livros de poetas como
Ludwig Zeller, Braulio Arenas, Juan
Calzadilla, Claudio Willer, dentre
outros. A dinâmica tem permitido aos
estudantes um melhor aproveitamento
do tema, inclusive não evitando as
críticas eventuais ao surrealismo,
bem como avaliando seus diversos
desdobramentos, dos mais ortodoxos –
em grande parte apenas mera diluição
do que se pretendia há quase um
século – aos mais consistentes e
renovados.
Nao há dúvidas quanto à importancia
capital do surrealismo, como a mais
influente de todas as vanguardas e
que tratou de provocar as mais
pertinentes revisões na leitura que
se tinha do ser humano e sua atuação
no mundo contemporâneo. Artistas e
intelectuais, em distintos países e
de distintas gerações, reagiram de
maneiras as mais diversas, contra e
a favor, ao mesmo tempo em que se
manifestaram também instituições
culturais e de segurança pública.
Sim, tampouco a polícia e as
organizações de extrema direita, a
seu tempo, ficaram alheias à
presença do surrealismo. Sua
história está repleta de polêmicas,
que não deixam de fora nem mesmo as
fissuras internas, que foram muitas
e em geral provocadas por dois
aspectos inevitáveis: de um lado, a
necessidade natural de exposição e
consequente comercialização de
obras, sobretudo no ambiente
plástico; de outro, o grau de
intensidade com que cada um dos
integrantes do movimento aderia aos
preceitos do surrealismo e à própria
voragem criadora.
O seminário frequenta as relações
entre Dadá e surrealismo, Alfred
Jarry e o Colégio de Patafísica;
comenta os manifestos; visita a obra
de vários artistas (desenho,
colagem, pintura, fotografia,
escultura, cinema) abordando temas
como erotismo, humor, onirismo,
sátira; observa acerca da reduzida
presença de mulheres no surrealismo,
apresentando aos alunos obras da
poeta Joyce Mansour e da artista
Unica Zurn; avalia as relações
possíveis entre música e
surrealismo, cerceadas de forma
preconceituosa logo na gestação do
movimento; trata do exílio de
surrealistas europeus na América; e
assim adentra o tema principal, a
recepção do surrealismo em
continente americano, suas variadas
formas de manifestação, o tema
polêmico dos precursores,
desdobramentos e afinidades. A
América possui, no mínimo, duas
versões do surrealismo: aquela
representada pela presença em terras
americanas de muitos nomes
fundamentais do movimento europeu, a
começar pelo próprio André Breton; e
outra que ganha consistência a
partir da leitura particular do
surrealismo feita por poetas e
artistas americanos. O pouco diálogo
existente entre as duas versões – as
mesmas, quando se tocam, em grande
parte refletem uma submissão e não a
esperada vertente de vasos
comunicantes – não evita, no
entanto, a configuração de um
surrealismo consistente e revelador
de uma cultura em formação, que se
enriquece do movimento europeu no
sentido de lhe dar mais vigor próprio,
mais força estética.
Os obstáculos na construção de um
ambiente favorável à atuação cada
vez mais rica do surrealismo na
América se deu por má influência da
parte européia, sobretudo no que diz
respeito à rejeição ao aprendizado
de línguas como o inglês e o
espanhol; pelos excessivos equívocos
de surrealistas americanos
empenhados em ser mais papistas que
o papa; mas especialmente pelo
transplante descontextualizado de
certos princípios do surrealismo na
Europa, sendo o que mais se destaca
a exigência que se tinha na América
do surrealismo funcionar como uma
ruptura da tradição, quando a bem da
verdade sequer tínhamos inventado
ainda uma tradição. O poeta
colombiano Fernando Charry Lara, em
resposta a uma enquete da
ColCultura Gaceta (Bogota,
1978), quando lhe indagaram sobre as
características fundamentais da
literatura colombiana, fez uma
observação que pode ser ampliada
para todo o ambiente
latino-americano. Disse então:
Nossa melhor e mais autêntica
tradição cultural é uma tradição
de gramáticos e não propriamente
de criadores literários, o que
torna difícil pensar que
tenhamos uma tradição da
ruptura, ou seja, da renovação,
da aventura ou da originalidade
por si mesmas.
Eis aí um parâmetro que seria de
grande contribuição para se refazer
todo o percurso da crítica literária
e da historiografia de nossos
ambientes artísticos e literários. O
seminário “Correntes de vanguarda na
América Latina”, em sua estrutura
básica, permite iniciar tal
percurso, de maneira que seria
pertinente repeti-lo em outras
oportunidades, sobretudo em meio
acadêmico, detalhando casos,
mergulhando mais intensamente em
aspectos que podem ajudar a
compreender a grandeza de uma
cultura – em tal caso, um conjunto
de manifestaçoes culturais, em
distintos países e línguas – em seu
ninho de formação.
A seguir reproduzimos o capítulo
final do livro ainda inédito Um
pouco de surrealismo não causará
dano algum à realidade,
como arremate para o presente
editorial. |
Surrealistas americanos foram à
Europa por motivos distintos
daqueles que trouxeram surrealistas
europeus à América. Deslocaram-se em
busca de diálogo, o que resultou em
adesão ao movimento e, de regresso
ao continente americano, aqui o
difundiram e, em alguns casos, o
reproduziram na forma de grupos,
manifestos, exposições. Por sua vez,
surrealistas europeus buscaram
refúgio da Segunda Guerra Mundial na
América. Ao aportarem no que para
eles se revelou como um mundo
mágico, se aventuraram em seu
passado mítico, esquecendo por
completo as sociedades
contemporâneas que habitaram por
algum tempo. Alguns, como no caso de
Breton, sequer tiveram o cuidado de
aprender o idioma local, quer fosse
o inglês ou o espanhol. Dentre os
que vieram primeiramente dois deles
constituem casos à parte. Benjamin
Péret chega ao Brasil em 1929. A
residência prolongada e por duas
vezes neste país, intercalada por um
período no México, o levou a
aprender espanhol e português. O
outro é Antonin Artaud. Quando este
veio ao México, em 1936, já não era
considerado surrealista por seus
pares. Artaud, aliás, constitui um
dos aspectos intrigantes do
surrealismo na Europa, a
proliferação de nomes que se
afastaram ou foram afastados do
grupo com o passar do tempo. A lista
inclui, dentre outros, Jacques
Prévert, Tristan Tzara, Malcolm de
Chazal, Paul Eluard, Max Ernst,
Salvador Dali e Philippe Soupault,
todos eles poetas e artistas de
vultosa expressão, tema que merece
um estudo à parte.
Carlos M. Luis, poeta e crítico de
arte cubano, residente nos Estados
Unidos, em uma série de ensaios que
publicou na Agulha – Revista de
Cultura sob o título de “Os
surrealistas na América”, observa
que foram três as razões que levaram
André Breton ao México, em 1938: “a
primeira de ordem econômica, a
segunda por seu afã de estabelecer
contato com Leon Trotsky, e a
terceira porque sempre viu o México
como terra de eleição” (1).
Evidente que essa terra de eleição
se delineou melhor graças aos
relatos de Artaud acerca de sua
visita à região dos Tarahumaras, na
serra de Chihuahua. Breton prolonga
sua residência na América até 1946,
tendo vivido no México e nos Estados
Unidos, e visitado Martinica, Haiti
e República Dominicana. Sua grande
descoberta na poesia foi Aimé
Césaire, que ele leu através da
revista Tropiques, dirigida
por este poeta. Em geral, as
atenções de Breton estiveram quase
sempre voltadas para dois temas: as
artes plásticas e o passado índio ou
selvagem da região. Este duplo
interesse tinha por trás um curioso
motivo: seu monoglotismo, que
resultou em predomínio na difusão e
universalização das artes plásticas.
Reunidos nos Estados Unidos,
surrealistas europeus dialogavam
plasticamente entre si, em um
ambiente que foi enormemente
favorecido pela presença de Peggy
Guggenheim, sobretudo a partir de
1942, quando ela abre a galeria Art
of this Century em Nova York. Também
a presença do artista Wofgang Paalen
no México é decisiva, sendo graças a
ele e o peruano César Moro que se
inaugura, em 1940, na capital
mexicana, a Exposição Internacional
do Surrealismo. Dois outros nomes
desempenharam papel fundamental
neste momento: Charles-Henri Ford e
Nicolás Calas, este último também um
europeu que passa a viver nos
Estados Unidos e ali ajuda a
divulgar o surrealismo, através de
revistas como New Directions
e View. Os próprios
surrealistas europeus que buscaram
refúgio na América eram, em grande
parte, artistas plásticos, de
maneira que praticamente
restringiu-se ao campo dessas artes
o diálogo entre surrealistas
europeus e americanos. Em entrevista
dada a Jean Duché, diz Breton
acreditar que tenha sido “no
continente americano onde a pintura
parece haver lançado seus mais belos
feixes luminosos com atraso: Ernst,
Tanguy, Matta, Donati e Gorki em
Nova York; Lam em Cuba; Granell na
República Dominicana; Frances,
Carrington e Remédios no México;
Arenas e Cáceres no Chile” (2).
É curioso que mencione, por último,
os dois integrantes do grupo
Mandrágora, cuja atuação mais
destacada se deu na poesia e não
propriamente através de suas
colagens. Porém importa aqui referir
que a barreira lingüística operou no
sentido de tornar majoritária a
presença das artes plásticas na
difusão do surrealismo na América,
inclusive com a aproximação de
artistas americanos que começavam a
se organizar em torno de uma nova
tendência, o abstracionismo
expressionista.
Em grande parte, o monoglotismo de
Breton tratou de isolar os
surrealistas europeus em uma espécie
de gueto, o que ia de encontro a
tudo quanto eles defendiam na
Europa. É igualmente curioso
observar que o surrealismo despertou
sempre muito pouco interesse da
parte de poetas no México e nos
Estados Unidos, onde houve sempre um
predomínio de adeptos do movimento
no campo das artes plásticas. A
inexistência de diálogo gerou este
silêncio poético. Mesmo considerando
um caso atípico como o do mexicano
Octavio Paz, ou as afinidades com o
surrealismo demonstradas através da
obra de americanos como Frank O’Hara,
Philip Lamantia e Ted Joans – os
dois últimos já ligados à Geração
Beat. Octavio Paz é bom lembrar que
se insere no rol de surrealistas
americanos que foram à Europa e ali
se aproximaram do grupo surrealista.
Contudo, o continente não se esgota
nos aspectos referidos, menos ainda
a aventura do surrealismo se
restringe à presença dos europeus
nessas instâncias. Os deslizes
verificados na identificação de
corpos – pulsantes ou cristalizados
–, em uma matéria queimante
como esta, são de ordem variada, com
destaque para o exagero na
argumentação, favorável ou
contrária. A rigor, não se dispõe
ainda de uma bibliografia
consistente que observe o continente
em sua totalidade ou que estime
valores próprios do surrealismo na
América. Esta foi a situação que
encontrei, em 2004, quando publiquei
a primeira antologia do surrealismo
a reunir poetas de todo o
continente, o que significa
considerar textos e autores em torno
de quatro idiomas: espanhol,
francês, inglês e português. Tal
situação se repetia, em 2008, quando
este trabalho foi consideravelmente
ampliado, em volume e circulação
(3).
Há, no entanto, dois estudiosos
merecedores de uma crítica mais
atenciosa, seja pela abrangência de
seus esforços de compreensão do tema
ou pelo alcance de suas observações.
Refiro-me a Carlos Martín (Colômbia,
1914) e Stefan Baciu (Romênia,
1918-1993). O primeiro é autor do
volume mais completo sobre
surrealismo na América Hispânica. O
segundo, publicou uma antologia
(1974), seguida de uma coletânea de
artigos (1979). Embora os dois
livros do romeno indiquem em seus
títulos que cuidam da América
Latina, a rigor se inscrevem na
mesma faixa geográfica de observação
do colombiano, ou seja, os países
hispano-americanos.
Carlos Martín faz, em seu livro,
Hispanoamérica: mito y surrealismo,
uma formulação quando menos
arriscada, como tentativa de
compreender o grau de influência do
surrealismo em nosso continente.
Diz ele:
Dois transcendentais
acontecimentos do Velho Mundo
ocidental são o Descobrimento da
América, pelo qual se consegue
estabelecer a integridade da
terra que habitamos e,
posteriormente, o surrealismo,
que tenta descobrir e expressar
o homem integral, limitado até
então pela tradição, a razão e a
lógica que estruturam a cultura
ocidental (4).
Descoberta e redescoberta, por assim
dizer, como os dois pontos
essenciais de fundamento da cultura
americana. A mestiçagem atuando, nos
dois casos, como componente decisivo
em todas as conquistas internas, com
suas inseparáveis contradições,
evidenciando o caráter fundacional e
singular com que o surrealismo se
enraizou na América, identificando
postulados e procedimentos da matriz
européia com a vastidão cosmogônica
do Novo Mundo. Porém mesmo
considerando a intensidade desse
diálogo, o que levou o cubano Alejo
Carpentier (1904-1980) a declarar
como majoritária a influência do
surrealismo na poesia
hispano-americana, há que tomar um
cuidado para não carregar nas
tintas, surrealizando o
continente. Um reflexo negativo
disto é o entendimento – quase
sempre equívoco – que se tem acerca
de precursores do surrealismo na
América. O romeno Stefan Baciu, por
exemplo, impôs uma lista que foi,
parcialmente, validada por Octavio
Paz, com os seguintes nomes: José
Juan Tablada, José María Eguren,
José Antonio Ramos Sucre, Oliverio
Girondo e Vicente Huidobro. Já
voltaremos ao tema.
Ao comentar a antologia de Stefan
Baciu, o mexicano Octavio Paz
enreda-se em suas próprias palavras,
afirmando que uma atitude
verdadeiramente surrealista não pode
se confundir com afinidades
momentâneas, em seguida comentando
sobre a inexistência de grupos
surrealistas em alguns países e a
filiação individual de poetas ao
movimento. Ao mesmo tempo em que se
reporta à colaboração momentânea de
Vicente Huidobro e Gonzalo Rojas ao
grupo chileno Mandrágora, descarta
qualquer perspectiva surrealista em
nomes como Gilberto Owen, Xavier
Villaurrutía e Pablo Neruda. Ao
dizer do surrealismo que “foi uma
atitude vital, total – ética e
estética – que se expressou na ação
e na participação” (5), desperta a
dúvida sobre quais distinções tenha
encontrado entre Neruda e Huidobro,
considerando os inúmeros ataques
deste último ao surrealismo. Paz
esquece que a “atitude realmente
surrealista” em muitos casos, o seu
inclusive, foi momentânea na
biografia de poetas e artistas.
Esquece ainda que a atitude
impositiva de André Breton tratou
sempre de determinar permanência ou
exclusão de poetas e artistas no
movimento. Este caráter impositivo
foi reproduzido por Stefan Baciu,
criando regras autoritárias e
excludentes de identificação do
surrealismo na América.
Apontar precursores do surrealismo
no continente americano tem sido uma
tarefa delicada, como de resto quase
todas as apreciações acerca do
movimento. A rigor, não há uma
genealogia própria, que corresponda
ao surrealismo, que o prefigure e
seja, por tal razão, reconhecida.
Talvez o mais correto seja
identificar Lautréamont (1846-1870)
como único personagem a representar
tal papel, e não apenas pelo fato do
mesmo ter sido universalizado em tal
condição pelo movimento francês, mas
antes por haver sido compreendido,
já em 1920, como o grande rompedor,
subversivo no mais amplo sentido do
termo, aquele em quem, segundo
Carlos Martín, “escritura e mundo em
erupção se identificam na conta
rendida dos sonhos, com a associação
imprevista, com o acaso objetivo,
com a magia, com a alucinação”. Esta
foi, por exemplo, a leitura que fez
de Lautréamont o guatemalteco Miguel
Ángel Asturias (1899-1974):
A los que comenzábamos a
escribir en 1920, los Cantos
de Maldoror nos estrujaron
el alma, nos transtornaron
sentimientos y conceptos. Surgía
a nuestros oídos acostumbrados a
la ópera, al himno, a la oda, la
voz del absoluto rebelde, del
ángel que rompe sus cadenas, del
que se arranca las entrañas para
dar en un mundo de falsía, la
verdadera imagen del mal, imagen
que él arrancó a su soledad de
hombre perseguido,
incomprendido, providente y
lúcido. El poema no era, por lo
tanto, el rimadito canto de los
poetas conformistas. Un poema
como éste, golpeaba, derribaba
mundos, abría compuertas a la
rabia contenida de una juventud
engañada que no quería que se la
engañara más. Imitarlo,
imposible. Seguirlo, menos. Lo
que cabía era untarse este
sufrimiento humano,
excesivamente humano como pedía
Nietzsche, para endurecerse la
epidermis, enfermiza todavía de
romanticismo y modernismo (6).
Segundo Asturias, foi graças à
leitura de Lautréamont que ele
saltou do poema para o romance.
E não somente ele: “Hay un fogarón
ducassiano en las páginas de las
novelas que se escriben después de
1920”.
Lautréamont, nascido no Uruguai e
tendo ali vivido apenas até os 13
anos de idade, encarna a
coincidência possível entre América
e Europa, como legítimo anunciador
do surrealismo. A partir daí,
retomando a insistência de Stefan
Baciu – aceita por outros estudiosos
– em torno de uma linhagem
surrealista na América, me parece
clara a inexistência de pontos em
comum entre surrealismo e as idéias
defendidas por Tablada, Girondo,
Huidobro, Ramos Sucre e Eguren.
Quando muito, é possível falar em
alguns elementos coincidentes, porém
não muitos, e não em todos estes
poetas.
A escritura automática foi por
muitos convertida em objeto de toda
ordem de ataque contra o
surrealismo, deslocando seu papel
fundamental de rompimento de diques
para o da sistematização de um
delírio permanente. Huidobro soube,
mais do que qualquer outro poeta,
utilizar este argumento em seu
declarado repúdio ao surrealismo.
Evidente que este aspecto não
diminui sua importância como grande
poeta, nem apaga suas relações
diretas com Apollinaire e a revista
Nord-Sud. O chileno integra
uma das gerações mais ricas na
lírica hispano-americana, composta
por nomes como Pablo de Rokha, Pablo
Neruda, Humberto Díaz-Casanueva e
Rosamel del Valle. Em todos eles,
porém não em Huidobro, é possível
encontrar vínculos com algumas
características do surrealismo. Suas
relações foram mais de acordo com
dadaísmo, futurismo, cubismo, porém
sem esquecer que ele acabou por
criar seu próprio movimento – o
creacionismo –, de onde combateu
todas as demais tendências da época.
Stefan Baciu, ao situá-lo como um
dos precursores do surrealismo,
observa:
Por razões ideológicas Huidobro
combateu o surrealismo e, ao
mesmo tempo, foi combatido pelos
surrealistas. A este respeito,
cabe mencionar a polêmica com os
surrealistas peruanos que
culminou no folheto El obispo
embotellado, em era atacado
com veemência. Por um lado,
esta atitude se explica devido
ao desejo de liderança de
Huidobro e, por outro, devido à
ortodoxia surrealista do grupo
reunido ao redor de César Moro
(7).
O peruano César Moro integrou o
grupo parisiense, dele
posteriormente se afastando
exatamente por discordar de algumas
atitudes ortodoxas de Breton.
Tampouco houve grupo surrealista no
Peru. Na primeira metade do século
XX existiram apenas dois grupos
surrealistas, definidos como tal, em
todo o continente americano:
Mandrágora (Chile) e Refus Global
(Canadá). Em larga escala a presença
do surrealismo se definiu pela
filiação individual ou por uma
adesão singular, tanto ética quanto
estética, sem que isto implicasse em
formação de grupo, como no caso
argentino.
Ao contrário de Stefan Baciu, que
tinha verdadeira obsessão por criar
uma linhagem surrealista na América,
o colombiano Carlos Martín
desenvolveu uma consistente tese
sobre o que chamou de “vocación de
universalismo del Nuevo Mundo,
sustentada con razones de orden
histórico, geográfico, sociológico y
estético que se fundamenta y resume
en el mestizaje étnico y espiritual
–o cultural–, encarnado en la
persona y la obra de Rubén Darío”. A
partir dessa vocação vai traçando as
coordenadas reais, em nada
caprichosas, que alimentam uma
alquimia possível entre
individualismo e universalismo,
entre velho e novo mundo, ou seja,
entre surrealismo e América. Ele
próprio esclarece:
América Latina y surrealismo son
frutos extremos de la
civilización occidental,
manifestaciones de superación y
descubrimiento, con irrefrenable
tendencia a la universalidad y a
la transferencia o solución de
continuidad entre un mundo
antiguo y un mundo nuevo. Tanto
en la una como en el otro, por
estar entrañados al pasado y al
porvenir de la especie, su
constitución se halla
determinada por un complejo de
circunstancias de lugar y de
tiempo. Nacen de raíces europeas
y americanas, individualista y
colectiva – Nerval y Lautréamont
– y son alimentadas con savias
de Revolución Francesa y
Romanticismo.
Este é um argumento que nos leva a
compreender toda gratuidade da
leitura de Stefan Baciu, com seus
estratos viciados, categorias
subordinadas ao modelo europeu,
tratando de entender o surrealismo
americano como unicamente um
segmento do movimento francês. Não é
por outra razão que impõe a
repetição de uma linhagem, fingindo
a condição de precursores em alguns
poetas hispano-americanos. Sua
insistência no que diz respeito a
Huidobro foi ainda mais agravada no
tocante a Girondo, Eguren, Tablada e
Ramos Sucre – todos eles ligados à
vanguarda, com obra de indiscutível
e decisivo papel na fundação de uma
tradição lírica tão rica quanto a
hispano-americana, no entanto sem
pontos de contato, direta ou
indiretamente com o surrealismo
suficientes para inseri-los como
seus precursores. Octavio Paz
pondera em defesa de Eguren e Ramos
Sucre, com o seguinte argumento:
En Eguren, el gran simbolista
peruano, sí hay un cierto
onirismo que es una
prefiguración del surrealismo.
Otro tanto sucede con Ramos
Sucre. El rescate del olvidado
Ramos Sucre es otro de los
aciertos de Baciu (8).
Estou de acordo com José Carlos
Maríategui ao dizer que Eguren é um
caso isolado na lírica peruana, ao
mesmo tempo em que sua linhagem é a
mesma de poetas como o colombiano
José Asunción Silva e o uruguaio
Julio Herrera y Reissig. Ao invés do
“certo onirismo” referido por Paz, o
que se poderia localizar na poética
de Eguren é um traço do maravilhoso.
No entanto, ao contrário do que se
verifica em poetas surrealistas,
como Maurice Blanchard, Georges
Schehadé ou Malcolm de Chazal, o
maravilhoso no peruano não é uma
afirmação da realidade, mas sim uma
busca de evasão de seu próprio
tempo. Mesmo o considerando um poeta
simbolista, é preciso destacar a
extrema e fascinante singularidade
de seu simbolismo, com seus
arcaísmos surpreendentes, o ambiente
gótico, a musicalidade encantatória.
Por sua vez, o venezuelano José
Antonio Ramos Sucre é outro desses
raros poetas que rejeitam qualquer
tentativa de classificação.
Como recorda José Ramón Medina, a
singularidade deste enorme poeta
“reside en la naturaleza especial de
su escritura y en el esfuerzo de
quien hizo de su poesía la expresión
más acabada de una transparente y
profunda desolación interior” (9).
Aproximar este poeta do surrealismo
é atestar um duplo desconhecimento
de causa. Mais do que qualquer outro
crítico, Ludovico Silva chama a
atenção para características, na
poética de Ramos Sucre, que são
exatamente opostas ao surrealismo:
Su poesía es de una lucidez casi
cruel; los períodos ondulantes
de su prosa se mueven gobernados
por un cálculo prosódico muy
riguroso; sus adjetivos tienden
a una precisión casi matemática
[…] Con todo ello construye
Ramos Sucre un universo mágico,
teñido de misterio y esplendor
nocturno, compuesto de vocablos
“jamás directos”, que tintinean
en el trasfondo de su prosa
cantada como joyas en la
oscuridad. Es un poeta
hermético, en el sentido ritual
y ocultista del término, no lo
es en el sentido
histórico-literario del vocablo,
pues su poesía está compuesta de
una prosa diáfana, cristalina,
de claros períodos y vocabulario
relativamente simple […] Es, en
todo caso, un gran mago poético.
El antiguo parentesco entre
poesía y magia revive en él y se
actualiza con grandeza (10).
Em geral, até se pode vislumbrar
alguma conexão com o surrealismo
naqueles poetas que atuam em um
ambiente simbolista e hermético,
porém não com a arrogância frívola
de Stefan Baciu ou com essa enganosa
indolência com que Octavio Paz acata
os claros equívocos do crítico
romeno.
Diante da poesia de Paz, percebe-se
que foi tocada pelo surrealismo
muito mais do que apenas
tangencialmente. Ele próprio, em seu
notável ensaio sobre André Breton,
recorda que a leitura do capítulo V
do livro O amor louco, ao
lado de O casamento do Céu e do
Inferno, de William Blake, lhe
“abrió las puertas de la poesía
moderna” (11).
É bem verdade que Paz sempre tomou
cuidado de manter uma relação
ambígua com o surrealismo, porém ao
final de sua vida, quando preparou o
volume de suas Obras Completas
dedicado à poesia, tanto no
preâmbulo quanto nos comentários
acerca de cada um de seus livros,
não menciona uma única vez a palavra
surrealismo, nem que tenha conhecido
Breton ou Péret, ou mesmo tido um
livro seu traduzido por este último,
assim apagando em definitivo todas
as pistas de seus débitos e
afinidades surrealistas. Paz,
portanto, foi um dos protagonistas
da imensa barafunda que caracteriza
o surrealismo na América, marcada
por rejeições e oportunismos, quase
sempre ao sabor das circunstâncias,
quando não cristalizada pelo
dogmatismo de alguns discípulos que
ainda hoje – quando surgem e
ressurgem grupos em uma parte ou
outra do continente – teimam em ser
mais reais que toda a realeza.
As duas faces desta mesma e
intrigante moeda tanto se empenharam
em seus abusos que deixaram escapar
dois riquíssimos componentes
estéticos do surrealismo na América:
a música e a narrativa. O jazz com
seu ambiente de improvisação é uma
fonte valiosa de diálogo com a
escritura automática e impregnou a
poesia de novas modulações rítmicas
e imagens com um profundo sentido de
liberdade. A narrativa abriu caminho
para uma multiplicidade de
explorações verbais em um ambiente
distinto da poesia. Evidente que
para aceitá-lo há que libertar-se de
uma visão cristalizada do
surrealismo. A crítica que o
surrealismo fazia ao romance
realista acabou sendo interpretada
como uma rejeição à narrativa em si.
Na América, sobretudo a partir do
impacto provocado pela leitura de
Lautréamont, o romance tomou um
caminho completamente distinto da
linha realista, basta pensarmos
naqueles autores ligados ao realismo
fantástico, mesmo considerando a
parcela de confusão no tocante à
identificação entre esta nova
manifestação da narrativa e o
surrealismo. Verifica-se aí o mesmo
existente em muitos casos tanto na
poesia quanto nas artes plásticas,
ou seja, a relutância por parte de
escritores e artistas americanos em
aceitar como determinante em sua
obra a influência do surrealismo,
tomados que estavam de certa
necessidade de apresentarem-se como
o criador supremo de uma nova
poética.
Vale lembrar, concordando com Carlos
Martín:
La novela actual, en oposición
al realismo de la novela
anterior, pudiera tildarse de
antirrealista, pero lo que en
ella actúa es una ampliación del
concepto de realidad, una
superación del realismo y del
naturalismo. Implica un nuevo
modo de representación de la
realidad, el descubrimiento de
mundos libres de la causalidad
consciente, con implicaciones
oníricas, subconscientes, con
asociaciones e intuiciones que
superan el orden y la
representación realista y
conceptual del mundo.
A
rigor, a presença do surrealismo na
América não está de todo configurada
e aceita pela crítica, nem mesmo por
poetas e artistas. Há ainda intensa
dosagem de preconceito, irreflexão,
desconhecimento e oportunismo.
Inclusive certo messianismo que o
orienta, especialmente no plano
moral, em muitos casos serviu como
obstáculo, impedindo assim uma
aproximação vital entre as duas
instâncias: Novo Mundo e
surrealismo. Evidente que a reforma
integral de qualquer sociedade
jamais poderia ser tarefa a se
realizar unicamente por um movimento
cultural. O poder transformador da
poesia, por exemplo, não se verifica
em um âmbito social senão como
reflexo de uma experiência interior.
Está bem que a moral no surrealismo
sempre exaltou a paixão e a
mistificação, porém a liberação do
inconsciente não fundamenta, em
isolado, a revelação de um homem
novo. Além disto, há que reconhecer
as distinções, no plano social assim
como no poético, em que respira o
surrealismo em um e outro
continente, bem como se modifica,
nos dois ambientes, com o passar do
tempo. Luis Buñuel disse certa vez
que, diante do fato de que o
surrealismo essencialmente buscava
transformar o mundo e mudar a vida,
se olhássemos à nossa volta com
sinceridade concluiríamos que
resultou em um fracasso completo. Ao
mesmo tempo, o espírito do
surrealismo marcou profundamente o
século XX e ainda hoje o encontramos
em diversas obras, como parte da
realidade cultural que sublinha e
contorna o cotidiano. Se não
dispomos do que se possa identificar
como uma nova concepção do mundo,
isto em grande parte se verifica por
não ter sabido o homem modificar a
si mesmo. A realidade, que não se
pode restringir unicamente ao mundo
visível, sempre poderá se recuperar
do estado de descrédito em que se
encontra. Seja como for, um pouco
mais de surrealismo não lhe causará
dano algum.
Floriano Martins
[Cincinnati, Ohio – fevereiro de
2010] |