NÚMERO 04
Março de
2010
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Felippe
D’Oliveira – O que pensam e sentem
os homens moços do
Brasil
JAIME DE BARROS |
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Se
no atual movimento de renovação
estética houve aparições
assustadoras de alguns cidadãos
perfeitamente desconhecidos, que se
incorporaram nas suas fileiras para
auferir proventos da confusão, há
figuras que nelas se encontram com
títulos ilustres e insuspeitáveis.
Não se poderá nunca
duvidar da sinceridade de artistas
que renunciaram a belas criações
realizadas em formas antigas para
buscar, nas incertezas do
desconhecido, novas formas de
beleza.
Felippe D’Oliveira é
um deles. Produziu um livro de
versos, de suave, claro e delicado
lirismo, que deu grande projeção ao
seu nome em plena mocidade. Como
esse livro, poderia produzir muitos
outros. Mas preferiu formar entre os
que sinceramente se batem pela
renovação estética em nosso país.
Vamos ouvi-lo. |
O DESPERTAR DA
INTELIGÊNCIA BRASILEIRA |
À pergunta sobre a
existência real, coordenada,
positiva do movimento, respondeu
prontamente Felippe D’Oliveira:
— O momento
brasileiro é, em verdade, de
flagrante renovação estética. Não se
pode esconder que há na atitude do
pensamento um ar atônito, ar de
espanto, ou um ar arejado, saudável,
de evasão,
A posição anterior de
nossa mentalidade, em face da vida
contemporânea era a de uma
assistência desatenta em metade e em
metade amodorrada ante um espetáculo
repetido. De repente, alguns
espectadores dessa segunda metade,
acordaram a um ruído insólito vindo
de fora, de não se sabe onde, mas,
certamente, do lado oposto ao palco…
Houve quem se deixasse ficar
dormindo. Houve a maioria que achou
uma grande maçada esse barulho sem
modos a perturbar a função. E houve
os outros, os que quiseram saber que
onda era essa a escorrer rumores e
claridades tais no langor fofo da
sesta: foram os que vieram para fora
do silêncio oblongo, onde o cochilo
pachola continuou, normal como um
folhetim.
Eis, um estilo
romântico, o diagrama das
tendências. Elas são díspares, mas
sem choque. E isto graças ao passo
centrífugo dos figurantes ditos
avançados e a imobilidade abacial
dos detentores da tradição. Esses
avançados respondem pela
renovação, de cujo curso O Paiz
indaga. São eles os responsáveis
pelo mal-entendido unilateral
criado, em primeiro lugar, pela
não-gratuidade de sua arte, feita
não para agradar nem para divertir o
público, propriamente dito e
respeitável. |
É PRECISO VER
CLARO EM SI MESMO |
Para esse
aglomerado de tendências
novas, mais ou menos
paralelas (a que a
perplexidade dos
estacionários julgou
gracioso, ou talvez irônico,
dar o apelido genérico de
futurismo), creio que se
pode prever uma convergência
comum rumo à lucidez de cada
qual ver claro em si mesmo
para achar a sua própria
realidade. É sem dúvida, um
ato de independência, sem
amarras. A única restrição —
que, de resto, não tolhe por
ser lei de equilíbrio — é
não poder qualquer realidade
fugir à contingência de
estar situada na vida
imediata e simultânea. A
criação estética tem de
refletir tal vida, mas
iluminando-a, ao mesmo
tempo, com sua luz própria
de pensamento corporificado. |
A
ASPIRAÇÃO DO ESPÍRITO MODERNO |
É absurda a suposição
de que tanto se fala agora no Brasil
e que denuncia uma direção futurista
premeditadamente em sentido oposto a
uma direção passadista. Não há
futurismo. Não há futuristas. Se
alguém se tem por tal é por
equívoco: o pensamento que anima com
tanta vivacidade este instante de
nossa existência mental é
simplesmente imediatista,
definitivamente evadista. A sensação
de distância que é evidente estar
aumentando entre as correntes
conservadora e renovadora não vem de
avanços despautados desta, vem do
recuo recalcitrante da outra. Não há
um futurismo ao feitio revelado com
alarme pelos que recuam. Não há
aquela imposição preconceituosa de
nomadismo proposital, perdulário de
liberdade, tonto de ineditismo, o
que seria a condenação a uma euforia
mortal por excessiva, como a do
oxigênio em demasia, que mata. O espírito
contemporâneo quer, sobretudo, ser
contemporâneo, imediato, solidário
com o espírito universal; quer
evadir-se não por uma projeção
precipitada e arbitrária no futuro,
mas incorporando-se na marcha
varonil, otimista com que a
humanidade nova se distancia do
passado. |
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O culto do passado
como verdade exemplar é a negação
completa da conquista e da invenção.
O princípio da beatitude
retrospectiva, se se houvesse
mantido imutável na sucessão das
idades, teria aprisionado a
arquitetura no dólmã, a pintura no
mamute gravado a ponta de sílex em
omoplata de paleotérios e a poesia
no ululo primordial com que o homem
de argila traduziu a volúpia de
esmagar contra as papilas o
irresistível como paradisíaco. Os
passados valem como valem as raízes
nas árvores cujas frondes frutificam
sem pensar nos dramas subterrâneos
da absorção.
No caso do Brasil
(que não tem de sacrificar, como
outras terras mais anciãs, coisa
alguma de um formidável patrimônio
de gênio e de engenho) essa prática
cinerária corre o risco de parecer
pouco sisuda, se não jocosa, dada a
modéstia de nosso passado artístico
cheio de boas intenções mas sem
posses, — espécie de velho parente
digno, porém ligeiramente monótono
pela insistência em exibir as suas
dificuldades de colono sem fortuna…
(E, ao que narram os
vestígios, se não fosse o antigo
senhor, não contaria sequer com o
espólio desses poucos ritmos
arcadianos, dessas poucas esculturas
de pau concedidas com usura por quem
guardava para si, no fundo do reino,
as riquezas suntuosas do árabe e do
manoelino…). |
A
ESTÉTICA DA METRÓPOLE |
— Mas, trata-se de um
movimento de caráter nacionalista,
para a formação de
uma cultura verdadeiramente
brasileira?
— Eu não posso crer
na sinceridade dos que querem
cultivar aqui, ao fim de cem anos de
independência, as sementes ou a muda
de uma estética inigualavelmente da
Metrópole, ressumbrando saudosismo
luso com pseudônimo indígena. E não
acredito como não acredito nessa
larga piedade que leva a achar que
era boa e que faz falta certa gente
perfeitamente inútil, só pelo fato
de ter morrido… Eu não acredito na
capacidade construtora dos
incidentes encerrados, dos episódios
concluídos… Um acontecimento não
pode ser a causa de um outro a não
ser que ambos possam ser realizados
no mesmo ponto do espaço. O conceito
é de Einstein. É bem possível que se
trate de espaço de verdade, desse
derramado lá em cima, em torno das
estrelas. E até lá é assim. E mais
além deverá continuar sendo assim,
do mesmo modo, porque o Sr. Philippe
Soupault, que é supra-realista, pára
de repente ao cair da noite sobre o
final de um primeiro capítulo e
exclama: —
Que le passé d’un seul coup
s’évanouisse et que je sois tout
neuf comme un homme qui ne possède
qu’un seul jour.
Só um corajoso
movimento de evasão dos desusados
cânones saberá conduzir o pensamento
brasileiro a uma indispensável
integração no espírito universal. É
esta a finalidade que legitimamente
se deve pretender. Dizer e realizar
coisas animadas antes de tudo por um
hálito humano. Fazer-se
compreensível ao entendimento
unânime que forma a “constante” das
aspirações aproximadas por cima de
todos os limites.
Á cor local, quando
se torna idéia-fixa, é ilógica e
ininteligível. A usá-la, é usá-la
como um valor em verdade legítimo e
que pode mesmo ser predominante, mas
sem ser exclusivo. Quando o seu
controle assinalar a obra criada,
ele não deverá penetrá-la de maneira
a desfigurar-lhe o cunho de moeda
corrente no comércio do pensamento
sem fronteiras. |
A
CULTURA BRASILEIRA |
É, porém, preciso não
perder de vista que não tivemos
tempo ainda de constituir uma
cultura propriamente brasileira, não
tivemos ainda tempo de completar a
estandardização de um espírito
estético brasileiro, com
matéria-prima própria, original.
Povo sem unidade de
raça, recebendo ainda incursões
estéticas a serem amalgamadas no
padrão típico, povo apenas
rapaz-que-promete, cabe-nos esperar
com paciência o evento longínquo de
uma cultura autônoma. Porque esta
não se improvisa, gera-se no âmago
da raça concluída e cresce por
superposição de camadas sucessivas,
não intencionais. Nós não temos
recuo suficiente, isto é,
profundidade: por enquanto contamos
só com a superfície inicial que um
breve dilúculo de civilização livre
mal teve tempo de cobrir com a
crosta tênue de sua primeira
centúria. O que nos convém,
portanto, é absorver, por endosmose,
todas as forças esparsas,
disciplinadas ou não, que sejam
capazes de conduzir-nos àquela
ambicionada universalização. |
A INSUBORDINAÇÃO DO
SONHO |
Ao preconceito
regional, à compressão geográfica, é
preferível a dispersão, a
insubordinação do sonho, de que às
vezes resultam vozes eternas, como a
de Khlebnikov, o agitado precursor
da moderna poesia russa. Tido por
maravilhoso pelos persas, adorado
como um Derviche pelos Muçulmanos,
aplaudido pela desordem dos
sovietes, o rapsodo moscovita
convenceu-se de que este planeta
democrático se governava pelos
brados de seus poemas e, certo
disto, reclamou, em testamento, este
epitáfio, que também pode ser um
programa: — “Aqui jaz Valemir
Khlebnikov, presidente do Globo
Terrestre”. |
CÂMARA LENTA |
Meus
pensamentos estão dormindo.
A
solidão verte uma luz de aquário
e dentro
dela os meus pensamentos
que
adormeceram adquirindo volume
têm a
mobilidade aparente, a refração
de uma
paisagem submarina.
De
repente,
uma
carícia de antigamente
vai
subindo
à tona
da memória
e por
toda a espessura da minha inércia
se
propaga
uma
vibração de sino tangido no fundo
d’água
revolvendo o silêncio entorpecente
da minha sodoma submersa
por onde
se arrasta,
flutuando,
flácido
e elástico como um polvo,
o
resíduo em recalque de uma volúpia
esquecida. |
INÉRCIA |
Sirvo-me
do destino
como de
um amigo indulgente que se deixe
enganar pela máscara de vidro colada
à face do meu segredo.
Meu amor
impossível, criminoso, suplica a
cumplicidade do destino:
onde
estejas com certeza, não vou buscar
o
repouso para o meu cansaço de querer
ver-te, porque seria ir buscar-te de
propósito
e eu
cultivo a cobardia de precisar do
meu perdão;
mas onde
possas estar por acaso, eu estou
e se eu
te vejo, é o destino que põe a tua
presença no meu instante
bem-aventurado.
Tu
serias capaz de te dizer que me
amas,
se eu
fosse o responsável confesso,
se eu
fosse o que força o destino,
se eu
fosse a forma visível do destino
colocada em teu caminho.
Tu não
te defendes e o teu gesto é o de
quem espera sem chamar.
Se eu
chegasse, tu convocarias a surpresa
para os olhos mansos
e a tua
castidade pusilânime murmuraria que
não me esperava.
Mas, na
indecisão de teu instinto,
adormece
a minha imagem.
Se eu
não fosse mais do que essa imagem
sem memória,
o teu
desejo informe a acordaria
e a tua
virtude – Dânae sob a chuva de ouro
–
floresceria de delícia sem culpa
no
grande pecado redimido pela minha
inconsciência de ser o amor de teu
amor.
Respeito
humano,
ara de
sacrifício,
noite em
que as vozes perdidas não se
respondem,
cisterna
sem fundo de onde emerge, nua e
inútil, a verdade,
de olhos
fechados e com o dedo aos lábios. |
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Entrevista
feita com o Sr. Jaime de Barros
e publicada n0 jornal Paiz #
15, junho de 1926 |
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